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Semelhanças e diferenciações entre travestis e mulheres transexuais na literatura contemporânea

No documento Transexualidades: um olhar multidisciplinar (páginas 86-90)

É recorrente nos estudos sobre gênero a tentativa de descrever a identidade de gênero dos sujeitos, principalmente nos estudos que envolvem pessoas trans. Benedetti (2005, p. 113) faz esse esforço quando afirma que “as transexuais dominam uma linguagem médico-psicológica refinada, apoiam-se em escritos científicos dessas disciplinas para explicar e demonstrar seu modo de ser e evidenciar as diferenças entre sua condição e a das travestis”. Ainda segundo Be- nedetti (2005, p. 114), “as transexuais negam qualquer potencial erótico do órgão genital mas- culino, elas não aceitam utilizar o pênis para o prazer, porque, em sua visão, as mulheres não têm pênis”. Tal afirmação não pode ser tomada como padrão da vivência transexual do prazer. Bento (2006) nos conta que, apesar da afirmação de que “o transexual construído oficialmente não consegue tocar (na genitália) para fazer a higiene, tampouco para a obtenção de prazer”, na sua pesquisa encontrou transexuais que assumiam a vergonha em admitir que se masturbam, temendo serem desacreditados na sua transexualidade, afinal “se a ‘identidade transexual’ foi

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caracterizada pelo horror às genitálias, seria impensável, sob essa perspectiva, admitir que é possível obter algum tipo de prazer com elas”. (BENTO, 2006, p. 190) Como podemos perceber, não existe consenso nessas questões, o que confirma que a transexualidade é uma vivência singular, única, cuja experiência é intransferível e não moldável.

Outro ponto a ser destacado é aquele que diz respeito ao “ser mulher ou viver como ho- mem/mulher”. Neste caso, a literatura caracteriza as pessoas transexuais como aquelas que se sentem homens ou mulheres, opostamente ao corpo e genitália com os quais nasceram; a tra- vesti é localizada nessa literatura como uma pessoa que gosta ou se sente bem vivendo “como mulher”.

Então, a diferença aparece como algo relacionado à vivência interna do gênero. O “ser homem/mulher” parece indicar uma certeza interna que vai emergir no ethos de gênero e nas modificações corporais para tornar o corpo inteligível na cultura sexual. O “viver como mulher” ou, na fala das travestis, “passar batida por mulher”, demonstra, pelo menos discursivamente, um saber-se não mulher cis, mas o desejo de inserir-se socialmente em papéis e expressões que são consideradas próprias para as mulheres.

A opção ou não pela cirurgia de transgenitalização também aparece na literatura como uma das características que diferenciariam travestis e transexuais. Uma vez que essas pessoas têm em comum, no aspecto anatômico, um corpo de origem que vem com uma modelagem e genitália que é compreendida como marcador do masculino, mas ambas, refutando tais atribu- tos, se modificam corporalmente e se inserem socialmente em um papel atribuído ao “femini- no”, para quem as visualiza corporalmente, nenhuma diferença mais clara se mostra, mesmo reconhecendo outras diferenças mais situadas, nos marcadores de classe social, raça, cultura.

Mas aqui novamente volto a Bento (2009, p. 102), que encontrou, na sua pesquisa, tran- sexuais que não queriam realizar a cirurgia de transgenitalização e que, ainda assim, se sentiam “mulheres”. Para Bento, as histórias de pessoas trans que “reivindicam o direito à identidade feminina, desvinculando-a da cirurgia, nos põe diante da pluralidade de configurações internas à experiência transexual”.

É exatamente por causa da aparência que – ressalvadas as diferentes formas de se vestir, se comportar e de vocabulário – travestis e mulheres transexuais, no contexto político, flexi- bilizam e utilizam estrategicamente a sua transidentidade. Em certos contextos e espaços, é mais proveitoso ser vista como transexual; em outros, ser travesti pode lhe trazer mais inserção social. Isso vai depender dos ganhos e perdas subjacentes à assunção política e social de de- terminada identidade de gênero. A categoria transexual, ainda que seja cunhada pelo conheci- mento médico-psi e traga em seu bojo toda uma carga de patologia, oferece um desligamento da escolha-opção do sujeito em ser transexual e, mesmo que se estigmatize a pessoa transexual patologizando-a, acaba sendo utilizada por muitas mulheres transexuais como forma de higie- nização social ou, no falar de Carvalho (2011), como uma forma de purificação que as retira da conexão que tem sido realizada entre travestilidade e prostituição.

