• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 1 A representação política

1.6 A versão liberal da representação política

De uma maneira geral, os teóricos do liberalismo entendiam que a representação devia ser de indivíduos e não de corporações, interesses ou classes. Em consonância com o individualismo presente na perspectiva econômica liberal, eles baseavam a representação política no indivíduo racional e independente151.

Nos Estados Unidos após 1787, esse pensamento refletia-se na adoção de distritos eleitorais iguais nas eleições para o parlamento, isto é, uma representação por população. Contudo, a representação de pessoas não significava necessariamente a representação de todas elas152. Com efeito, o requerimento de propriedade fundiária para a qualificação do eleitor, prática comum no período colonial, era amplamente defendido pelos “pais fundadores” como uma forma de garantia de capacidade, estabilidade e boa vontade do indivíduo153.

Foi no seio da experiência revolucionária norte-americana que se elaborou a concepção de democracia representativa. O termo, que naquele contexto aparecia pela primeira vez em escritos de Thomas Paine e Alexander Hamilton, evoca, ao mesmo tempo, duas ideias claramente antagônicas154. Da aparente contradição do termo, alguns de seus

150 Ibid., p. 189. 151 Ibid., p. 190. 152 Ibid., p. 190. 153 Ibid., p. 191.

154 ROSANVALLON, Pierre. Le peuple introuvable. Histoire de la représentation démocratique en

France. Paris: Gallimard, 2002, p. 14, nota 1; RUNCIMAN; VIEIRA, op. cit., p. 49. Ao esboçar essa ideia que mais tarde se tornaria um dos fundamentos do arranjo político norte-americano, Paine dizia que a democracia representativa não serviria apenas para aliviar os incômodos da democracia direta, mas sim para engrandecer e completar o ideal democrático (RUNCIMAN; VIEIRA, op. cit., p. 50).

42

teóricos conceberam um regime misto, que associava o poder popular a valores aristocráticos. Outros o inseriram na perspectiva mais geral de uma divisão de tarefas que fazia da política um campo especializado a ser gerenciado por experts155.

No contexto da ratificação da Constituição norte-americana pelas convenções estaduais, em 1788, Alexander Hamilton, James Madison e John Jay sustentavam, nos Artigos

Federalistas, que o governo representativo era um dispositivo que visava a substituir a

democracia direta. A solução contornava o problema de reunir um grande número de pessoas em assembleia156. Seguindo o slogan revolucionário de 1776, segundo o qual “taxação sem representação é tirania”, os federalistas defendiam a ideia de que a participação no governo era um direito pessoal. Tendo em vista que se opunham à democracia como regime, para eles a representação parecia ser um meio seguro de permitir uma participação política ampla157.

Ainda que a representação política tenha se voltado irremediavelmente para a representação de pessoas, isso não quer dizer que os interesses tenham saído de cena. Para os federalistas, o conceito de interesse era muito mais pluralista do que esse era para Burke, sendo, além disso, essencialmente pejorativo158. Para eles, interesses se identificavam com facções e eram maléficos por entrarem em conflito com o bem estar da nação159. Facção era definida por Madison, no décimo artigo federalista, como algo equivalente ao interesse de um grupo unido em torno de impulsos e paixões, muitos dos quais contrários aos direitos dos cidadãos e aos interesses da comunidade160. Portanto, os interesses facciosos deveriam ser quebrados, controlados e balanceados uns contra os outros, de modo a produzir uma desejada estabilidade161. Cumpre observar que essa concepção de interesse divergia daquela de Burke, para quem os interesses eram essenciais para o bem estar da nação. Todavia, a resposta de Madison para a questão de como a representação lidaria com as facções aproximava-se de um dos princípios da representação burkeana, isto é, o elitismo político. Assim como Burke, Madison entendia que os representantes deviam ser homens superiores, desprovidos de paixões e

155 ROSANVALLON, op. cit., p. 14. 156 PITKIN, 1972, op. cit., p. 191. 157 Ibid., p. 191.

158 Ibid., p. 191. 159 Ibid., p. 192.

160 MADISON apud Ibid., p. 193. 161 Ibid., p. 193.

43

capazes de deliberar à luz da razão. Esperava-se que esses pudessem deliberar sobre o bem comum sem se preocuparem em refletir a vontade popular162.

