• Nenhum resultado encontrado

2. A dinâmica da cultura

2.2. A mudança por transferência analógica

A definição de cultura proposta por Shore não é muito diferente daquela que Geertz apresenta e também ela faz referência a um conjunto de modelos:

«Culture: an extensive and heterogeneous collection of “models”, models that exist both as public artefacts “in the world” and as cognitive constructs “in the mind” of members of a community. (…) a culture is best conceived as a very large and heterogeneous collection of models or what psychologists sometimes call schemas44.» (Shore, 1996:44)

41

Citado em Banks, 1996: 66 a partir da reedição de 1984 da obra de Thomas e Znaniecki. O sublinhado é da autora.

42

«Undirected by culture patterns – organized systems of significant symbols – man’s behavior would be virtually ungovernable, a mere chaos of pointless acts and exploding emotions, his experience virtually shapeless.» (Geertz, 1973:46)

43

Dramática nos dois sentidos da palavra, de drama humano que ela envolve e de visibilidade teatral.

44

Mas, ao contrário de Geertz, Shore restringe de imediato a acumulação de modelos ao afirmar que estes têm, ou pelo menos é lícito esperar que eventualmente tenham, um período de vida limitado, uma existência contingente e dependente das múltiplas e ilimitadas trocas sociais, no âmbito das quais também se transformam45. O seu movimento é ditado pela constante construção de significados que caracteriza a inteligência humana (Idem:69), porque os modelos culturais funcionam precisamente como a matéria-prima utilizada por uma comunidade no seu incessante labor de criar significado (Idem:47).

A questão do significado é da maior importância na teoria de Shore e serve para explicar o carácter simultaneamente estrutural e processual da cultura, uma característica que já tinha sido notada por Bateson, para quem a construção de modelos, no trabalho científico, funciona em zig-zag, oscilando entre processo e forma46.

Shore apresenta uma visão de cultura em múltiplos estratos que se distinguem entre si pelo grau de movimento e de generalidade. Desta forma ele consegue manter a base de estabilidade necessária à construção de significados partilhados, e simultaneamente dar conta da plasticidade dos vários modelos, mais concretos, que como que deslizam sobre este pano de fundo quase estrutural constituído pelo esquema matricial da comunidade. É evidente que estes esquemas matriciais são extremamente vastos e abrangem não só um número muito elevado de comunidades humanas mas também um intervalo de tempo prolongado47. As suas margens marcam os limites relativos da liberdade de mudança dos modelos e embora não possam ser encaradas como fronteiras estanques,

45

«Cultural models are born, transformed trough use, and eventually die out. Their continued existence is contingent, negotiated through endless social exchanges.» (Shore, 1996:47)

46

Bateson, G. 1980, Mind and Nature: a necessary unity, cit. in: Barth, 1987:83. É interessante notar que Barth, embora reconheça, ele próprio, o carácter estático e dinâmico do fenómeno cultural, faz questão de se demarcar do estruturalismo referindo-se ao aspecto “estrutural” da cultura como «rastos» que

permanecem depois da passagem de «qualquer coisa». Shore, que já ultrapassou este debate, assume claramente a complementaridade das duas “faces” da cultura: «If my analysis of Samoa is right, the structuralist impulse is not confined to structuralist scholars. It would appear to be a cognitive

precondition of culture, making possible some degree of intersubjective coordination and providing what Husserl called a common horizon of expectations for a population. What is illuminating in the Samoan case is that this structuralist bias contains its own internal critique, which is so deftly overcome within the culture by a set of alternative models. Just as Samoan culture by its explicit models presents a structuralist vision of the world, it provides in its tacit models equal recognition to the openness and dynamism of human experience in all its forms.»(Shore, 1996:282-283)

47

Por exemplo, Shore associa a modernidade ao esquema da modularidade, que embora seja apresentado como intrinsecamente americano e ligado à história da produção em massa, se espalhou e continua a espalhar por vastas regiões do globo, manifestando também uma capacidade de permanência elevada. É claro que o poder económico, político e militar dos “portadores” e “difusores” desta “cultura modular” é fundamental para a sua capacidade de atracção e perenidade, mas isso não implica que o “esquema modular” assimile qualquer outro, sobrepondo-se-lhe, antes resulta em múltiplas coexistências aparentemente contraditórias e até paradoxais e numa infinidade de reinterpretações.

estão inscritas em termos históricos, numa dimensão de longa duração, a longue durée braudeliana.

«A foundational schema functions as a kind of template, a common underlying form that links superficially diverse cultural models and contributes to the sometimes ineffable sense of “style” or “ethos” characteristic of a culture. In more technical language, we can say that the foundation schema provides a “source domain” for the creation of a family of related cultural models. Moreover, the idea of foundational schema presumes that these models have evolved by means of a usually unconscious “schematising process”, a kind of analogical transfer that underlies the creative life of cultural models.» (Shore, 1996:117-118)

Quanto ao movimento, à «vida criativa dos modelos culturais», processa-se por meio do que Shore apelida transferência analógica, a qual permite o vai- vem entre os vários níveis cognitivos (das redes neurais aos esquemas matriciais e vice-versa), realizando assim a intrínseca ligação entre o corpo e a mente e entre estes e a sociedade; e inserindo a todos nos vários contextos e no devir histórico. São estes movimentos múltiplos que asseguram, por um lado a mudança, ao integrar experiências novas em modelos pré- existentes por meio da criação de analogias, um processo que conduz à constante criação de significado; e por outro, a permanência, a estabilidade necessária à assimilação desses significados e ao reconhecimento da sua familiaridade e respectiva integração em «modelos orientadores» da acção, que vão permitir, por seu turno «a inteligibilidade de experiências futuras» (Shore, 1996:157). Sem esta tensão entre mudança e permanência não há possibilidade de criar significado, logo não há cultura, logo, a crer em Geertz, também não há humanidade. Mas o que é que permite a permanência dessa tensão, ou seja, o movimento na estase, a multiplicidade na unidade, a liberdade no determinismo?

