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A produção das transexualidades masculinas

No documento Transexualidades: um olhar multidisciplinar (páginas 116-118)

Falar especificamente sobre as transexualidades masculinas ou sobre os homens transe- xuais é uma tarefa por se fazer nos contextos de produção do conhecimento brasileiro. Sem dúvida, a maioria das reflexões, dissertações, teses e artigos tem se debruçado sobre as “tra- vestilidades” e, principalmente, sobre as mulheres transexuais cujas visibilidades em diferentes contextos constituíram características importantes. Destaca-se, porém, que nos últimos anos tem crescido a visibilidade dos homens transexuais, que passaram a ocupar diferentes espaços, expressos através do aumento considerável na procura aos serviços de saúde especializados,8

até nas redes sociais e midiáticas.9

As construções do que se designam como FtM (female to male) ou os homens transexuais devem ser entendidas num conjunto de forças que forjou o que se convencionou chamar tran- sexualidade. Este processo deve ser compreendido na transição do século XIX para o século XX,

8 O Brasil conta com quatro serviços públicos credenciados no Ministério da Saúde para realizar o processo transe- xualizador, inclusive os processos cirúrgicos: no Rio de Janeiro, o Hospital Universitário Pedro Ernesto/UERJ; em São Paulo, o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo/USP; em Porto Alegre, o Hospital das Clínicas de Porto Alegre – Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); e em Goiânia, o Hospital das Clínicas.

9 Sem dúvida o livro autobiográfico de João W. Nery Viagem Solitária – memória de um transexual trinta anos depois (2011) foi e é um divisor de águas nas experiências das transexualidades masculinas. Através da obra e, principal- mente, da circulação das imagens e das falas de João Nery nos suportes midiáticos e redes sociais, o reconhecimento e a visibilidade dos homens transexuais acenderam nos contextos culturais brasileiros e mundiais.

O dispositivo “testo” ‡ 115

onde os corpos e sexualidades sofreram processos intensos de medicalização, consequência do que Foucault (1997) designou como a “ciência sexual”. Neste contexto, o poder disciplinar atuou, num primeiro momento, sobre os corpos individuais e coletivos, adestrando-os e, posteriormen- te, a partir de um acoplamento de poder que terá no controle da população o elemento principal de exercício da governamentalidade – a biopolítica.

Neste conjunto de saberes e, consequentemente, de poderes, diferentes campos discursi- vos e práticos contribuíram para o delineamento do que viria a se concretizar na primeira me- tade do século XX como “transexualismo”. Nesta seara destacam-se domínios como a medicina, principalmente a psiquiatria, o direito, a pedagogia, a sociologia, a psicologia, a psicanálise, entre outros, que tomaram as expressões corporais, a multiplicidade das sexualidades e as per- formatividades de gênero como “objeto” privilegiado de discursos e práticas.

Assiste-se assim, nessa segunda metade ou neste último terço do sé- culo XIX, ao que poderíamos chamar de consolidação das excentrici- dades em síndromes bem especificadas, autônomas e reconhecíveis. É assim que a paisagem da psiquiatria vai ser animada por toda uma gente que é, para ela, nesse momento, totalmente nova: a população dessas pessoas que não apresentam sintomas de uma doença, mas síndromes em si mesmas anormais, excentricidades consolidadas em anomalias. (FOUCAULT, 2011, p. 271-272)

Nesse cenário, se estruturou “um campo das perversões em que a Medicina, no tocante a uns, denunciava rapidamente o perigo social, e, no tocante a outros, pretendia ser mais compre- ensiva do que a justiça; somente o especialista acreditava possuir o saber que permitia efetuar essas distinções”. (LANTERI-LAURA, 1994, p. 45) Essa discussão é fundamental na compreensão da transexualidade, principalmente a relação que o campo da Medicina estabeleceu com o fenô- meno, transformando-se no espaço consolidado e reconhecido para falar e agir sobre a mesma. Sem dúvida, o mecanismo exercido pela psiquiatria tornou-se, em aliança com outros domínios de saberes, espaços produtores de regimes de verdade. De uma forma geral, alguns elementos destacam-se na construção da transexualidade: 1) as discussões e investigações em torno da intersexualidade: foi a partir de inúmeros casos e intervenções clínicas com indiví- duos intersexuais, que a clínica da transexualidade começou a ser definida e especificada; 2) os estudos da Sexologia, principalmente no ethos alemão, na passagem do século XIX para o século XX: os trabalhos desenvolvidos, nessa fase, foram fundamentais na despatologização da homossexualidade e na contribuição da construção da ideia de transexualidade, na medida em que possibilitaram uma leitura da sexualidade, principalmente das “homossexualidades”; 3) A obra de Hirschfeld, Die travestiten, publicada em 1910, onde se encontra a primeira referência ao termo transexual; 4) a consolidação, a partir do final da Segunda Guerra Mundial, da definição e explicações sobre a transexualidade: o termo “Transexualismo” foi cunhado, inicialmente, por Cauldwell, em 1949, através do artigo Psychopatia transexualis (CASTEL, 2001; ARÁN, 2006); 5) a documentação e a publicização, em 1952, da primeira cirurgia para adequação do sexo na cidade de Copenhague – Dinamarca: o ex-soldado americano Georges Jorgensen passava a ser Cristine, o marco da transexualidade enquanto um fenômeno para além dos espaços medicalizados e

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dos meios científicos (FRIGNET, 2002; RAMSEY, 1998; VIEIRA, 1996; CASTEL, 2001; CHILLAND, 2003); e 6) as pesquisas e trabalhos de Harry Benjamin (1966), médico endocrinologista impor- tante, que publicou em 1953 a obra O Fenômeno Transexual: John Money (1969; MONEY; TUCKE, 1981) e Robert Stoller (1969; 1982) foram fundamentais no delineamento das transexualidades como um objeto com diagnóstico próprio – um transtorno e/ou uma disforia de gênero – e uma condução terapêutica que passava pelos processos de hormonização e intervenções cirúrgicas.

Estes acontecimentos, entre outros, foram de suma relevância para a transição e consoli- dação da transexualidade durante a segunda metade do século XX, não como uma perversão, mas como uma “patologia” que demandava um saber e uma intervenção específica. Em 1983, a transexualidade (entendida enquanto uma disforia de gênero) passa a fazer parte do Manual Diagnóstico e Estatístico das Desordens Mentais (DSM). A partir de então, as multiplicidades das experiências transexuais têm sido hegemonicamente escritas sob o signo do diagnóstico psi- quiátrico – o F.64x, denominado transtorno de identidade de gênero. No atual DSM – a quinta versão –, a transexualidade passou a ser entendida como uma disforia de gênero. Essa mudança provocou opiniões divergentes: de um lado os que a entendiam como uma despatologização, na medida em que a retirou da categoria “transtorno”; e, do outro lado, os que entendiam que a patologização continuava a partir de outro descritor. O que é importante salientar é que estes movimentos têm, cada vez mais, despotencializado as singularidades transexuais. O uso do hor- mônio testosterona encontra-se no âmbito desta maquinaria, onde sua administração passou a ser uma condição sine qua non nos processos de construções das masculinidades transexuais.

No documento Transexualidades: um olhar multidisciplinar (páginas 116-118)

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