Do ponto de vista filosófico, no que se refere à representação, os federalistas se afastavam consideravelmente de pensadores franceses que lhes eram contemporâneos, como Sieyès, por exemplo. Os constitucionalistas norte-americanos não eram tão influenciados por Hobbes e Rousseau como os franceses, mas se baseavam fundamentalmente nas ideias de John Locke e Montesquieu, especialmente do último163. Ao defender “a total exclusão do povo, em sua capacidade coletiva, de qualquer participação [no governo]”164, em favor da representação, Madison se aproximava de

Montesquieu para quem “a grande vantagem dos representantes é que estes são capazes de discutir as questões públicas. O povo não é, de modo algum, apto para isso, fato que constitui um dos grandes inconvenientes da democracia”165. Assim como Burke, os

federalistas não tinham em boa conta a concepção de vontade geral de Rousseau e não a usavam para descrever as características do novo arranjo político que propunham166. Cumpre lembrar que no livro III do Contrato Social, Rousseau rejeitava por completo a noção de representação legislativa167. Logo, não surpreende que, ao defenderem o novo

sistema de governo representativo – o que justamente possibilitava o governo popular e republicano em escala continental –, os federalistas não tenham recorrido a Rousseau. A experiência norte-americana seria mais tarde, na década de 1830, avaliada pelo olhar estrangeiro de Alexis De Tocqueville. Tocqueville conheceu os Estados Unidos no contexto da administração de Andrew Jackson e notou uma forte tendência do impulso democrático em se aliar a uma forma de governo fortemente centralizada. Ele percebia que todos os direitos políticos concentravam-se cada vez mais nas mãos do principal representante do Estado168. Tocqueville não era simpático em relação à questão da

162 Ibid., p. 193.

163 RUNCIMAN; VIEIRA, op. cit., p. 38. 164 MADISON apud Ibid., p. 38.

165 MONTESQUIEU. Do Espírito das Leis. São Paulo: Ed. Editora Martin Claret, 2007, p. 168; 176. 166 RUNCIMAN; VIEIRA, op. cit., p. 38.

167“A soberania não pode ser representada pela mesma razão porque não pode ser alienada; consiste ela

essencialmente na vontade geral, e a vontade não se representa; ou é ela mesma, ou outra, e isso não há meio termo; logo os deputados do povo não são, nem podem ser, representantes seus; são comissários dele e, nada podem concluir decisivamente. É nula, nem é lei, aquela que o povo em peso não ratifica (...) Seja como for, no momento em que o povo elege representantes, cessa de ser livre, cessa de existir”. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato Social. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 87-89.

44

representação, pois partilhava do julgamento de que ela possuía uma tendência inerente de se aproximar do igualitarismo tirânico169.

Tocqueville é menos otimista que Madison no que diz respeito à resolução do problema imposto pelo império da maioria. Os federalistas eram muito alinhados a Locke e Montesquieu quando diziam que para barrar o governo da maioria bastavam a separação de poderes, um sistema de representação e um sistema de freios e contrapesos. Mas Tocqueville era menos certo que esses dispositivos institucionais poderiam frear o império da maioria. Para ele, a maioria era ilimitada e irrefreável170. O que levava Tocqueville a esse ceticismo era a sua opinião de que a tirania da maioria era inseparável das ameaças da violência revolucionária e particularmente dos demagogos carismáticos ou líderes militares, como Napoleão na França e a contrapartida americana de Napoleão, Andrew Jackson171. O Jacksonianismo era, para ele, simplesmente uma forma americana de bonapartismo: um comandante militar no poder político, valendo-se de um amplo apoio popular172.

