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Capítulo 1 A representação política

1.7 Representação liberal e revolução

Às vésperas da Revolução Francesa, o abade francês Emmanuel Joseph Sieyès publicou uma série de panfletos nos quais expunha, entre muitas ideias, sua concepção de representação política. Nesses panfletos, ele dizia que, na sua divisão tradicional, os Estados Gerais convocados por Luiz XVI em 1788 não eram capazes de representar a nação. Assim como outros contemporâneos, Sieyès supunha que para se chegar a uma solução para a crise atravessada pela França era preciso ir além da reunião das três ordens da sociedade. Sieyès entendia que, para superar as limitações dos Estados Gerais, não bastava estender privilégios políticos ao Terceiro Estado, pois acreditava que não havia nada que os governantes pudessem oferecer que o povo já não tivesse. Para ele, o Terceiro Estado era a nação. Isso seria verdadeiro, primeiramente, porque o povo que o compunha produzia tudo aquilo que existia de valor no país e, em segundo lugar, porque esse mesmo povo seria constituído segundo o princípio da igualdade natural – enquanto clero e nobreza eram constituídos com base em privilégios. Portanto, Sieyès concluía que os únicos que podiam agir legitimamente em nome da nação eram os membros do Terceiro Estado. Em grande medida influenciados pelas ideias de Sieyès, os membros do Terceiro Estado presentes nos Estados Gerais autoproclamaram- se uma Assembleia Nacional Constituinte a fim de elaborar uma Constituição para a França200.

Sob o ponto de vista da filosofia política, Sieyès realizava uma combinação pouco usual das ideias de Hobbes e Rousseau. Ele se preocupava em buscar uma solução para o problema de como fazer funcionar uma política rousseauniana em uma sociedade fundada na representação. Sieyès via representação por toda a parte na França: nas trocas comerciais, onde indivíduos confiavam em outros para realizar o que não podiam fazer eles mesmos; nas famílias, onde os pais tomavam decisões pelas crianças; na educação, onde o conhecimento era buscado em favor de outros; e, baseando-se em Hobbes, na política, onde, a população de um Estado moderno era grande demais para agir coletivamente, a não ser por meio de representantes. Todavia, Sieyès não concordava com argumentos que diziam que as populações dos Estados modernos não podiam ter unidade sem a representação. Nesse ponto ele recorria a Rousseau ao afirmar que toda a nação que se preze é constituída por um povo que possui uma vontade própria. Sem embargo, ele acreditava que o povo da França era uma unidade política

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com plenos direitos, isto é, uma nação. Essa nação seria a única entidade capaz de conferir aos representantes a autoridade para agir. A teoria da representação de Sieyès era um tanto quando paradoxal, pois, por um lado, era a representação que viabilizava a política nacional – Hobbes – e, por outro, era somente a vontade geral que tornava a representação legítima – uma distorção do pensamento de Rousseau201.

Assim como Madison, Sieyès preocupava-se com os possíveis perigos da participação ampla do povo no governo. A sua solução foi, contudo, diferente daquela adotada nos Estados Unidos. Sieyès idealizou um complexo sistema indireto de eleição dos representantes, que viria a ser institucionalizado pela Constituição francesa de 1791. Ao propor que o povo escolhesse delegados para os colégios eleitorais, ao invés dos representantes, Sieyès criava um filtro para a opinião pública202.

Infelizmente, os desdobramentos da revolução fizeram com que os rumos tomados pela Assembleia Nacional Constituinte escapassem aos planos originais de Sieyès. Face a dificuldades de chegar a um consenso sobre a Constituição, os deputados constituintes acumularam muitos poderes executivos em cada vez menores círculos de representação, de modo que, ao cabo de algum tempo, apenas alguns indivíduos falavam pela nação. Dali em diante, seria questão de tempo até que a face hobbesiana da teoria de Sieyès se manifestasse. Os autoproclamados representantes do povo passaram a decidir quem pertencia ou não ao povo e usaram seus poderes para fazer cumprir suas decisões por meio da violência203.

