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3. A representação social

3.3. A representação social propriamente dita

O conceito de representação social foi inicialmente proposto por Serge Moscovici na sua obra de 1961, «A psicanálise, sua imagem e seu público». No entanto, o interesse e a projecção deste conceito, “que conjuga e toma igualmente em consideração as dimensões cognitivas e as dimensões sociais da construção da realidade” (Garcia, 1988:25), só viria a acontecer mais de dez anos depois, em meados dos anos 70, quando as concepções cognitivistas começavam a ser questionadas. De conceito dilecto de uma corrente da psicologia social, as representações sociais constituíram-se em instrumento transdisciplinar no início da década de 90, por se situar num ponto de intercepção entre o psicológico e o social (Jodelet, 1993: 40). Esta transversalidade e complexidade, que é fonte da sua riqueza heurística, é simultaneamente causa das suas debilidades, nomeadamente em termos de delimitação do objecto e operacionalização79.

O conceito de representação social interessa aqui na medida em que parece, por um lado, o que melhor traduz a natureza e a funcionalidade do conhecimento do senso- comum, e por outro, o que está mais directamente envolvido com a componente afectiva da comunicação.

3.3.1. O carácter da representação social

A primeira ideia que transmite o conceito de representação social é de que se trata de uma concepção híbrida a todos os níveis. O lugar da sua existência é a própria intercepção dos polos contrários. Desde logo é interface entre o psicológico e o social, e portanto entre o sujeito individual e a interacção e intercomunicação colectiva que constituem o social. Nesta medida, faz a ponte entre o sujeito e o objecto do seu conhecimento, pois é “representante mental do objecto que restitui simbolicamente” e como tal “transporta a marca do sujeito e da sua actividade” (Jodelet:1993:37). A representação social é a interpretação que um sujeito faz do objecto, por isso este surge

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“Il s’agit de comprendre, nom plus la tradition mais l’innovation, non plus une vie sociale déjà faite mais une vie sociale en train de se faire” (Moscovici, 1993: 82).

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O conceito de representação social é um “concepto marco que apunta hacia un conjunto de fenómenos y de procesos más que hacia objetos claramente diferenciados o hacia mecanismos precisamente

simultaneamente determinando o estímulo e a resposta 80. Mas o objecto é mais do que a interpretação que o sujeito faz dele, pois este impõe ao sujeito as condições da sua própria interpretação, embora não de forma linearmente determinista. (Garcia, 1988:26) A representação social constroi-se no cruzamento entre a estrutura e a dinâmica, é simultaneamente pensamento constituído e pensamento em constituição e neste sentido grelha de interpretação da realidade e mecanismo interveniente na elaboração da própria realidade. (Garcia, 1988:36) Esta qualidade de meio-termo entre a rigidez das estruturas e a fluidez das contingências situa a representação entre os conceitos de cultura e de estratégia e empresta-lhe qualidades simultâneas de inércia e plasticidade, na medida em que toda a construção de conhecimento novo depende do conhecimento já construído, mas apesar disso não deixa de ser conhecimento re-construído81. Por um lado, a representação social inscreve-se em “sistemas de pensamento mais abrangentes, ideológicos ou culturais”(Jodelet, 1993:35), por outro ela tem uma funcionalidade directa, não só no “acolhimento” e “inscrição” de todo o conhecimento novo, relativo ao objecto representado, na grelha de significados mais vasta e perene que podemos definir por cultura (se se lhe referirmos como esquema matricial), como no guiar do comportamento do sujeito em relação ao objecto. Ora o comportamente é presente e contingente, daí o poder-se inscrever a representação social na ordem do estratégico e até do táctico.

