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A assistência à saúde de pessoas trans

No documento Transexualidades: um olhar multidisciplinar (páginas 190-192)

Para que profissionais e disciplinas possam se encontrar em torno deste “objeto comple- xo”,4 é necessária uma compreensão de saúde que, minimamente, acompanhe a definição da

OMS, para a qual ela é “um completo estado de bem-estar físico, mental e social e não mera- mente a ausência de doença”. (WHO, 1948)5 Embora este conceito venha contribuindo para ga-

nhos políticos mundialmente importantes, ele já mereceu críticas de diferentes autores, como por exemplo, do psicopatologista do trabalho, Christophe Dejours. Para o autor, esse “completo estado de bem-estar e conforto” é impossível de definir, é muito vago, mas, no entanto, é “uma ilustração de alguma coisa que não se sabe muito bem em que consiste, mas sobre a qual se tem esperança”. (DEJOURS, 1986) Por isso, ele propõe que consideremos saúde não como um estado de bem-estar absoluto e permanente, mas um estado do qual procuramos constantemente nos aproximar ou uma meta. Há uma crítica ao conceito de saúde da OMS, semelhante à de Dejours, feita pelo epidemiologista Francisco Bastos (2011).

O campo da saúde acumulou conhecimentos e experiências que oferecem elementos para esta definição mais ampla de saúde. Não irei me aprofundar na discussão conduzida pelo autor, mas vale destacar sua análise da angústia. A angústia é penosa, uma causa de sofrimento, mas ter saúde não é absolutamente não ter angústia porque existem pessoas com boa saúde que se sen-

4 O tema da complexidade também vem sendo debatido no campo da saúde coletiva por alguns autores, que por isso foram incorporados a esta vertente. (ALMEIDA FILHO, 1997; TARRIDE, 1998; SAMAJA, 2000; PAIM;ALMEIDA FILHO, 2000) Em todos eles, é enfatizada a necessidade de a ciência resgatar sua capacidade de gerar sínteses diante de um mundo cada vez mais fragmentado e com graves desafios a serem enfrentados. Tal capacidade, relegada a segundo plano ao longo da história da ciência ocidental, é considerada um atributo essencial na construção de um novo mo- delo de ciência que supere as dicotomias simplificadoras e alienantes da ciência normal. (PORTO; ALMEIDA, 2002) 5 Para uma discussão apurada das diferentes apreensões do conceito de saúde, ver Scliar (2007). Para acesso à Carta

de Princípios da fundação da OMS (Organização Mundial Saúde), conferir a página eletrônica <http://www.fd.uc.pt/ CI/CEE/OI/OMS/OMS.htm>.

As relações de trabalho como um aspecto da assistência à saúde de pessoas trans ‡ 189

tem angustiadas. Portanto, não se trata de acabar com a angústia, mas de “tornar possível a luta contra ela, de tal modo que ela se resolva, que se acalme momentaneamente, para ir em direção a outra angústia”. (DEJOURS, 1986)

O autor desenvolve suas análises focando no ambiente de trabalho e nas suas angústias, mas, fazendo uma breve e livre apropriação da definição de Dejours, podemos imaginar que a ação técnica multiprofissional e multidisciplinar junto a pessoas transexuais cumpra um papel semelhante: não a de resolver todos os problemas de forma definitiva, mas de proporcionar a sujeitos, que experimentam uma permanente angústia com suas características físicas, a possi- bilidade de enfrentá-la nas condições que escolhem.

Há ainda outros aspectos do SUS que a questão da transexualidade põe em discussão, como a de universalidade e equidade dos atendimentos. Recentemente, em entrevista feita por Clara Becker (2010) para a revista Piauí, sobre o trabalho desenvolvido no HUPE-UERJ com pessoas transexuais, uma profissional de saúde declarou seu descontentamento com a realiza- ção de cirurgias ligadas ao processo transexualizador no âmbito do SUS. Ela questionava não apenas a necessidade dos procedimentos, mas o direito destes/as usuários/as à atenção em saúde, pondo em discussão a universalidade do atendimento e o princípio da equidade que reconhece as diferenças e diversidade de interesses da população usuária. Os profissionais que se dispõem a integrarem um programa transexualizador estão, portanto (ainda que desconheçam), radicali- zando nos princípios do SUS6 e no ideário da Reforma Sanitária.7