Outro influente pensador que presenciou as turbulências da fase radical da Revolução Francesa e que, em função disso, colocou em questão o pensamento político da época, foi o suíço Benjamin Constant. Assim como Pierre Collard, Prosper de Barante e François Guizot, Constant entendia que, uma vez terminado o radicalismo, não se devia recorrer ao passado – ao sistema político do Antigo Regime – para evitar que o poder residisse inteiramente na soberania popular ou que pudesse ser exercido sem limites204. Ao propor novos dispositivos constitucionais, Constant buscava adaptar o governo à realidade pós-revolucionária da Europa. Ele não se propunha a recordar – e tampouco a

201 Ibid., p. 34.

202 GARSTEN, Bryan. Representative Government and Popular Sovereignty. Political Philosophy

Workshop at Brown University, 2007, p. 7.

203 RUNCIMAN; VIEIRA, op. cit., p. 36-37.

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reinventar – os arranjos políticos existentes, mas sim, a examinar empiricamente a sociedade contemporânea de modo a extrair dela as melhores regras de governo205. Importa lembrar que o pensamento de Benjamin Constant é de uma maneira geral tributário das suas observações tanto das fases iniciais da Revolução, quanto da sua conclusão e, naturalmente, o mesmo ocorre com a sua concepção de representação política. Com base nas suas leituras do terror revolucionário e do golpe de Estado de Napoleão Bonaparte, Constant argumentava que o alerta dado por Rousseau contra a usurpação do governo, no livro III do Contrato Social, havia sido completamente ineficaz206. Para ele, os escritos de Rousseau teriam servido de justificativa para novas formas de despotismo levadas a efeito por políticos que alegavam agir em nome do povo. Constant entendia que Rousseau teria tido a intenção de entregar a soberania ao povo, mas os políticos teriam descoberto que poderiam tomá-la para si alegando representá-lo207.

Em Principes de politique applicables à tous les gouvernements, Constant contradizia Rousseau ao afirmar que não havia tal coisa como a soberania absoluta, mesmo quando entregue nas mãos do povo208. Para Constant, a partir do momento em que se convencionava que a soberania do povo era ilimitada, criava-se um grau de poder demasiado grande e sujeito a se tornar um mal, independentemente das mãos em que fosse depositado209. Apesar de discordar de Rousseau no que se refere ao caráter absoluto da soberania popular, Constant não rompia com a ideia de que a soberania popular era a única fonte da autoridade política. Com efeito, para ele, a única alternativa à soberania popular era a força, algo ilegítimo por natureza. O que Constant termia profundamente eram as consequências de se entregar a soberania a algum agente ou governo210.

Para Constant, os argumentos de Rousseau sobre a distinção entre soberania e governo e a alegação de que a soberania não pode ser representada eram demasiado abstratos para prevenir governantes de usurparem a autoridade soberana. Portanto, de acordo com ele, não deveria haver distinção entre soberania e governo. Contudo, para prevenir a

205 Ibid., p. 163.

206 GARSTEN, op. cit., p. 7. 207 Ibid., p. 7.

208 Ibid., p. 7. 209 Ibid., p. 7. 210 Ibid., p. 7.

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usurpação, ele entendia que se devia simplesmente negar que a soberania pudesse ser absoluta211. É nesse sentido que Constant abraça a monarquia constitucional. Segundo ele, ao se fazer da monarquia um poder neutro, ela poderia manter os vários poderes ativos do governo e do legislativo em seus lugares212. Na ótica de Constant, os representantes frequentemente se tornavam perigosos quando se separavam do povo. Para prevenir esse mal, ele atribuía ao monarca o poder de dissolver as assembleias, isto é, um direito monárquico de defender o povo contra os seus representantes. Cumpre lembrar que, segundo essa solução, o poder neutro não podia escolher novos representantes. Esses deviam ser escolhidos por meio do sufrágio. Na formulação de Constant, ao exercer esse poder, o monarca contestava a capacidade daqueles parlamentares em representarem adequadamente a vontade popular213.

