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Capítulo 2 A teoria representativa liberal na interpretação da Constituição de 1824

2.3 Eleições e cidadania

2.3.1 A ausência de critérios raciais na definição da cidadania

O expressivo grau de inclusão política promovido pelas normas eleitorais do Império que mencionamos não tem a ver apenas com o censo baixo, mas com a inexistência de critérios raciais para a concessão de direitos civis e políticos. Márcia Barbel e Rafael Marquese observam que o caso brasileiro é excepcional se comparado com os exemplos da Inglaterra, França, Estados Unidos e Espanha, cujos ordenamentos constitucionais privavam os homens livres de origem ou ascendência africana de direitos políticos290. Entretanto, segundo os autores, a opção brasileira baseava-se na experiência

naturalizados, qualquer que seja a sua Religião. A Lei determinará as qualidades precisas, para se obter Carta de naturalização; Art. 7. Perde os Direitos de Cidadão Brasileiro: I – O que se naturalizar em país estrangeiro; II – O que sem licença do Imperador aceitar Emprego, Pensão, ou Condecoração de qualquer Governo Estrangeiro; III – O que for banido por Sentença; Art. 8. Suspende-se o exercício dos

Direitos Políticos: I – Por incapacidade física, ou moral; II – Por Sentença condenatória a prisão, ou degredo, enquanto durarem os seus efeitos.

286 Sobretudo no extenso TITULO 8º [Das Disposições Gerais, e Garantias dos Direitos Civis, e Políticos

dos Cidadãos Brasileiros]. BRASIL. op. cit.

287 BERBEL, Márcia Regina; MARQUESE, Rafael de Bivar. A ausência da raça: escravidão, cidadania e

ideologia pró-escravista nas Cortes de Lisboa e na Assembleia Constituinte do Rio de Janeiro (1821- 1824). In: Claudia Maria das Graças Chaves; Marco Antonio Silveira. (Org.). Território, conflito e identidade. Belo Horizonte: Argumentum, 2007, v. 1, p. 75.

288 Com base no recenseamento de 1872, José Murilo de Carvalho aponta que 13% da população total

excluindo os escravos – possuía o direito de voto. Esse era um número expressivo se comparado aos 7% na Inglaterra, 2% na Itália, e 2,5% na Holanda. CARVALHO, 2008, op. cit., p. 31. Já Richard Graham observa que comentaristas da época admitiam que a renda mínima exigida pela legislação para a eleição primária, 100 mil-réis em 1846, era tão baixa que qualquer um, à exceção de mendigos e vagabundos, poderia atendê-la – o comentarista era José Antônio Pimenta Bueno. GRAHAM, op. cit., p. 142.

289 DOLHNIKOFF, 2009, op. cit., p. 44. 290 BERBEL; MARQUESE, op. cit., p. 64-67.

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constitucional portuguesa. Nas Cortes de Lisboa, ao refletirem a respeito do lugar dos homens negros livres na sociedade que se ordenava, os deputados constituintes:

(...) pensavam na utilidade e na inserção desse grande contingente da população brasileira. Eram úteis porque eram produtivos, porque zelavam pela segurança e pela administração dos negócios públicos no Brasil. Eram úteis e, por isso, eram cidadãos. Um argumento tipicamente liberal, sem dúvida. Mas, além disso, os deputados diagnosticavam o enraizamento dessa situação nas práticas sociais da população brasileira. A inserção dos libertos era uma realidade já bastante antiga, diziam, e era necessidade premente e estruturadora da ordem social e política da América Portuguesa291.

Desse modo, não obstante tenham surgido propostas no sentido de restringir os direitos políticos dos libertos – baseadas no temor frente ao possível rancor destes em relação aos antigos senhores e nas temíveis cenas da ilha de São Domingos –, ao término dos trabalhos das Cortes, a Constituição portuguesa de 1822 garantiu os direitos de voto e de elegibilidade aos homens negros livres, mesmo se nascidos fora de Portugal. Portanto, em Portugal, a concepção liberal de cidadania não era definida em função de critérios raciais e estendia-se a todos os homens livres e produtivos já inseridos na vida pública292.

Barbel e Marquese ressaltam que, naquele contexto, a definição de cidadão português não ocorreu em oposição ao estrangeiro, mas preocupou-se, por outro lado, em incluir os não-portugueses de todos os domínios do Império. Afirmava-se, assim, a igualdade jurídica entre os habitantes livres dos “dois hemisférios” e de todos os tons de pele. Para os autores, o projeto visava, sobretudo, a soldar as fissuras de uma identidade já fortemente questionada, de modo a conservar a unidade de um Império então em processo de desagregação293.

