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Redução de Danos: além dos conceitos

No documento Transexualidades: um olhar multidisciplinar (páginas 128-130)

Couto (1999, p. 26), autor de um dos primeiros livros brasileiros sobre transexualidade, afirma que existem diferentes conceitos a respeito do termo, mas que todos têm em comum o entendimento de que esta passa pela “incompatibilidade da conformação genital com a

A Redução de Danos aplicada ao uso de silicone líquido e hormônios ‡ 127

identidade psicológica sexual no mesmo indivíduo”. Segundo Couto, transexuais possuem também o desejo de modificação da genitália. Berenice Bento, em obra de 2006, opta por não levar em conta este desejo ou mesmo a realização de cirurgias para definir a transexualidade, que classifica como “uma contradição entre corpo e subjetividade” (BENTO, 2006, p. 44), ba- seando-se em seu trabalho de campo para afirmar que “há uma pluralidade de interpretações e construções de sentido para os conflitos entre o corpo e a subjetividade nesta experiência”. (BENTO, 2006, p. 44)

O senso comum parece considerar como equivalentes a transexualidade e a travestilida- de, mas travestis, segundo Pelúcio (2006, p. 524), são “pessoas que nascem com o sexo genital masculino (por isso a grande maioria se entende como homem) e que procuram inserir em seus corpos símbolos do que é socialmente sancionado como feminino, sem, contudo, desejarem ex- tirpar a genitália, com a qual, geralmente, convivem sem grande conflito. Via de regra, as traves- tis gostam de se relacionar sexual e afetivamente com homens”. A autora prossegue afirmando que não basta se vestir de mulher para ser travesti. Segundo informações obtidas em campo, é necessário que também ocorram intervenções através da injeção de hormônios e silicone, com a finalidade de dar forma feminina ao corpo.

A despeito das diferenças entre transexuais e travestis, de eventuais divergências acerca da natureza da transexualidade ou, principalmente, do dinamismo dessas categorias, sujeitas a diferentes entendimentos e contínuas recriações, é fato que existem indivíduos que costumam acionar tecnologias de modificação corporal com o intuito de adquirir características atribuídas a outro sexo. Tais tecnologias podem ser leves, como a depilação e o uso de maquiagem, che- gando à introdução, geralmente desassistida, de hormônios e silicone industrial, este último inadequado para uso humano.

Até novembro de 2013, quando a portaria 2.803 ampliou o acesso ao processo transe- xualizador para travestis, somente transexuais tinham a chance de receber assistêncianesse processo, mas é apenas neste sentido que o governo brasileiro contempla aspectos relaciona- dos à saúde dessas categorias, através de legislação específica, sendo, porém, necessário, para efetivar o acesso de transexuais, o diagnóstico de um problema de ordem mental1. Somente a

partir deste diagnóstico é possível realizar o tratamento hormonal assistido e, após dois anos de acompanhamento psicológico (e em alguns casos, também psiquiátrico), ter acesso às cirurgias de “adequação corporal”.

No caso das transmulheres, a “adequação corporal” prevê a construção das mamas, su- pressão do pomo de adão, extirpação do pênis e construção de uma neovagina. No caso dos transhomens, pode acontecer a ablação das mamas, a histerectomia e construção de um pênis, técnica ainda raramente realizada.

A despeito da assistência prevista para o processo de transexualização, sujeitos com idade inferior à prevista pela legislação ou que por algum outro motivo não conseguem obter acesso

1 Em 1980, o transtorno “transexualismo” foi incorporado à terceira edição do Manual Diagnóstico e Estatístico das Desordens Mentais (DSM) DSM III. Posteriormente, no DSM IV (publicado em 1994), o termo foi substituído por “transtorno de identidade de gênero”. Na quinta edição do manual, publicada em 2013, o diagnóstico “transtorno de identidade de gênero” foi substituído por “disforia de gênero”, um tipo mais leve de sofrimento mental. Esta solução, entretanto, aos olhos da Campanha Internacional “Stop Trans Pathologization” (2012), uma das principais organizações internacionais de ativismo transexual, não se configura como uma despatologização.

128 ‡ Transexualidades

ficam relegados à automedicação com hormônios e ao trabalho das bombadeiras,2 no caso das

transmulheres que optam pela aplicação de silicone industrial. Existem, inclusive, relatos de au- tomutilações, com sérias consequências. Outra consideração a ser feita diz respeito ao número insuficiente de unidades especializadas, existentes em poucas cidades do país.

A regulamentação do acesso ao processo transexualizador, condicionada à necessidade de um diagnóstico psiquiátrico, evidencia o alto teor político da questão. Para Lionço (2009), a ex- clusão das travestis da assistência do SUS no processo de transformação corporal (situação que perdurou até novembro de 2013) se origina da concepção binária do gênero e da predominância da heteronormatividade, fatores que, no caso desta problemática específica, estariam atuando como limitadores da democratização das políticas de saúde.

A ideia da existência de uma continuidade entre gênero, sexo e desejo, que autores filia- dos à teoria Queer buscam desconstruir, que permeia tanto o senso comum quanto discursos especializados, como o médico e o jurídico, revela a sua falência no universo transexual e travesti. É importante ressalvar, neste sentido, que indivíduos transexuais não se definem necessaria- mente como heterossexuais, podendo se afirmar como bi ou homossexuais, evidenciando assim o quão diversas podem ser as combinações entre corpo, gênero e orientação sexual, assim como identificações, sentimentos, comportamentos e expressões relacionados à seara do gênero e da sexualidade. Sobre as travestis, por exemplo, entende-se que não desejam ser homem ou mulher, mas travestis.

Tais pessoas, entretanto, costumam pagar caro por confundir, com seus corpos e vivên- cias, as fronteiras de gênero e por evidenciarem os limites da classificação binária, desafiando assim a heteronormatividade. O preço é composto de exclusão, violência, preconceito e discri- minação, além da desconsideração da única condição que deveria ser vista como essencial: a de sujeitos de direitos.

A intensidade e violência das tentativas de controlar esta diversidade evidenciam, por outro lado, os múltiplos aspectos políticos que permeiam as questões relacionadas ao gênero, à sexualidade e à identidade em nossa sociedade, e a estreiteza da compreensão vigente diante da riqueza de possibilidades e da multiplicidade de sentidos que se encerram nas experiências de cada um.

No documento Transexualidades: um olhar multidisciplinar (páginas 128-130)

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