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2. A dinâmica da cultura

2.3. A hipótese da creoulização

A globalização é um processo - apetece utilizar um pleonasmo - “globalmente abrangente”, no sentido em que a sua acção ou as suas consequência são sensíveis não só em termos extensivos, digamos territoriais, mas também intensivos, ou seja presentes em todos os domínios. E embora a globalização, em termos económicos, políticos e demográficos, seja um tema recorrente, são poucos os autores que procuram apreender as suas consequências a nível cultural, para além da discussão, mais política do que outra, da eventual macdonaldização da cultura mundial.

Ulf Hannerz é um dos teóricos que tenta explicar o fenómenos de «interconexão dinâmica» (Hannerz, 1992:167) das culturas complexas actuais apontando no sentido não de uma simples «modernização da indigeneidade» (Hannerz, 1996:53) mas de um movimento duplo em que se esta acontece, também a «indigeneização da modernidade» (Idem) não deixa de acontecer. Hannerz insere este processo complexo no modelo centro – periferia de Wallerstein, de forma a deixar claro que «os fluxos de significado», que fluem continuamente pelo conjunto, são assimétricos. É esta ideia que está na base do conceito de «cultura creoula» proposto para explicar a situação actual de «emergência de teias de significado hibridizantes51» (Hannerz, 1992: 264) num mundo

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Citando directamente Colle, P. Les Baluba, Dewit Ed., 1913: 478.

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profundamente assimétrico, mas em que as influências mútuas são inescapáveis e a mudança acontece precisamente quando procuramos tornar-nos mais ainda «como nós mesmos52» (Hannerz, 1996: 54).

A perspectiva de Hannerz de cultura complexa e cultura crioula são interessantes porque abrangem e integram uma variedade de questões realmente pertinentes para a discussão actual do conceito de cultura e sobretudo do seu movimento e interacção. A cultura complexa, entendida como «rede de perspectivas» ou «um debate em progressão»(Hannerz, 1992:266) dá-nos a noção conjunta da estrutura (a rede) imbuída de diversidade (as perspectivas), e do movimento, claramente associado à questão do poder (o debate em progressão).

Embora a visão de Hannerz seja bastante mais confusa em termos conceptuais do que a elegante construção desnivelada e interligada de Shore (esquema matricial, modelos culturais, modelos mentais), ele introduz a questão social e por conseguinte a política; não só através da ideia de distribuição diferenciada da cultura ao nível “nacional” - por meio de conceitos como as sub-culturas e até micro-culturas (ainda que os respectivos limites e formas de interacção e integração não sejam muito claros) - , mas também, a nível mundial, através do jogo das culturas complexas no sistema- mundo, assimétrico mas não- linear.

«The cultural processes of creolization are not simply a matter of a constant pressure from the center toward the periphery, but a much more creative interplay». (Hannerz, 1992:265)

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Citando Sahlins e referindo-se ao livro de Robert Klitgaard, Tropical Gangsters, sobre a

preponderância política da tribo Mongomo na Guiné- Equatorial, Hannerz refere: «One may suspect that the elders of the mysterious and powerful Mongomo clan, of the Fang people, are conducting their affairs, as Sahlins has it, to become “more like themselves”, developing their own tradition in the new habitat. To repeat, having a state machinery at their disposal for this purpose would seem like a marvellous

advantage.» (Hannerz, 1996:54) Embora a intenção seja claramente a de defender a continuidade do seu poder, os anciãos Mongomo, ao servirem-se para isso do aparelho de Estado (um aparato estranho) vão necessariamente mudar a forma de «ser como si próprios». Wole Soyinka (Expresso, Revista, 07.12.2002 ) refere um processo idêntico na Nigéria, a propósito dos esforços dos estados separatistas muçulmanos em ganhar autonomia, usando para isso a sharia, que deixa na prática de ser um código de direito religioso, para passar a funcionar como arma de chantagem política, tanto a nível nacional (face ao governo nigeriano), como internacional (face à comunidade internacional – embora este seja um conceito completamente indefinido). A mudança de significado, de facto, da sharia decorre de um esforço de manutenção e alargamento do poder de uma classe que procura assim ser «mais como ela própria». Outro tanto se pode dizer, entre nós, da ânsia imoderada de sucesso monetário e reconhecimento individual , que leva muitas pessoas, na nossa sociedade de direito inalienável e liberdade do indivíduo, a abrir mão quer da liberdade quer da privacidade, para se expor nos meios de comunicação social (eles próprios garantes dessa liberdade), em troca de uma efémera visibilidade. Também aqui, ao procurar «ser mais como ela própria» os significados da nossa sociedade estão a mudar.