Em que sentido se pode falar da simultânea inércia e flexibilidade da representação social? Por um lado, ela possibilita a interpretação do novo à luz do adquirido82 e do socialmente sancionável83, o que acarreta uma certa inércia (mecanismo indispensável ao evitamento da alteridade absoluta); por outro, a integração do novo implica

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O esquema O-S-O-R (em que O significa organismo, S estímulo e R resposta) coincide com a proposta de Moscovici, crítica do esquema simplista S-R e que, em princípio, elimina o dualismo entre mundo interior e exterior. (Jodelet, 1993:39) Neste sentido nega tanto a objectividade do objecto, defendida pelo cognitivismo clássico, como o construtivismo radical que reduz a existência do objecto à sua

interpretação, pois “si bien es cierto que gran parte de los efectos que produce la realidad social pasan por la interpretatión que de ella hacemos, también es cierto que nuestra actividad hermenéutica está

determinada en buena medida por factores que son independientes de qualquier interpretación.”(Garcia, 1988: 26)

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O ífen aqui faz falta, na medida em que por re-construção se entende um construír de novo, ainda que utilizando materiais antigos mas renovados. A reconstrução, sem ífen, pode ser entendida como uma recuperação do antigo, mais num sentido museológico. A este respeito ver Moscovici, 1976: 56

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O termo “adquirido” refere-se directamente à cultura e implica uma noção de estase. Pensamos a cultura como padrão maleável, pois apesar de “dado”durante a primeira infância, e portanto do domínio do inconsciente, não deixa de ser adquirido pelo indivíduo e portanto sujeito à sua própria “construção”.

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Na sua obra ,“A psicanálise, sua imagem e o seu público”, Moscovici oferece um exemplo claro desta característica da representação social. O senso-comum transformou a consulta do psicanalista em confissão (ou seja um acto estranho foi comparado a uma prática tradicional dos católicos) e diminuiu ou aligeirou a importância da noção psicanalítica de libido por esta ser contrária à norma social.

constantes releituras da grelha, sempre provisoriamente estabelecida. Serge Moscovici compara esta característica das representações sociais ao acto de transformar um romance em texto dramático ou em argumento de filme (Moscovici, 1986:68), pois em qualquer destes casos a obra é simultaneamente a mesma e outra. As leituras mudam com os contextos ou com os suportes (por ex. o oral e o escrito) e mesmo que as peças que constroem a obra permaneçam as mesmas, o seu significado já é outro.

A representação social situa-se entre a simples percepção sensorial das coisas e a sua conceptualização, é portanto um meio-termo entre o abstracto e o concreto, entre as construções da ciência e as sensações dos objectos, pois ela concretiza o intangível e atribui significado ao simplesmente palpável.84 Por isso mesmo forma-se tanto a partir da reinterpretação de uma ciência, como no caso da psicanálise ou dos “mitos científicos” como o big bang ou a configuração do átomo (uma série de bolinhas à volta de uma bolinha maior) (Moscovici, 1992), como a partir da simples percepção repetida e partilhada das coisas85.

3.3.2. As funções da representação social

O próprio qualificativo “social” implica uma noção de intercomunicação e partilha. Uma das funções mais importantes da representação social é precisamente a de proporcionar um sentimento de pertença e de identidade comum, pois ela constroi-se pela interacção quotidiana e, neste processo, constitui-se como grelha de interpretação, facilitando a comunicação entre indivíduos que dela partilham e ainda como guia para a tomada de posição e a actuação destes mesmos indivíduos em sociedade. Sob este ponto de vista, a representação social é um conhecimento eminentemente prático, que serve a acção directa dos sujeitos sobre os objectos que os rodeiam e sobre outros sujeitos (Garcia, 1988: 35). São as representações que permitem a atribuição de significado aos objectos e às atitudes e orientam as condutas de cada indivíduo no sentido de obter as respostas mais adequadas, aquelas que confirmam a sua própria representação86. “Tal como as ideologias, ainda que de forma muito mais concreta (pois uma representação

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“They (as representações sociais) have a curious position somewhere between concepts whose purpose it is to distill the meaning of the world, to make it more orderly and perceptions that reproduce the world in a reasonable manner. They are always two-faced, as inseparable as the front and the back of a piece of paper; they have an iconic and a symbolic side.”(Moscovici, 1981 : 184)

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“By social representations, we mean a set of concepts, statements and explanations originating in daily life in the course of inter-individual communications.”(Moscovici, 1981: 181)

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“Toutes les interactions sociales sont en général canalisées de telle sorte qu’elles conduisent les individus qui sont la cible de telles croyances à fournir dans leur comportement des confirmations des croyances de ceux qui les perçoivent.” (Moscovici, 1986: 47)

está sempre directamente ligada ao objecto que representa), as representações sociais contribuem para a legitimação e a fundação da ordem social”(Garcia, 1988: 55).