Em situações específicas como: entrevista para trabalho, visitas aos espaços de frequên- cia marcadamente heterossexual ou participação em eventos tradicionais, a categoria acessada pelas transexuais para se apresentarem é “mulher”, porém, se o seu design corporal não lhe

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permite o passing5 (convencer ao outro sobre a sua feminilidade), a categoria “mulher transexu-

al” é utilizada para diminuir ou afastar essa associação. Segundo Saleiro (2012), o passing tem a ver com a “credibilidade de gênero”, ou seja: conseguir ser visto/a como membro do gênero desejado. Tal ação dependerá do design corporal. A esse respeito, a autora afirma que

O corpo desempenha assim um papel crucial na visibilidade ou invisi- bilidade das identidades e expressões de gênero trans, com as respec- tivas consequências ao nível das relações sociais – nomeadamente ao nível da discriminação motivada pela identidade de gênero. (SALEIRO, 2012, p. 8)

Também Cabral e Benzur (2005) reafirmam a necessidade de que a modelagem corporal torne-se inteligível dentro das imagens corporais atribuídas ao homem e à mulher padrão, para que a pessoa possa ser vista dentro do gênero vivido. Os autores ressaltam o papel do corpo na efetivação do passing.

Porque a socialização (o processo de generificação) precisava de um corpo onde assentar-se, uma base material. Pare socializar alguém como uma menina, para que a sua identidade feminina resulte ‘exito- sa’ e sem fissuras, era imprescindível que seu corpo fosse, em sua apa- rência exterior, o de uma menina padrão, capaz de sustentar o olhar e a palavra, constitutivas, de sua mãe e de seu pai, sua própria percepção de si como ser sexuado. (BENZUR, 2005, p. 288, tradução nossa) 6

Leite Jr. (2011, p. 214) reforça a possibilidade purificadora da categoria “transexual”, ao afir- mar que essa categoria possui um “capital linguístico mais valorizado que o termo ‘travesti’, podendo ser mais facilmente convertido em capital social e, desta forma, sendo capaz de abrir ou fechar portas segundo a maneira como a pessoa se auto identifica ou é identificada”.

Ainda que o conceito de “travestismo” tenha sido depurado com o passar dos tempos e seja atualmente mais associado a “uma nova expressão do trânsito entre os gêneros” (LEITE JÚNIOR, 2011, p. 195), a sua representação social continua relacionada com a marginalidade. A solução moderna para a pessoa transexual foi outra, mais típica da medicalização e controle biopolítico dos corpos transgressores, já apontados por Foucault (2009). Dessa forma, a pessoa transexual “não é mais afastada para as margens concretas ou imaginárias do convívio social, mas convocada a se adaptar às normas de gênero do período”. (LEITE JÚNIOR, 2011, p. 197)

Ainda assim, dentro do universo trans, o uso estratégico das transidentidades entre as pessoas que vivem no feminino tenta driblar situações de abjeção e transfobia, porém a violên-

5 Na literatura internacional, o termo passing transgender é utilizado para referir-se a uma capacidade pessoal de ser reconhecido/a como pertencente a um gênero que não era o assignado no sujeito ao nascer. Essa capacidade pessoal envolve tanto certa manipulação de alguns cuidados físicos característicos do gênero pretendido, quanto os atribu- tos de comportamento que sejam culturalmente associados a tal gênero. (ALMEIDA, 2012)

6 Porque la socialización (el proceso de generización) precisaba de un cuerpo donde asentarse, de una base material. Para socializar a alguien como una niña, para que su identidade femenina resultara “exitosa” y sin fisuras, era im- prescindible que su cuerpo fuera, en su apariencia exterior, el de una niña standard, capaz de sostener la mirada y la palabra, constitutivas, de su madre y su padre, su propia percepción de sí como ser sexuado.

