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Breves considerações sobre a construção do sentimento de identidade sexual/sexuada

No documento Transexualidades: um olhar multidisciplinar (páginas 56-59)

De alguns anos para cá, sobretudo nos países de língua latina, existe uma tendência em fazer a distinção operacional entre identidade sexual e identidade sexuada. Nos países anglo- saxões fala-se de Gender Identity (identidade de gênero) para se referir à identidade sexuada. Nestes países encontramos expressões tais como problemas de gênero, disforia de gênero, que são de pouco uso no universo psicanalítico.

Enquanto identidade sexual diz respeito ao sentimento de pertencer ao sexo biológico de- signado no nascimento e à psicossexualidade, a identidade sexuada nos reenvia ao sentimento de pertencer ao sexo culturalmente definido pelas construções sociais da masculinidade e da feminilidade (gênero) indicadas a cada um dos sexos biológicos. Contudo, identidade sexual e sexuada não são independentes, pois a identidade sexuada é construída em acordo com as normas determinadas pelo sexo biológico.

A expressão “identidade sexuada” tem a vantagem de eliminar toda predestinação identi- tária associada aos caracteres sexuais anatômicos subjacentes à formula clássica de “identidade sexual”. A identidade sexuada se refere ao fato de se reconhecer como menino ou menina face à diferença dos sexos. O “Eu” presente em nossos pensamentos nunca é neutro, pois nos sen- timos homem ou mulher. Isto faz com que nosso sentimento de pertencer a um sexo e a um gênero seja um elemento de base de nossa subjetividade.

O sentimento de identidade sexuada é finalização de um processo do qual fazem parte, dentre outros elementos, a representação psíquica do corpo pulsional, assim como a sua ima- gem. Por ser tributária dos fantasmas de quem acolhe a criança quando de sua chegada ao

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mundo e da dinâmica pulsional do recém-nascido, a representação do corpo próprio (FREUD, 1923, 1976), e mais tarde a aquisição da imagem corporal especular (LACAN, 1966), é uma cons- trução imaginária. Isto significa que o lugar que a criança ocupa no desejo de quem lhe deu vida psíquica é estabelecido muito antes que o sujeito seja pai ou mãe:1 todos nós possuímos imagos e fantasmas relativos ao ser pai e mãe, que serão evocados caso nos tornemos pai, ou mãe. Tais são as bases fantasmáticas, verdadeiro berço psíquico, oferecidas ao recém-nascido quando de seu nascimento, que alicerçarão a construção da psicossexualidade. Isto significa que tanto a representação psíquica, quanto a imagem que o recém-nascido cria do seu corpo, guardam relações diretas com a representação psíquica que o sexo anatômico da criança – mesmo antes do nascimento – possui no narcisismo de quem a introduz no simbólico.

O Eu é desde sua origem corporal: uma projeção mental de uma superfície. (FREUD, 1923, 1976) A formação da instância do Eu será fortemente determinada tanto pelas sensações que o corpo lhe envia – sensações internas derivadas das exigências pulsionais –, quanto pela “infor- mação libidinal” (AULAGNIER, 1979, p. 31), resultado dos investimentos libidinais dos pais, que se originam no mundo externo. Para que o Eu se constitua, é necessário que o corpo pulsional lhe informe seus limites e as referências que marcam suas fronteiras.

É a consolidação de uma crença que nos leva a dizer que somos homem ou mulher. Esta crença começa pela atribuição do sexo e pela designação do gênero que recebemos por quem nos acolheu no mundo e, posteriormente, pela inscrição no cartório civil. A partir daí, seremos tratados de acordo com os atributos do gênero que nos foram designados. Aos poucos, através do discurso dos pais, discurso este baseado em seus desejos, fantasias e crenças, e pelo lugar que ocupamos na família e na sociedade, tomamos conhecimentos de que somos menino ou menina e informados do lugar do qual deveremos responder, segundo as representações de gênero da cultura na qual nos encontramos inseridos. Esta crença será confirmada durante toda a vida pelo corpo, pela psicossexualidade e pela opinião comum.

Podemos dizer, então, que o sentimento de identidade sexuada é um sintoma, no sentido psicanalítico do termo: uma relação de compromisso entre as moções pulsionais em busca de satisfação e os limites impostos a essa satisfação pelos processos civilizatórios, com todos os elementos e variantes que ele comporta. O Eu nasce do conflito entre o Isso e o princípio de realidade. (FREUD, 1923, 1976) Ele é o resultado “consciente” dos processos de identificação e traduz o fantasma de uma síntese pontual que o sujeito faz quando diz “eu”.