É esta função legitimadora e reprodutora das relações sociais estabelecidas que imprimem no conceito de representação social a marca da afectividade e da inércia. Ao proporcionar a intercomunicação e ao estabilizar os significados, a representação social está na base dos universos consensuais87, contribui para a coesão dos grupos, para o desenvolvimento de relações privilegiadas entre os seus membros e portanto para a criação de um sentimento comum de pertença e permanência.

No entanto, e como já vimos, a representação social não é apenas conhecimento constituído, mas conhecimento em constituição constante. Como é que a própria conceptualização da representação social permite este movimento entre conservação e renovação? Integrando a novidade no padrão de conhecimento anterior e “forçando” este padrão a alterar-se o suficiente para abarcar a nova aquisição, sem perder os contornos fundamentais, ou seja sem perder a familiaridade para o sujeito. Este processo, está na base da própria formação das representações sociais e, segundo Moscovici, integra dois mecanismos inseparáveis: a ancoragem e a objectivação.

3.3.3. A formação das representações sociais

A representação social forma-se segundo dois movimentos opostos – top-down e

bottom-up. Ela tanto é produto de uma reinterpretação de teorias científicas, como no

caso clássico da psicanálise descrito por Moscovici (1976), como da abstracção de observações e interacções quotidianas repetidas, como no caso da representação da doença mental apresentado por Jodelet (1993). Tanto num como no outro caso, a representação forma-se no processo contraditório de assimilar o novo sem alterar a estabilidade do já adquirido. Para isso, desencadeiam-se dois mecanismos cognitivos fundamentais para a própria criação e transformação sucessiva das representações sociais: a ancoragem, que permite inscrever a novidade no esquema pré-constituído e assim tornar familiar toda a novidade; e a objectivação, que naturaliza as noções atribuindo-lhes uma imagem e uma realidade concretas e submetendo-as assim ao nosso controle (Moscovici, 1981: 193). O processo de ancoragem está intimamente ligado à atribuição de significado e valor a uma percepção estranha, à sua própria nomeação, sem a qual não é concebível nem, por conseguinte manejável e controlável. Ela constitui

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“Consensual universes are universes where each of us wants to feel at home, sheltered from areas of disagreement and from incompatibility.” (Moscovici, 1981: 188,89)

a faceta simbólica da representação social. Já a objectivação revela o seu lado icónico, pois é mediante este processo cognitivo que o sujeito concretiza uma ideia mal definida associando-a a uma imagem, a um objecto com formas determinadas. É o que acontece com a representação da psicanálise, exemplificada por Moscovici. Ao “transformar” a consulta em confissão, está-se simultaneamente a atribuir-lhe um significado e um valor familiares, e assim a tornar nomeável e dominável, o que era estranho, e a conceder-lhe uma forma, uma imagem…o divã facilmente associado ao confessionário. Um processo semelhante determina as atitudes em relação aos doentes de Sida, facilmente associada à sífilis e redespertando o medo antiquíssimo do contacto corporal (Jodelet,1993: 32). É como se fosse imprescindível reconstruír o equilíbrio dos significado depois de a novidade o abalar momentaneamente, buscando inabalavelmente o conforto da perenidade88. A representação social, como conhecimento do senso comum, envolve o estranho familiarizando-o, ao contrário da ciência, que ao questionar o familiar, o transforma em desconhecido (Moscovici, 1981: 191).

São estes dois processos, a ancoragem e a objectivação, que estão na base dos fenómenos de categorização social, e da derivação e inscrição da representação social tanto na cultura, como nas estratégias de vida.