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Parte II – Os conceitos aplicados

2. A cultura organizacional

2.1. A perspectiva da integração

No entanto, encarar a empresa como uma «ordem permanentemente negociada» implica assumir o conflito e a “fragmentação” como um estado não só constante, como perfeitamente saudável e “normal”, o que contraria a ideia tradicional de cultura, como um conjunto de valores e práticas partilhadas por um grupo, no caso presente o grupo constituído pelos membros da organização. Aliás, umas das principais funções da cultura organizacional, na sua formulação clássica, tal como a define Edgar Schein, é

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Albino Lopes (1990:66-67) refere pelo menos três autores que apontam este problema, Sainsaulieu, no prefácio à 2ªedição, de 1985, da obra L’identité au travail; Chatelât e Vala, Benedita e Lima que inclusive detectaram esse mesmo problema em Portugal.

precisamente promover a integração interna, assim como a adaptação da organização, tomada como um todo, ao meio externo.

«Culture can now be defined as a pattern of basic assumptions, invented, discovered, or developed by a given group, as it learns to cope with its problems of external adaptation and internal integration, that has worked well enough to be considered valid and, therefore is to be taught to new members as the correct way to perceive, think and feel in relation to those problems.» (Schein, 1990:111)

A definição de Schein destaca o carácter exclusivamente funcionalista, mesmo instrumental deste constructo, cuja validade depende da capacidade de resolver problemas práticos, e que é também globalmente normativo, já que pretende transmitir «a maneira correcta» (no singular) de percepcionar, pensar e sentir, no domínio prático delimitado pelo padrão que configura a cultura de uma determinada empresa. Nesta definição, como em todas as que se inscrevem na concepção integracionista de cultura organizacional, a ambiguidade não tem lugar; pelo contrário, todos os membros manifestam uma clareza excepcional a propósito do seu papel dentro da organização, e todas as manifestações da respectiva cultura são coerentes entre si, contribuindo precisamente para redesenhar consecutivamente o mesmo padrão básico, em que todos se revêm (Martin, 1992:45). É evidente que a observação, mesmo superficial, da actividade de uma empresa, levanta muitas dúvidas sobre tanta coesão e coerência, mas isso deve-se, segundo Schein, ao facto de observarmos apenas o primeiro nível de cultura, constituído pelos «artefactos», manifestações múltiplas e palpáveis, mas difíceis de decifrar. Só um aprofundamento da investigação, que atinja o terceiro nível de cultura, ou seja, as concepções básicas sobre que a mesma assenta, é que permite compreender a sua lógica e coerência internas, de outro modo soterradas sob amálgamas de «artefactos» ambíguos ou mesmo contraditórios entre si (Schein, 1990: 111,112)123. Com base neste raciocínio, Schein resolve o problema da evidência da contradição dentro das organizações, considerando-a uma ilusão superficial.

«Once one understands some of these assumptions, it becomes much easier to decipher the meanings implicit in the various behavioural and artifactual phenomena one observes. Furthermore, once one

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Edgar Schein considera que o conceito de cultura organizacional abrange três níveis de profundidade diferente. O mais superficial são os artefactos que incluem tudo o que na organização é palpável ou visível, como por exemplo a disposição do espaço, o tipo de vestuário, a forma como as pessoas se dirigem umas às outras, o próprio cheiro, e também os produtos, a documentação escrita etc. O segundo nível é constituído pelos valores, as normas, a ideologia, as filosofias e, por último, o nível mais profundo compreende as concepções básicas inconscientes, que determinam a percepção, o pensamento, o

understands the underlying taken-for-granted assumptions, one can better understand how cultures can seem to be ambiguous or even self-contradictory.» (Idem:112)

Partindo do princípio que uma organização é unida e coesa em torno das concepções básicas que enformam a sua cultura, é evidente que o desacordo e o conflito são estigmatizados e os seus protagonistas afastados, o que acaba por promover, senão o consenso, pelo menos o conformismo. Nestas condições a cultura apresenta-se como uma forma de controle e manipulação dos indivíduos, uma espécie de engenharia de valores ocultadora do carácter político da vida das organizações que, tanto pode ser

apresentada como estando sob a alçada da administração124, como pode constituir uma forma emergente de controle normativo,

a que todos se submetem quase inconscientemente, inclusive a própria administração (Martin, 1992:63)

Se uma cultura organizacional é apresentada como o produto destilado das boas soluções para os problemas, então a inovação é evitada e toda a mudança encarada como dramática, até porque, quase por definição associada a incerteza, ambiguidade e conflito, é concebida como manifestação do colapso próximo da cultura em que todos se revêm (Martin, 1992:64). Deste modo, como não concluir que a concepção integracionista de cultura organizacional deixou de fazer sentido num momento em que a organização científica do trabalho, que tal como ela baseia a sua consistência no paradigma funcionalista/ positivista, atingiu o limite das suas potencialidades? Como não concluir pela sua inapropriação a um ambiente externo instável, em que a inovação e a criatividade são factores de sobrevivência? No entanto, uma boa parte da literatura sobre a temática baseada nesta concepção, sobretudo a mais popular e de divulgação, visa exactamente construir e legitimar uma espécie de neo-taylorismo, em que a inclusão de variáveis soft, como a motivação através da manipulação emocional, permitiria assegurar a continuidade de um modelo que dissocia a função económica do ser humano da sua realização pessoal total, e encara a empresa como um mecanismo harmónico e coerente submetido ao objectivo comum supra-ordenado de produzir lucro. Uma questão ainda se coloca, e que surge aparentemente como uma contradição. Como conciliar toda uma política de integração emocional do indivíduo numa organização, com o carácter temporário da sua presença na mesma. Porque a verdade é que as empresas que funcionam segundo modelos neo-tayloristas, são precisamente aquelas

que retiram os maiores lucros da alta rotatividade de uma mão-de-obra barata e sem perspectivas de desenvolvimento profissional. Como conciliar engenharia de valores, que joga com a totalidade do indivíduo, nomeadamente a sua faceta afectiva, e turn over constante? Como é possível, nestas circunstâncias, impedir a anomia que a própria noção de cultura organizacional procura combater? Resta concluir com Calas e Smircich que a ideia da integração pode ainda ser dominante, mas já está morta125 (Martin, 1992:68).