A defesa da monarquia constitucional por Constant possuía ainda uma justificativa democrática. Para ele, nenhum poder constitucional deveria estar apto a reclamar o direito de agir em nome do povo sem a possibilidade de ser desafiado por outro poder capaz de fazer o mesmo. Assim, se a usurpação era inevitável, o ideal seria multiplicar as fontes de usurpação de modo a colocá-las umas contra as outras214.

Ao contrário dos demais teóricos que abordaram a representação política, Benjamin Constant não se preocupava tanto com a participação política do povo, pois, na realidade, temia os seus representantes. Desse modo, ele se opunha fortemente ao sistema de eleições indiretas idealizado por Sieyès. Constant devotou grande parte do capítulo V do Principes para demonstrar o quão pernicioso era o sistema indireto e para sugerir a abolição dos colégios eleitorais em favor do sufrágio direto215.

Para Constant, em eleições indiretas, os candidatos a representantes não se dirigiam às moradas dos seus compatriotas, mas, sim, aos palácios dos colégios eleitorais. Desse modo, os candidatos não dependiam do povo, mas do governo216. Ele entendia que, até o momento em que escrevia, a França nunca teria tido eleições populares. Desde a introdução da representação nas instituições políticas francesas, a intervenção do povo

211 Ibid., p. 7-8. 212 Ibid., p. 8. 213 Ibid., p. 8-9. 214 Ibid., p. 9. 215 Ibid., p. 9.

216 CONSTANT, Benjamin. Principles of Politics Applicable to All Governments. Indianapolis: Liberty

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nunca teria sido temida. Na sua visão, os colégios eleitorais haviam distorcido os efeitos das eleições217.

Constant percebia que, nos sistemas eleitorais diretos, era preciso ter posse de grandes riquezas ou de vasta reputação para se atrair a atenção de muitos milhares de cidadãos. Isto é, era preciso buscar apoiadores muito além do alcance imediato. Contudo, nos indiretos, com seus colégios eleitorais, bastava não ter muitos inimigos218. Para ele, a escolha de assembleias por meio de colégios eleitorais criava uma autoridade que não era nem do governo e nem do povo219. O povo que não possuía o direito de voto, não podia mudar nada na composição das assembleias que falavam em seu nome220.

Observava Constant que, quando o colégio eleitoral estava de acordo com o governo, a nação via os seus representantes serem removidos sem ser capaz de se fazer ouvir. Quando o colégio eleitoral era hostil ao governo, governo e nação veriam representantes sediciosos reeleitos e sem qualquer oposição constitucionalmente legítima possível, a quem o repúdio unânime dos constituintes não era capaz de privá-los de sua posição como seus deputados221.

Constant recorria ainda à experiência inglesa para demonstrar os descaminhos do sistema eleitoral francês. Segundo ele, na Inglaterra, os candidatos discursavam em locais públicos ou em espaços abertos arrebatados de pessoas. Já nos colégios eleitorais franceses, o número de pessoas era restrito e os procedimentos severos. Questões não eram levantadas e só restava um silêncio rigoroso222. Se na França até mesmo as feiras e espetáculos eram cercados por soldados e baionetas – e ele ironiza dizendo que se pode imaginar que três cidadãos franceses eram incapazes de se reunir sem haver dois soldados entre eles –, na Inglaterra vinte mil homens se reuniam nas eleições sem a presença de nenhum soldado. Para Constant, a segurança de cada cidadão inglês era confiada à razão e interesse de cada um. Assim, a multidão sentia-se como depositária da ordem pública e da segurança individual223.

217 Ibid., p. 333. 218 Ibid., p. 334. 219 Ibid., p. 335. 220 Ibid., p. 335. 221 Ibid., p. 335-336. 222 Ibid., p. 333. 223 Ibid., p. 337.

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1.7.1 O Poder “Real” na perspectiva de Benjamin Constant

Como mencionamos há pouco, uma das saídas encontradas por Benjamin Constant para os problemas políticos de seu tempo foi a monarquia constitucional, a qual, em sua doutrina, devia contar com um quarto poder político. A este, ele deu o nome de Poder

Real, isto é, um poder privativo dos reis. Na concepção de Constant, o Poder Real

propunha-se a colocar os três poderes conhecidos em seus lugares quando estes se entravassem. Para isso, o novo poder precisava ser uma força exterior e neutra. Sua escolha residiu na figura do monarca porque a pessoa do rei já era rodeada de tradições e lembranças, além de ser revestida de um poder de opinião224.