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cia perpetrada pelos sujeitos exteriores a este universo se dirige às travestis e mulheres transe- xuais indiscriminadamente. Tal situação é abordada por Bento (2008, p. 59-60), ao relatar que,

Quando mergulhamos nesse debate (diferenciação entre travestis e transexuais), defrontamo-nos com um outro, intenso, sobre os signi- ficados do que seja o masculino e feminino. É nesse processo que se nota a disputa das identidades. Parece que ser transexual ainda soa como algo que confere mais legitimidade e poder, enquanto a travesti é construída como a outra radical. É como se a categoria médica ‘tran- sexual’ fizesse o trabalho de limpeza, assepsia de uma categoria da rua. O mais intrigante é que essa disputa efetivada às margens não reverbera no centro. Os ‘normais’ não diferenciam estas experiências identitárias, simplificam tudo sob a rubrica de ‘anormais’, ‘aberrações’, ‘coisas esquisitas’.

Apesar dessa suposta limpeza que a categoria médica-psi transexual faz quando assumida por uma travesti, elas vivem como se não fossem sujeitos de cidadania plena, mas sim dentro do que Butler (1999, p. 155) chama de abjeção, ou seja, elas vivem “(n)aquelas zonas ‘inóspitas’ e ‘inabitáveis’ da vida social, que são, não obstante, densamente povoadas por aqueles que não gozam do status de sujeito, mas cujo habitar sob o signo do ‘inabitável’ é necessário para que o domínio do sujeito seja circunscrito”.

Leite Júnior (2011) confirma essa situação, quando afirma que travestis e transexuais de- sestabilizam as normas de gênero ao apresentarem uma estética de gênero que é associada ao sexo oposto. Para este autor, as situações de violência contra essas pessoas são justificadas pelos seus perpetradores pelos “enganos” que elas causam com a sua aparente feminilidade. Perlongher (2008, p. 112) reitera a ideia de engano quando afirma que, no tribunal dos juízos alheios,

o travesti é culpado de um duplo engano: por um lado, se faz passar por mulher, sendo anatomicamente homem; não contente com isso, ainda mentindo sua genitalidade, ele não executa o papel de mulher passiva que propala, mas o papel de penetrador ativo que a sua apa- rência desmente.

Ainda assim, é dentro da visão binarista de gênero que elas, as travestis e mulheres tran- sexuais, parecem querer viver, ao performatizar o “feminino”. Bento (2011, p. 105) nos leva a refletir sobre este paradoxo da luta do movimento trans. Segundo a pesquisadora,

Por mais que as experiências travesti e transexual sejam expressões e experiências de gênero que tem um potencial revolucionário, uma vez que negam a procedência do biológico para organizarem suas identi- ficações, podem ser inteiramente capturadas pelas normas de gênero, à medida que a luta é pelo reconhecimento nos marcos do binarismo.

Quando tentamos pensar sobre diferenças e semelhanças entre as experiências de traves- tis e transexuais, podemos perceber que, excetuando a transmasculinidade, travestis e mulhe-

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res transexuais apresentam uma experiência de gênero muito próxima, apesar dos discursos e percepções por vezes dissonantes e contraditórios.

A necessidade de modificar o corpo para nele marcar aqueles aspectos considerados fe- mininos, assim como os caminhos, saberes e práticas que este processo comporta também são compartilhados por travestis e mulheres transexuais. Concordo com Vianna (2012, p. 240) quan- do reflete a especificidade da luta das pessoas trans no interior do movimento LGBT e afirma que “no caso de travestis, transexuais ou pessoas intersexo, parecem ser os corpos o resultado último e perseguido de seus atos, exibindo todo um trabalho que não pode mais ser apagado ou temporariamente ocultado”.

A modificação corporal, tão necessária para existência de travestis e transexuais, aparece como um ritual de passagem que marca uma nova inserção do sujeito modificado no campo social, pois “é nos corpos, afinal, que resulta toda essa dissidência de gênero tão mais difícil de assimilar porque diferentemente das relativas estritamente à sexualidade, ultrapassa o binaris- mo e confunde suas categorias mais elementares”. (VIANNA, 2012, p. 240)

Travestis e transexuais, apesar das suas semelhanças e diferenças já explicitadas no decor- rer deste texto, são pessoas que têm, no campo científico, político e social, o desafio de serem vistas como sujeitos que, independente da forma que vivem o gênero e constroem seus corpos, produzem novos conhecimentos sobre os limites das classificações identitárias e o risco que elas produzem, ao estabelecer lugares generificados fixos para os sujeitos – tão fluidos – viverem.

Transgêneros, identidades trans e pessoas trans: conceitos que tentam

No documento Transexualidades: um olhar multidisciplinar (páginas 86-90)

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