Os exemplos deste «jogo creativo» são múltiplos e vão desde a aceitação da world

music, ela própria «third world music of a creolized kind», até às grandes metrópoles

ocidentais com os respectivos «third- world within», passando pela influência de grupos de intelectuais terceiro- mundistas nos países ricos de acolhimento, por um lado, e nos respectivos países, por outro, e ainda salientando o peso dos «cosmopolitas», o grupo crescente de pessoas que se move de local para local, seja sempre entre as mesmas duas ou três regiões - como os cidadãos da periferia que se deslocam regularmente ao centro para estudar, trabalhar, visitar familiares e, obviamente, comerciar - seja indiferenciadamente, por motivos profissionais ou outros - como os quadros expatriados das transnacionais ou os funcionários das ONG’s.

O grande problema da noção de creoulização proposta por Hannerz, não estará sequer na ideia que ele procura transmitir, mas na palavra que utiliza. A expressão «creoulização» aponta para uma mistura de diferenças que culmina na produção de uma identidade nova, por conseguinte, numa homogeneização a prazo. Como o processo é apresentado em termos globais, a tendência seria a de uma crescente homogeneização mundial em termos culturais, ainda que, ao contrário da ideia da macdonaldização, esta não se caracterizaria por uma absorção acrítica da cultura do centro pelas periferias e semi-periferias, mas por um jogo de influencias mútuas muito mais complexo, ainda que, obviamente, assimétrico. No entanto, o próprio autor se dá conta desse problema e refere insistentemente que não é isso que pretende transmitir. Pelo contrário, o fulcro («the core») do seu conceito de cultura creoula é «a combination of diversity, interconnectedness, and innovation, in the context of global center-periphery relationships». (Hannerz, 1996:67) E nessa «combinação de diversidades» entram, não só culturas territorias, mas também aquelas que se formam precisamente da extraterritorialidade crescente, motivada pelas intensas trocas e migrações que perfazem o quadro económico e demográfico da globalização. A cultura mundial («world culture») seria portanto a resultante desta «organização da diversidade» (Idem:102). Compreende-se esta opção de Hannerz pela metáfora creoula se percebermos que pretende através dela negar, quer a ideia de «mosaico cultural», uma justaposição simples de modelos diferentes que coexistiriam uns ao lado dos outros sem se influenciarem mutuamente, preservando assim as suas respectivas “purezas”; quer a da homogeneização directamente induzida pelo centro, sem qualquer contrapartida. Sob este ponto de vista, a hipótese da creoulização surge como a alternativa que melhor espelha a realidade presente do mundo em interconexão global, que sem velar o peso do

poder político e económico do centro na determinação das assimetrias dos fluxos de significado, não deixa de valorizar as múltiplas interpretações e combinações possíveis destes fluxos, que determinariam a «organização da diversidade» que Hannerz concebe como o «fulcro» da sua concepção de «creoulização», melhor transmitida, em termos imagéticos, através dos quadros do pintor russo Kokoschka, assim apreciados por Gellner: «The riot of diverse points of colour is such that no clear pattern can be discerned in any detail, though the picture as a whole does have one.»53

Hannerz confunde demasiado os conceitos e os planos de análise, ou pelo menos não os define de forma clara, mas a ideia que pretende transmitir é bastante interessante e correcta, muito embora a expressão que utiliza possa não ser a mais eficaz por, em última análise, sugerir um processo de homogeneização cultural que ele próprio pretende negar. Além disso, a sua noção de hibridização sistemática levanta ainda o problema da possibilidade da comunicação, que tem por base um jogo subtil entre identidade e ambiguidade. Tem, no entanto, pelo menos dois grandes méritos; por um lado, a associação explícita que faz entre a confluência da diferença e a criatividade54; por outro, a ideia da influência mútua independentemente da posição de cada uma das partes em termos de correlação de forças55, o que vem negar as premissas de correntes anteriores, a da multiculturalidade, ou teoria da justaposição de culturas, e a da interculturalidade, que pressupõe a impossibilidade do jogo de influências mútuas, a não ser em situações de equivalência de poder.

A teoria da multiculturalidade que aposta na manutenção de “purezas” ou “genuinidades” culturais inexistentes não merece aqui referência, primeiro porque está completamente ultrapassada, não podendo explicar os complexos processos de interacção cultural que são a norma, não só do nosso presente globalizado mas de toda a história humana; segundo, porque não é uma teoria de mudança cultural mas de conservação de uma cultura substanciada, cuja pertinência teórica já foi negada.

Quanto à teoria da interculturalidade, ela merece alguma atenção, também por dois motivos, pelos menos. Porque se trata de uma teoria da mudança, ainda que condicionada, e porque teve e ainda tem uma importância bastante grande no domínio da gestão de multinacionais.

53

Ernest Gellner (1983), Nations and Nationalism, Blackwell, Oxford: 139, cit. in: Hannerz, 1996:65.

54

«(...) the coming together of distinct flows of meaning results in a generative cultural process.» (Hannerz, 1996: 61)