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Capítulo 1 A representação política

1.5 A teoria da representação de Edmund Burke

Edmund Burke não foi apenas um defensor da independência do representante. Segundo Hanna Pitkin, é possível identificar nos demais escritos de Burke o desenvolvimento de outras ideias relativas ao conceito de representação127. Em linhas gerais, Burke advogava a ideia de que se devia representar toda a nação por meio do parlamento ou, em derivação, por meio dos parlamentares individualmente. Esses parlamentares deveriam formar uma aristocracia natural, uma elite governante128. Cumpre notar que, para Burke, as desigualdades eram naturais e incontornáveis em qualquer sociedade e, por consequência, seria mais do que aceitável que alguns cidadãos se mantivessem em um patamar mais elevado do que outros129. Essa elite governante era essencial na concepção de Burke porque a massa do povo seria incapaz de se governar sozinha, não seria capaz de pensar ou agir sem orientação130. Nas mãos da multidão, o poder significaria descontrole e falta de direção131. Para contornar esses perigos, os representantes deviam ser homens superiores, dotados de sabedoria e habilidade; e não homens medianos, típicos ou populares132.

Importa notar que Burke rejeitava as ideias dos filósofos franceses segundo as quais a razão política se prestava a descobrir as leis de Deus e da Natureza de maneira intelectualizada e abstrata. Para ele, isso deveria ser feito por meio da sabedoria prática133. Para Burke, o governo devia residir na sabedoria e não na vontade. Opondo- se claramente a Jean Jacques Rousseau, afirmava que aquilo que era bom para a nação não emergiria da vontade geral, mas da razão geral do todo134.

Burke desenvolve ainda o conceito de “representação virtual”. A partir dessa ideia, ele entende que a representação pode ocorrer sem eleições135. Não obstante alguns comentaristas tenham entendido que essa posição possa indicar a anulação da representação ou uma defesa da monarquia absoluta, Burke afirma que a representação virtual tem base na representação que então vigorava, e que as eleições eram

127 PITKIN, 1972, op. cit., p. 168. 128 Ibid., p. 168. 129 Ibid., p. 168. 130 Ibid., p. 168. 131 Ibid., p. 168. 132 Ibid., p. 168. 133 Ibid., p. 169. 134 Ibid., p. 169. 135 Ibid., p. 173.

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aparentemente necessárias136. O que ele pretendia dizer com isso é que, enquanto algumas regiões da nação eram representadas literalmente, isto é, elegiam membros para o Parlamento; outras não eram representadas efetivamente, sendo, desse modo, representadas “virtualmente”137. Quando escreve sobre representação virtual, Burke

não se refere à representação de toda a nação por cada membro do parlamento, mas sim, sobre pessoas e localidades que não possuíam o direito de participar diretamente da vida política138.

A representação virtual é complementada por outra forma de representação encontrada nos escritos de Edmund Burke: a “representação de interesses”. Burke concebia uns poucos e relativamente fixos tipos de interesses. Esses eram em grande medida econômicos e associados a localidades cujos meios de vida os caracterizavam. Ele falava basicamente em interesses mercantis, agrícolas e profissionais139. Tais interesses não estariam relacionados a algo pessoal. Não se trataria, portanto, do interesse de um agricultor, por exemplo, mas do “interesse agrícola”140. Nesse sentido, para Burke,

embora a cidade de Birmingham não elegesse membros para o parlamento, ela ainda assim seria representada virtualmente porque Bristol o era efetivamente. Assim, os interesses mercantis, dos quais Birmingham e Bristol compartilhavam, estavam devidamente representados. Não obstante um parlamentar pudesse ser chamado de representante de Bristol, uma vez que havia sido eleito por seus cidadãos, ele representaria, na realidade, os interesses daquela cidade, que podiam ser os mesmos de outras141. Para Burke, uma localidade “compartilha” um interesse, mas nenhuma localidade ou indivíduo “tem” um interesse142.