Assim como Benjamin Constant, Tocqueville temia o domínio dos legisladores. Para ele, o controle do público sobre o legislativo – algo que constatou nos legislativos estaduais dos EUA – era algo perigoso e colocava a perigo a existência das democracias173. Era perigosa também, para Tocqueville, a influência da maioria sobre o pensamento que ele verificou nos Estados Unidos: “não conheço país em que reine, em geral, menos independência de espírito e verdadeira liberdade de discussão, do que na América”174. Para Tocqueville, era o medo do ostracismo que levava as pessoas a se

alinharem automaticamente à maioria e a se submeterem a seu controle. Para ele, a maioria oprimia as outras opiniões de muitas formas, das mais leves às mais cruéis. A opressão ia da perseguição a jornalistas ao ataque a negros livres para impedi-los de votar175. Na visão de Tocqueville, os tiranos tradicionais recorriam às correntes e execuções. Mas, em seus dias, a civilização teria aperfeiçoado o despotismo. Sob o absoluto governo de um homem, o despotismo atacava cruelmente o corpo para atingir a alma, mas as almas podem escapar gloriosamente a isso. Mas, para Tocqueville, em

169 Ibid., p. 49.

170 TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. Livro I: Leis e costumes. São Paulo: Martins

Fontes, 2005, p. 296. 171 Ibid., p. 326; 451-452. 172 Ibid., p. 326; 451-452. 173 Ibid., p. 174. 174 Ibid., p. 298. 175 Ibid., p. 397; nota n. 4, p. 537.

45

repúblicas democráticas, a tirania não age dessa forma, ela deixa o corpo de lado e vai direto à alma176. Em suma, Tocqueville foi um dos primeiros pensadores políticos a compreender a representação como apenas um subproduto da democracia. Para ele, ao contrário de Thomas Paine, a representação não serviria para engrandecer a democracia, mas para camuflar sua verdadeira natureza177.

Em fins do século XVIII e durante o século XIX, na Inglaterra, os utilitaristas seguiram caminhos parecidos aos da ex-colônia americana ao abordarem a representação, mas deram passos maiores na direção das subjetividades178. Eles entendiam o homem como uma criatura econômica e, por isso, viam os interesses particulares como algo relevante179. Ao afirmar que “não há ninguém que saiba o que é o seu interesse melhor do que você mesmo”180, Jeremy Bentham fazia do indivíduo o único guardião confiável

dos seus próprios interesses. Assim, para ele, nenhum governo poderia de fato agir de acordo com os interesses da população181. No pensamento de Adam Smith, essa concepção culminava na sua famosa “mão invisível”, ideia segundo a qual cada homem produz o bem social ao perseguir seu próprio interesse de maneira melhor do que qualquer governo poderia fazer182. Por consequência, se ninguém pode agir de acordo com o interesse alheio, o representante só poderia agir em função seu próprio interesse183. Esses argumentos pareciam inviabilizar por completo a representação na perspectiva utilitarista. Com efeito, Bentham considerava as instituições representativas britânicas ineficientes e estúpidas184. Não obstante tenha mais tarde defendido a adoção do sufrágio universal, de parlamentos anuais e de cédulas secretas, Bentham manteve-se sempre cético em relação à ideia de representação. Ele reconhecia a inerente ambiguidade do governo representativo que tendia a estimular a ação autônoma do representante independentemente da extensão do direito de voto e da regularidade das eleições. Dessa forma, em seus escritos, Bentham preferia adotar o termo “deputado” ao invés de “representante” 185.

176 Ibid., p. 299.

177 RUNCIMAN; VIEIRA, op. cit., p. 50. 178 PITKIN, 1972, op. cit., p. 198. 179 Ibid., p. 198.

180 BENTHAM, 1954 apud Ibid., p. 198. 181 Ibid., p. 198.

182 Ibid., p. 198. 183 Ibid., p. 199.

184 RUNCIMAN; VIEIRA, op. cit., p. 46. 185 Ibid., p. 46.

46

Já James Mill contrariava as suspeitas de Bentham e argumentava que a representação seria o veículo apropriado para uma reforma democrática186. Para Mill, a “comunidade não pode ter nenhum interesse contrário ao seu” e, portanto, para ele, era importante que “os interesses dos representantes sejam identificados com aqueles da comunidade”187. A

representação igualaria os interesses de representantes e representados não porque os primeiros fossem superiores, mas ao contrário. De acordo com Mill, os representantes deviam ser como qualquer um188, isto é, deviam fazer parte da comunidade a que servem189. Para se atingir esse ideal, Mill argumentava que as legislaturas deveriam ser curtas e rotativas, de modo que os representantes se submetessem às leis que elaborassem190. A teoria de James Mill, no que se refere à identificação dos interesses do governo com os da população, foi bastante contestada, especialmente por Thomas Macaulay, que verificava uma forte tendência dos representantes em contrariar os interesses dos representados191.

