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Transexualidade e normas de gênero: contribuições para o debate bioético sobre

No documento Transexualidades: um olhar multidisciplinar (páginas 103-106)

as práticas de modificações corporais do sexo

Daniela Murta

Apresentação

A condição transexual é um fenômeno complexo no qual o indivíduo se apresenta a partir da descrição de um sentimento de não pertencimento ao sexo anatômico, sem que isto impli- que em uma negação da sua anatomia sexual, isto é, esta negação não configura um distúrbio delirante. Tampouco se trata também de um quadro com bases orgânicas, como é o caso do hermafroditismo ou outras anomalias endócrinas. (CASTEL, 2001) Para a psiquiatria, trata-se de uma desordem mental, denominada até a recém-publicação do Manual Diagnóstico e Estatístico das Desordens Mentais (DSM V) de Transtorno de Identidade de Gênero,1 que se caracteriza pela

certeza do indivíduo de pertencer ao sexo oposto àquele indicado por sua genitália, demons- trando o desejo de viver como membro desse sexo com o qual se identifica e, em geral, alterar sua aparência corporal, incluindo os órgãos genitais. (LOBATO, 2001)

1 No DSM V, publicado em 2013, pela Associação Psiquiátrica Americana (APA), a transexualidade retornou à categoria de Disforia de Gênero, primeira categorização psiquiátrica do transexualismo, atendendo às críticas sobre o potencial estigmatizante do diagnóstico de Transtorno de Identidade de Gênero. Embora tal mudança venha sendo reconhecida como uma conquista na luta pela despatologização da transexualidade, é importante ressaltar que a necessidade de avaliação profissional e autorização médica permanecerão como requisitos para a realização de procedimentos de modificação corporal em transexuais.

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Embora a transexualidade faça parte da literatura psiquiátrica desde o século XIX, através de autores como Von Krafft-Ebing (1840-1902) e Magnus Hirschfeld (1868-1935), de modo geral se localiza o surgimento desse fenômeno fundamentalmente a partir da primeira intervenção terapêutica tornada pública, que foi a cirurgia do ex-soldado do exército americano George Jorgensen, realizada por Christian Hamburger, em 1952, na Dinamarca. (FRIGNET, 2002) Esta cirurgia, que se tornou a matriz das transformações corporais demandadas por transexuais no mundo inteiro, teve um significado histórico que não se refere apenas à possibilidade de mudar médica e cirurgicamente a aparência, mas por ter dado início a uma ampla discussão em torno da identidade sexual e das categorias de gênero. (CASTEL, 2001) Além disso, esta intervenção inaugural suscitou a problematização das consequências deste procedimento, que teve um au- mento expressivo de demanda e passou a ser realizado em diversos países.

Nesse contexto, teorizações sobre a transexualidade começaram a tomar força, o que, ao delinear a produção de um saber específico e a proposição de modelos de tratamento para esses casos, constituiu o que Bento (2006) denomina como “dispositivo da transexualidade”. A inter- pretação patológica dessa condição, baseada na incoerência entre o sexo e o gênero, em um contexto de reconceitualização do sexo e de viabilidade técnica para a modificação da anatomia sexual, consolidou a intervenção sobre as características sexuais do corpo como a terapêutica mais adequada para a transexualidade, tornando necessário formalizar esta prática assistencial e normatizar os procedimentos de atenção. (MURTA, 2007; ARÁN; MURTA, 2009)

Frente à necessidade de delimitar os parâmetros formais para a realização de modifica- ções corporais do sexo em transexuais, no final da década de 60, pesquisadores afiliados às principais instituições de assistência e pesquisa sobre o tema esboçaram os critérios de acesso e acompanhamento de pessoas que demandavam por redesignação sexual. Inspirados nos pro- tocolos utilizados com pacientes intersexos e referenciados nas especificidades da experiência transexual descritas por Harry Benjamin, em 1966, definiram como etapa primária do processo assistencial a avaliação psicológica dos candidatos às intervenções corporais, a fim de verificar a estabilidade de sua sensação de pertencimento ao sexo oposto e sua capacidade em estar ade- quado ao papel social do gênero com o qual se identifica, após a cirurgia de transgenitalização. Assim, para ser admitido em um programa assistencial e realizar intervenções sobre suas carac- terísticas sexuais, o paciente deveria comprovar junto à equipe médica seu status de “transexual verdadeiro”, isto é, demonstrar que atende aos padrões de comportamento do sexo com o qual se identifica e não ter qualquer ambivalência em relação à cirurgia genital, recurso fundamental para reestabelecer a coerência entre o corpo e o gênero. (MURTA, 2011)