Embora as formulações Burke se concentrassem na representação de interesses, essa não era a única forma de representação conhecida por ele. Em 1782, Burke se opôs aos reformadores da legislação eleitoral inglesa, que procuravam introduzir o sufrágio universal masculino e distritos eleitorais iguais. Para ele, tal arranjo introduziria uma “representação pessoal”, segundo a qual o membro do parlamento representaria o povo

136 Ibid., p. 173. 137Ibid., p. 173. 138 Ibid., p. 174. 139 Ibid., p. 174. 140 Ibid., p. 174. 141 Ibid., p. 174.

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do seu distrito. Isso faria do parlamentar subserviente da sua vontade143. Burke entendia que os reformadores pretendiam estabelecer o princípio de que cada homem devia governar a si mesmo e, quando ele não o podia fazer pessoalmente, devia enviar um representante em seu lugar144. A representação pessoal afrontava, portanto, dois princípios básicos da representação burkeana: a ideia de que a nação devia ser governada por uma elite ilustrada e dotada de habilidades específicas, e a concepção de que se deviam representar interesses e não pessoas.

Por fim, Burke reconhece um último conceito ligado à representação: as expressões de necessidades e sofrimentos, o que ele chama de “sensações”, “sentimentos” ou “desejos”. As sensações, para Burke, dizem que algo está errado, isto é, configuram queixas. Das sensações podem emergir “opiniões”, que vão além das sensações, por adentrarem a esfera da especulação abstrata, sugerindo quais podem ser as causas dos problemas e as eventuais soluções145. Para Burke, ao contrário das opiniões, as sensações são confiáveis, pois as pessoas raramente se enganam quando sentem dores ou sintomas, sejam eles físicos ou políticos146. Nesse sentido, os sentimentos do povo seriam um importante indicador político, mas nada além disso:

(...) as criaturas mais pobres, analfabetas e desinformadas da Terra são os juízes de uma opressão prática. É uma questão de sentimento; e como essas pessoas geralmente tem sentido mais do mesmo (...), elas são os melhores juízes disso. Mas para a verdadeira causa, ou o remédio apropriado, elas nunca deveriam ser chamados a conselho (...) 147.

Para Burke, apesar de os sentimentos serem de natureza pessoal, seria importante que os sentimentos do povo fossem transmitidos com precisão para o governo. É por isso que a Casa dos Comuns deveria ser “a imagem expressa dos sentimentos da nação”148. Se o

papel do representante era o de encontrar os interesses do povo por meio de deliberações racionais, para fazer isso ele precisaria conhecer seus sentimentos149. Em suma, a teoria da representação política de Edmund Burke era construída em torno da representação da nação por uma elite; das representações efetiva e virtual; da deliberação parlamentar e, por último, do reflexo dos sentimentos populares. A

143 PITKIN, 1972, op. cit., p. 182. 144 Ibid., p. 182.

145 Ibid., p. 183. 146 Ibid., p. 183.

147 BURKE, 1792 (A Letter To Sir Hercules Langrishe) apud Ibid., p. 183. 148 BURKE, 1780 (Speech on Economic Reform) apud Ibid., p. 184. 149 Ibid., p. 184.

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deliberação era o núcleo da função representativa para Burke. Entretanto, para ele, os representantes não possuíam obrigações para com seus representados, exceto no sentido de que a legislatura devia se espelhar nos sentimentos populares150. Além disso, Burke se concentrava na representação de interesses ao invés de pessoas.

Os escritos de Burke são um exemplo clássico de como o pensamento político de finais do Período Moderno abordava a representação política. Não obstante essas concepções tenham sido contestadas em grande medida pelos teóricos norte-americanos da representação e pelos utilitaristas britânicos, as concepções burkeanas permaneceram influentes até meados do século XIX e, como demonstraremos em outros capítulos, encontraram espaço no sistema representativo brasileiro.