O filho de James Mill, John Stuart Mill, estava atento ao egoísmo inerente aos interesses humanos. Para solucionar o problema, ele propunha o governo representativo, desde que esse se apoiasse no sufrágio universal e na representação proporcional192. Assim como os federalistas, Stuart Mill via grande perigo no domínio de facções – ao que ele chama de classes. Dessa forma, para ele, o governo representativo deveria ser organizado de maneira que todas as classes fossem equitativamente balanceadas no interior do parlamento193. A solução de Stuart Mill ecoava as advertências de Alexis de Tocqueville sobre os perigos de uma tirania da maioria. Entretanto, ao contrário de Tocqueville, Stuart Mill acreditava que a representação poderia servir como isolamento contra a ameaça da política democrática majoritária194. Assim como outros teóricos da representação, Mill entendia que o representante podia expressar os melhores instintos da população por meio da atividade parlamentar. Contudo, diferentemente dos demais pensadores, ele não excluía por completo a capacidade de julgamento dos

186 Ibid., p. 46.

187 MILL, James, 1955 apud PITKIN, 1972, op. cit., p. 201. 188 RUNCIMAN; VIEIRA, op. cit., p. 46.

189 PITKIN, 1972, op. cit., p. 201. 190 Ibid., p. 201.

191 RUNCIMAN; VIEIRA, op. cit., p. 47. 192 PITKIN, 1972, op. cit., p. 202. 193 Ibid., p. 203.

47

representados. Para ele, se o representante não satisfizesse os representados, esses teriam o direito de não o querer novamente como representante195.

Na teoria de Stuart Mill, o parlamento deveria ser um congresso de opiniões no qual não apenas a opinião da nação seria ouvida, mas também a de todos os segmentos da mesma. Nesse sentido, o sistema proporcional, sugerido por Mill, visava a representar igualitariamente todas as vozes da nação, mesmo as minoritárias196. Para ele, um parlamento constituído com base na proporcionalidade poderia ser capaz de realizar duas funções impossíveis em uma representação majoritária, a saber: o controle das operações do governo – por tornar públicos seus atos –; e, por último, fomentar um debate político inclusivo, proporcionado legitimidade aos resultados das deliberações. Cumpre notar que ao combater o domínio das maiorias, a representação proporcional contornava o temido governo da maioria numérica formada pelos trabalhadores manuais197. Além disso, Mill entendia que a representação devia ser de pessoas e não de entidades geográficas, o que o aproxima dos federalistas. Ele também desconfiava das qualificações baseadas na propriedade e sugeria que os eleitores deviam ser qualificados em função de um mínimo padrão educacional ou independência econômica, de modo que esses fossem capazes de enxergar além dos interesses materiais. Sendo exceção entre os teóricos da representação, Stuart Mill advogava a extensão do direito do voto às mulheres, não a todas, porém, mas àquelas bem qualificadas198.

Portanto, por mais que tenham se aproximado da conclusão de que a representação política é inviável, os utilitaristas chegaram à outra, isto é, existem interesses objetivos afinal. O fato de o indivíduo ser o juiz de seus interesses não significa que outros não possam conhecê-los. Os utilitaristas entendiam que os homens podiam saber algo sobre os interesses alheios. No entanto, para eles, os mais inteligentes, informados e racionais, saibam-no melhor. Dessa forma, não apenas para os utilitaristas, mas para os teóricos liberais como um todo, a representação permitiria aos governantes empregar suas habilidades superiores em prol dos interesses do povo199.

195 Ibid., p. 50. 196 Ibid., p. 50. 197 Ibid., p. 50. 198 Ibid., p. 51.

48