A partir destas premissas e com o objetivo de inscrever as redesignações sexuais em um projeto terapêutico formal, em 1973 Norman Fisk fundamenta uma nosografia psiquiátrica para o transexualismo, ancorada fundamentalmente num autodiagnóstico, que, em 1977, foi incor- porado à categoria psiquiátrica de Disforia de Gênero.2 Com um propósito puramente funcional,

esta denominação, que designa a insatisfação decorrente da discordância entre o sexo biológico e a identidade sexual de um indivíduo, passou a descrever a experiência transexual como uma

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condição médica cuja única possibilidade de tratamento seria a realização da cirurgia de con- versão sexual e a utilização de hormônios.

Em 1980, a condição transexual foi agregada ao manual diagnóstico psiquiátrico DSM III e formalizou um lugar na psiquiatria e na medicina, além de legitimar os critérios diagnósticos e a descrição dessa desordem. Posteriormente, em 1994, com a publicação do DSM IV, o termo transexualismo foi substituído pelo termo Transtorno de Identidade de Gênero (TIG),3 que, apesar

de ter sido realocado à categoria de Disforia de Gênero, na última versão do manual de diag- nósticos psiquiátricos da APA, permanece como critério fundamental para a realização de modi- ficações corporais do sexo, principalmente a cirurgia de transgenitalização, em pessoas que se identificam como transexuais. (DSM-IV-TR, 2002)

Diante do que foi exposto, é possível perceber que a categorização da transexualidade como entidade nosológica psiquiátrica e a definição de seu tratamento, como a adequação das características físicas à identidade de gênero daqueles que vivenciam esta experiência, está relacionada à necessidade de formalização da prática de modificações corporais do sexo, no século XX. O imperativo de estabelecer critérios seguros de acesso às técnicas de alteração das características sexuais e protocolos éticos de atenção que atendessem à “finalidade terapêutica” de restauração da coerência entre o sexo e o gênero e, portanto, da normalidade, tornaram a confirmação do diagnóstico de “transexualismo verdadeiro” condição para a realização de tais procedimentos e a prioridade da assistência à realização da cirurgia de redesignação do sexo.

Embora a concepção patologizada da transexualidade e a noção de correção do sexo como terapêutica indicada nesses casos tenham sido de grande importância para o acolhimento da demanda por modificações corporais do sexo de pessoas transexuais, e tenham institucionali- zado esta prática de saúde, é possível afirmar que a permanência da referência psiquiatrizada e corretiva do atendimento de pessoas que vivenciam esta experiência tem se mostrado uma questão complexa. Se por um lado a compreensão da condição transexual como uma anorma- lidade garante o direito de transformar as características sexuais, sob a justificativa de que esta é uma necessidade médica e, nesse sentido, a redesignação do sexo tem um caráter de bene- ficência por promover a saúde e o bem-estar de transexuais, por outro, sua qualificação como uma doença, cujo diagnóstico é condição de acesso ao cuidado, e o propósito normalizador das intervenções médicas limitam os direitos de autodeterminação do gênero e de dispor do próprio corpo, dos sujeitos que se identificam como trans.

Assim, considerando o paradoxo de que, ao mesmo tempo em que a assistência a transe- xuais se constituiu como um benefício a esta população, o seu modelo patologizado e corretivo restringe o direito à atenção médica e a autonomia de pessoas trans, pretende-se aqui discutir o que está em jogo na disponibilização das tecnologias de modificação corporal do sexo para transexuais. A partir da análise crítica do paradigma normativo que norteia a compreensão da transexualidade como uma patologia e seu tratamento como a correção do sexo anatômico, objetiva-se problematizar o modelo atual de atenção e discutir os dilemas bioéticos que se co- locam a partir da medicalização e normatização da experiência transexual.

3 Na Classificação Internacional de Doenças – 10ª versão (CID-10), o transexualismo está incluído entre os Transtornos de Identidade Sexual, junto ao travestismo e aos transtornos de identidade sexual na infância.

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Sobre o paradigma normativo da transexualidade como transtorno

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