Embora o discurso técnico em saúde, em geral, tenda a tratar a transexualidade como uma experiência padrão, caracterizada de maneira uniforme, há uma pluralidade de experiências de matizes muito diversas quando nos aproximamos ou vivemos com pessoas que se afirmam tran- sexuais ou que têm na transexualidade uma vivência.8 Do ponto de vista das Ciências Sociais e

da saúde coletiva, tal pluralidade já é amplamente reconhecida, conforme Bento (2006). Há pessoas transexuais que desejam mudanças corporais que modifiquem seus “caracte- res sexuais secundários”, bem com seus órgãos sexuais, há outras, no entanto, que não desejam qualquer modificação corporal (e encontram formas satisfatórias de vida nestas condições). Há ainda outras que desejam realizar alguns, mas não todos os procedimentos atualmente dis- poníveis nas ciências médicas. Há pessoas que vivenciam desconforto com o gênero com que foram assignadas ao nascerem, mas que sequer conhecem a categoria “transexual” e outras que conhecem, mas não se reconhecem como tal, preferindo ser reconhecidos como “gay”, “bicha”, “lésbica”, “transgênero”, “travesti” ou quaisquer outras categorias.

A estruturação de um modelo de atendimento para transexuais no SUS produziu um con- junto de novas e complexas questões relacionadas a esta crítica da visão da transexualidade como experiência padrão. Uma delas é a da necessidade de despatologização do transexualis-

6 Lei Orgânica da Saúde. (BRASIL, 1990)

7 Sobre o ideário da Reforma Sanitária, ver Fleury (2009).

8 Utilizamos como referência o conceito de transexualidade enunciado por Bento (2006, p. 15), para quem ela é “uma experiência identitária, caracterizada pelo conflito com as normas de gênero. Essa definição confronta-se à aceita pela medicina e pelas ciências psi que a qualificam como uma ‘doença mental’ e a relaciona ao campo da sexuali- dade e não ao gênero. Definir a pessoa transexual como doente é aprisioná-lo, fixá-lo em uma posição existencial que encontra no próprio indivíduo a fonte explicativa para seus conflitos, perspectiva divergente daqueles que a interpretam como uma experiência identitária”.

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mo, da disforia de gênero ou do transtorno de identidade de gênero, atualmente demandada por alguns ativistas, profissionais dos serviços e intelectuais, na forma de campanha com den- sidade internacional. De fato, a patologização da transexualidade e da intersexualidade está baseada no pressuposto de que os gêneros são determinados pelo dimorfismo dos corpos e constitui um determinismo apoiado no saber/poder médico.

A realidade atual dos serviços disponíveis no SUS é a da escassez de recursos técnicos e de vagas disponíveis, além de outras dificuldades institucionais para suprir uma demanda que é crescente. Além disso, o mercado privado da saúde, a chamada saúde suplementar, não foi ain- da levado a assumir os procedimentos ligados ao processo transexualizador de seus usuários/ clientes. Ainda não há por parte da ANS qualquer iniciativa nesta direção. Assim, no caso de procedimentos que não são experimentais, como no caso das Male to Female (MTF), os planos e seguros de saúde não dão cobertura para os procedimentos, mesmo havendo um número na Classificação Internacional de Doenças (CID). Assim, a realidade da maioria dos programas é de filas para realização de procedimentos que podem levar os indivíduos (após completarem os dois anos regulamentares para emissão de laudos autorizativos) a permanecerem outros tantos, até verem realizadas todas as transformações corporais necessárias. As repercussões sociais da espera são evidentes: prolonga-se desnecessariamente um estado de insatisfação e, em muitos casos, de ausência de cidadania em seus termos mais elementares (direitos civis, direito de propriedade, direito ao trabalho).

A política estatal de saúde pública brasileira, ao construir o modelo de atendimento aos transexuais no SUS, incorporou em grande parte este determinismo, distinguindo quem pode e quem não pode realizar transformações corporais a partir de critérios psiquiátricos. Este mo- delo favorece a exclusão de indivíduos que não possuem todas as características esperadas de um “transexual verdadeiro”. Além disso, tal modelo condiciona a aquisição de um novo nome e identidade civil à submissão ao poder da biomedicina na forma de laudos que embasam a Justi- ça na tomada da decisão de retificar ou não o nome e o sexo do/a pessoa transexual.

No documento Transexualidades: um olhar multidisciplinar (páginas 190-192)

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