Segundo Antônio Manuel Hespanha, o poder real de Constant não tinha a ver com as antigas pretensões monárquicas de que o rei personificava o corpo político. Antes disso, relacionava-se à contenção dos perigos provenientes de uma falta de coordenação entre os três poderes, algo que havia sido verificado na experiência pós-revolucionária francesa225. Para Constant, o poder neutro não necessitava, contudo, residir necessariamente na figura do rei. Era somente o prestígio tradicional da monarquia na Europa que aconselhava que o poder neutro fosse o Poder Real226.

Em suma, o Poder Real concebido por Constant, possuía basicamente duas finalidades. Uma era a de servir de ponto de equilíbrio aos demais poderes. A outra era a de prevenir a repetição da experiência traumática do “governo de assembleia” da fase inicial da revolução francesa. Desse modo, o Poder Real visava, sobretudo, à contenção do Poder Legislativo. Para tanto, ele devia possuir as prerrogativas básicas de sancionar as leis e de dissolver as Câmaras227. Segundo Constant, as principais atribuições e manifestações do Poder Real eram as seguintes: concessão ao monarca do direito de veto em relação às leis elaboradas pelo parlamento; dissolução das Câmaras; atribuição do direito de graça, afastando o império absoluto da lei parlamentar; poder de destituição dos ministros; exercício do contencioso entre a autoridade central e as autoridades locais;

224 CONSTANT, Benjamin. Cours de politique constitutionnelle. Paris: Didier, 1836, p. 2. 225

HESPANHA, op. cit., p. 252.

226

Ibid., p. 252.

227

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lançamento do processo de revisão da Constituição; nomeação dos magistrados e direito de paz e guerra228.

Como observa Hespanha, a proposta de Constant não deixa de ser em alguma medida paradoxal em relação à sua postura liberal. Embora fosse, em muitos dos seus escritos, defensor de propostas que se opunham à intervenção estatal, Constant entendia que o funcionamento do liberalismo necessitava da atuação do Estado. A ação estatal seria necessária, primeiramente, para desarticular os aparelhos reguladores do Antigo Regime, de modo a viabilizar a sociedade liberal. Em segundo lugar, o Estado serviria para manter o liberalismo em funcionamento, impedindo que esse gerasse as forças corruptoras de si mesmo. Outra função do Estado seria a defesa do liberalismo contra os seus inimigos, especialmente a massa pobre da população229.

A Constituição brasileira de 1824 e a portuguesa de 1826 foram os únicos textos constitucionais a admitirem o quarto poder preconizado por Benjamin Constant. Não obstante outras constituições da época tenham recorrido à “prerrogativa régia” de John Locke ou ao “princípio monárquico” de Montesquieu, para atribuir aos reis um conjunto de prerrogativas equivalente àquele do Poder Real, elas não o encerraram em um poder político à parte230. Todavia, a manifestação luso-brasileira do Poder Real, que recebeu o

nome de Poder Moderador, subvertia a proposta original de Constant, visto que era tributária de uma concepção monárquica pré-revolucionária231. Essa concepção era fruto da figura que outorgou as duas Constituições, D. Pedro de Alcântara. Quando impôs as Cartas aos brasileiros e depois aos portugueses, D. Pedro considerava-se soberano pela graça de Deus e reafirmava sua condição de representante direto da Nação232. Dentro desse quadro, pode-se afirmar que o Poder Moderador de D. Pedro era, na realidade, uma “forma pervertida” do Poder Real de Benjamin Constant.

228 Ibid., p. 174-175. 229 Ibid., p. 253. 230 Ibid., p. 254. 231 Ibid., p. 255. 232 Ibid., p. 255.

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Capítulo 2 - A teoria representativa liberal na interpretação da Constituição