Shore encara a transformação como um processo metonímico, porque o novo estado é sempre baseado no anterior, ou seja, participa dele, transcende-o na medida em que o incorpora, e consegue-o porque os modelos são ambíguos, dados à pluralidade das leituras, dependentes de experiências, necessidades, sentimentos, o que modera as respostas e permite a integração do novo, que pode assim surgir como familiar48 e, por conseguinte, despido do perigo sempre associado ao que é estranho e incompreensível. Mas a ambiguidade, que permite a mudança ao facilitar a integração da novidade, também pode paralisar ao indefinir ou eliminar os valores de referência, impedindo a

48

Introduz-se aqui o termo “familiar” em dois sentidos: o de “family ressemblance” de Wittgenstein, ou seja, a ideia de que os membros de uma determinada categoria, como os de uma família, podem estar relacionados entre si sem que todos tenham obrigatoriamente que partilhar determinada propriedade ou característica (Lakoff,1987:12); e no sentido de doméstico (conhecido) e afectuoso.

acção ou a tomada de decisões por ausência de orientação. Daí a necessidade da face estabilizadora dos modelos culturais que, reduzindo a ambiguidade, resolvem parcialmente este problema, “apontando” certas escolhas na medida em que as tornam cognitivamente mais visíveis e emocionalmente mais aceitáveis. (Shore, 1996:305) A face estável dos modelos culturais inscreve-se na história, como “rastos” deixados impressos num caminho como sugere Barth (1987:83), ora se se inscrevem na história pressupõem tempo, tempo entendido simultaneamente como devir e permanência. É a inscrição no tempo que permite a familiaridade, que como já vimos é condição paradoxal da integração da novidade, da criação constante de significado no vai- vem analógico entre os diversos níveis cognitivos. Mas o significado só o é, ou só se torna “significado para mim”, se resulta da construção de relações entre entidades à partida desconexas, e a construção dessas relações não depende dos princípios da lógica clássica, nomeadamente o princípio da não contradição; muito pelo contrário, depende de um processo de participação, unificador, ligado a experiências concretas, muitas vezes físicas, e da apreciação emocional das mesmas, donde a importância atribuída ao «lado ausente da mente» na construção do significado e portanto, no conhecimento.

«Haskell characterizes the absent half of the mind as “hot cognition”, by which he means the emotional aspect of cognition, which is certainly missing from the kinds of informational models discussed above. Haskell’s inclusion of feeling as an aspect of thinking is an important post- Cartesian corrective to “cold” and relatively disembodied theories of cognition. I prefer to characterize the crucial missing dimension of mind as its orientation to meaning construction49. (Shore, 1996:326)

Curiosamente, os povos Bantu parece sempre terem considerado o conhecimento, a inteligência humana, como um composto indissolúvel de razão e emoção, fisicamente sediado no coração, o lugar onde mais vivamente sentem o impulso para a acção:

«En effet, ce n’est point dans la tête mais dans le cœur que ces derniers [os Baluba] (comme d’ailleurs beaucoup de peuples africains), placent le siège du principe de la vie sensible et raisonnable. Aussi ne peuvent-ils comprendre pourquoi nous portons la main au front pour indiquer que nous pensons à quelque chose. C’est au cœur, leur semble-t-il, qu’il faudrait la porter. Ils paraissent bien souvent confondre le cœur de chair avec l’âme raisonnable qui y opère ; mais la confusion est plus apparente que réelle. Ils ont tant de peine à exprimer leur notion de ces êtres immatériels, qu’ils les désignent par le siège où ils croient sentir le plus vivement toute leur action. » (Hegba, 1998:125)50

Mas o que parece fundamental nesta complexa exposição da relação entre o movimento e a estase do fenómeno cultural é a relevância do tempo e da emoção no processo de criação de significado e, portanto, de conhecimento, e o facto de ser precisamente esta

49

permanência relativa que induz a mudança ao permitir a integração da novidade. Muito diferente parece ser a ideia comum, na nossa época de apreço pela velocidade estonteante e ânsia pelo imediato, que facilmente associa eficácia a rapidez de resposta e conhecimento a quantidade de informação. No entanto, esta reificação pós- moderna do movimento e da contingência atomizada é fácil de compreender à luz da aceleração introduzida pelos meios de comunicação e transporte por um lado e da percepção de dissolução de fronteiras induzida, quer pela pluri-actividade, quer pelos encontros multiculturais, quer pelos avanços do conhecimento científico, que criam, em conjunto, a sensação inquietante de ausência de limites e questionamento de toda a solidez. E no entanto, como já foi apontado, uma certa permanência é necessária à própria prossecução da mudança; é necessário criar significado reinterpretanto sistematicamente o novo, de modo a adaptar os modelos culturais e mesmo, neste caso, os esquemas matriciais profundos, ao mundo globalizado. Várias pistas já foram traçadas apesar da relativa novidade do fenómeno e são essas hipóteses que se procurará passar em revista.