A solução portuguesa ecoaria na Assembleia Nacional Constituinte e Legislativa brasileira instalada em 1823, pois, afinal, alguns deputados constituintes haviam participado das Cortes de Lisboa. Todavia, como apontam Márcia Barbel e Rafael Marquese, a tarefa dos deputados constituintes brasileiros foi diferente, pois, por se tratar da construção de uma nova identidade nacional, foi necessário recorrer à contraposição ao estrangeiro294. Nesse sentido, o debate em torno da questão de conferir

291 Ibid., p. 70. 292 Ibid., p. 73. 293 Ibid., p. 73-74. 294 Ibid., p. 74.

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ou não cidadania aos libertos deixou de se orientar por uma inclusão ampla, como ocorrera em Portugal, e seguiu o caminho da exclusão dos libertos naturais do continente africano. Essa discussão tomou proporções maiores e chegou a colocar em questão o tema da escravidão em geral. No entanto, deixaremos de lado os detalhes do debate constituinte, pois importa-nos, no momento, a solução adotada pela Constituição outorgada em 1824.

Por ter se orientado pelos debates ocorridos na Assembleia Constituinte e, em última instância, nas Cortes de Lisboa, a Constituição de 1824 seguiu a tendência verificada nas mesmas em não se adotar critérios raciais na definição da cidadania. No entanto, diferentemente do exemplo português, a carta brasileira clivava o negro em crioulo e africano, e considerava cidadão apenas o primeiro. Nota-se que isso vem a reforçar a leitura de que a noção de cidadania empregada no Império se confundia em grande medida com a de nacionalidade.

Outra diferença central da Constituição brasileira em relação à portuguesa, no que se refere à cidadania, diz respeito à concessão dos direitos políticos. Nesse quesito, a carta brasileira era menos inclusiva, pois negava os direitos políticos aos libertos, ao excluí- los das eleições secundárias295. Por consequência, os libertos não apenas deixavam de

participar efetivamente da eleição dos representantes, mas eram privados do direito de serem eleitos. Com essa opção, os conselheiros de Estado responsáveis pela elaboração do texto constitucional alinhavam-se ao temor manifesto nas Cortes de Lisboa em relação a possíveis revanchismos dos ex-escravos que mencionamos. Tal postura não chega a surpreender se considerarmos a amplitude do contingente de escravos presente no Império e a onipresente memória da revolta de São Domingos.

Não devemos, contudo, perder de vista o fato de que, não obstante a inclusão promovida pela ausência de critérios raciais na definição da cidadania conferisse ao Império Brasil uma posição excepcionalmente liberal, no âmbito do constitucionalismo oitocentista, isso pouco contribuía para abalar o caráter pró-escravista da sua sociedade. Com efeito, como apontaram Barbel e Marquese, essa inclusão não apenas dava suporte à ideologia escravista, mas justificava o comércio transatlântico de cativos, pois mobilizava uma defesa não racial da escravidão296.

295 BRASIL. op. cit, Art. 95 § II.

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Em suma, avaliamos que o sistema representativo contido na Constituição de 1824 era coerente com uma série de premissas e paradigmas provenientes das teorias representativas dos setecentos e oitocentos, mas, especialmente, da escola liberal. A princípio, constatamos a presença de uma concepção de representação mais antiga, do tipo hobbesiano, visto que D. Pedro I, com a aclamação, logrou encarnar a soberania nacional antes mesmo dos trabalhos constituintes e, com a outorga da carta, afirmou-se como primeiro representante da nação. Em outra dimensão, feitas as devidas ressalvas, o sistema representativo imperial alinhava-se em alguma medida à concepção burkeana de representação, uma vez que o monarca representava o interesse geral da nação e que o Poder Legislativo tendia a ser conduzido por uma elite política detentora das virtudes necessárias à representação. Já no domínio do liberalismo, o arbítrio político sobre o Legislativo levado a efeito pelo Poder Moderador, uma solução baseada na doutrina de Benjamin Constant, resolvia um problema enfrentado pelos norte-americanos no contexto da elaboração da sua Constituição, isto é, a necessidade de limitação e anulação dos diversos interesses particulares envolvidos na política nacional. Esse mecanismo tinha nexo com as reservas em relação aos representantes sustentadas por Constant, o qual entendia que o Poder Moderador servia, nesse caso, para defender o povo daqueles que os representavam.

No que se refere ao sistema eleitoral que emergia do governo representativo encerrado na carta constitucional, o mesmo seguia o esquema censitário e indireto concebido pelo Abade de Sieyès na França, o qual era inconsistente com as desconfianças de Benjamin Constant em relação à atuação dos colégios eleitorais. Com efeito, a questão da representação é apenas um exemplo de como os responsáveis pela elaboração da Constituição de 1824 fizeram uso daquilo que lhes foi conveniente da doutrina de Benjamin Constant.

Vimos, ainda, que no contexto da elaboração da Constituição discutiu-se o papel da raça na definição da cidadania. Porém, há de se reconhecer que, à época, o tema da escravidão era pouco relevante no que tange à questão eleitoral, pois, afinal, o elemento servil era excluído dos pleitos. Somente mais tarde, na segunda metade do século XIX e, sobretudo após a promulgação da lei do ventre livre, em 1871, os legisladores do Império passaram a conviver com a perspectiva da emancipação dos escravos e a pensar o sistema eleitoral em função dessa variável.

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Capítulo 3 - As reformas eleitorais do Segundo Reinado à luz da literatura