As construções identitárias evocam duas modalidades identificatórias que lidam com pro- blemáticas distintas, e que devem ser tratadas separadamente para uma melhor compreensão dos mecanismos envolvidos: de um lado, o sentimento que pode ser traduzido por “eu sou menino”, ou “eu sou menina”, que se estabelece bem cedo, e que se relaciona com o modo de inserção na função fálica. De outro lado, o sentimento “eu sou masculino” ou “eu sou femini- na”, resultado das identificações secundárias relativas ao estádio do espelho. Este sentimento

1 As palavras pai, mãe, pais devem ser entendidas apenas como significantes, como funções, sem nenhum valor absoluto. A utilização de expressões tais como aqueles que acolhem a criança no mundo, aqueles que recebem a criança no mundo, ou ainda, aqueles que cuidam do recém-nascido, descreve melhor as organizações familiares da atualidade: famílias tradicionais, homoparentalidade, monoparentalidade, famílias reconstruídas, dilatadas e tantos outros arranjos que definem os laços afetivos que sustentam a circulação pulsional do recém-nascido.

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é tributário das representações sociais da masculinidade e da feminilidade e dos ideais cons- titutivos do sujeito. Isto significa que o conjunto dos movimentos psíquicos que leva o sujeito ao reconhecimento da diferença de sexo é dependente da situação edipiana e do complexo de castração. (CECCARELLI, 2005) Sua dinâmica só se completará na puberdade, transformando polaridade órgão genital masculino/castrado, em masculino/feminino, e a diferença dos sexos terá como base a realidade material pênis/vagina. (FREUD, 1923b, 1976)

Tais considerações elucidam a chamada “orientação sexual”: a escolha de objeto – a so- lução – heterossexual ou homossexual (identificações secundárias) nada tem a ver com o fato de se sentir homem ou mulher. A partir daí, compreende-se, por exemplo, a angústia que um menino pode sentir frente ao desejo de se identificar às prerrogativas femininas, sem que se estime uma menina.2 As crises comuns na adolescência quanto à orientação sexual não põem em dúvida a identidade sexuada do sujeito. Se, por outro lado, na adolescência o sujeito se questionar se ele é um homem, ou uma mulher, estamos frente a uma dinâmica pulsional total- mente diferente.

Hesitar, devido à resolução do complexo de Édipo, entre o desejo de penetrar, ou de ser penetrado, não coloca em dúvida que será como homem que o sujeito será penetrado por um homem, ou penetrará uma mulher. O travesti, ao usar roupas de mulher, ficar muito feminino ao usar as insígnias visuais do sexo feminino, sabe muito bem que ele é um homem, embora possa dizer que se sente muito feminina. Quanto ao transexual M->H (mulher->homem), ele se sente homem, e é como homem que sente atração por uma mulher: sua orientação é heterossexual.

O que se depreende do que foi dito é que ninguém nasce sexuado, posto que as bases que sustentam as identificações constitutivas do Eu e as futuras escolhas de objeto são vicissitudes das relações do recém-nascido com o Outro: “no psiquismo não há nada pelo que o sujeito possa situar-se como ser de macho ou ser de fêmea [...] aquilo que se deve fazer, como homem ou mulher, o ser humano terá sempre que aprender, peça por peça, do Outro”. (LACAN, 1985, p. 194) Feminilidade e masculinidade são representações do falo. Nessa perspectiva, é possível imaginar que, devido às variáveis que o sujeito deverá enfrentar na construção de sua psicos- sexualidade, a feminilidade, assim como a masculinidade, não coincidam com sua anatomia.

As transexualidades nos mostram que existem pessoas que vivem um profundo antago- nismo subjetivo entre identidade sexual e sexuada: “sinto-me uma mulher presa em um corpo de homem”, ou vice-versa. Tais sujeitos têm uma demanda vital de modificar o corpo – identi- dade sexual – para adequá-lo ao sexo a que, psiquicamente, sente-se pertencer.

O uso da palavra transexualidades, no plural, se justifica, pois a origem da inadequação entre corpo anatômico e sentimento de identidade sexuada não é a mesma para todos/as aque- les/as que se dizem transexuais. Ainda que possamos achar pontos em comum nos discursos manifestos destes sujeitos, a aparente semelhança pode camuflar uma grande variedade de discursos latentes e recalcados. Assim, falar de “transexual típico” seria tão inadequado quanto

2 Algumas passagens do Pequeno Hans podem ser interpretadas nesta direção. Em um diálogo entre Hans e seu pai a respeito de “seus filhos”, Hans responde: “Por quê? Porque eu gostaria tanto de ter filhos; mas eu nunca quero; eu não deveria gostar de tê-los.” (FREUD, 1909, 1976, p. 95)

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falar de “heterossexual típico”, de “homossexual típico”, ou de “travesti típico”: nada é “típico” na sexualidade humana.

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