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Capítulo 4 As práticas eleitorais em Minas Gerais (1846-1881)

4.3 As Eleições Primárias

4.3.2 A organização da Mesa Paroquial

Terminada a cerimônia religiosa, o pároco fazia uma oração análoga às eleições. Na falta deste, um orador podia proferir um discurso sobre o mesmo objeto722. Ao término da oração, punha-se uma mesa no Corpo da Igreja, tomando o Juiz de Paz assento na cabeceira desta, como presidente, assentando-se o escrivão de Paz à sua esquerda. O escrivão do magistrado era o responsável pela redação da ata referente à organização da mesa. De um lado e de outro destes permaneciam de pé os eleitores e suplentes convocados723. Em seguida, era instalada uma divisória, normalmente uma balaustrada, entre a mesa e aqueles que estavam em torno dela, e os votantes, de sorte que os envolvidos pudessem colocar em prática a escolha da mesa sem serem perturbados. A divisão se propunha a afastar o público sem, no entanto, impedir que esse supervisionasse os trabalhos da mesa. O porte de armas era vedado aos presentes e as portas da Igreja deviam ser mantidas abertas724. Vale salientar que, ao contrário da qualificação, na eleição primária não havia margem para o uso de outros espaços que não fossem o corpo da Igreja.

Uma vez estabelecida a reunião da assembleia paroquial, o presidente realizava, em voz alta e inteligível, a leitura do Capítulo I do Título II, bem como do Capítulo I do Título I da lei de 19 de agosto de 1846 – mesmo após as reformas da mesma725. Imediatamente

após a leitura, o presidente punha em prática a chamada dos eleitores e suplentes, procedendo assim à designação dos membros da mesa. O método de escolha da mesa era o mesmo da junta de qualificação, incluindo todas as variações promovidas pelas

722 Lei nº 387, de 19 de agosto de 1846, art. 42. 723 Ibid., art. 42.

724 Ibid., art. 42. 725 Ibid., art. 43.

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reformas eleitorais726. Concluída a organização da mesa paroquial, o presidente mandava inutilizar a divisória que isolava a reunião dos demais presentes, bem como remover as cadeiras que cercavam a mesa, declarando solenemente, em seguida, estar instalada a Assembleia Paroquial727. A remoção das cadeiras tinha como propósito desimpedir o caminho para a circulação dos assistentes designados em torno da mesa de modo que esses pudessem examinar os trabalhos até então realizados.

Podemos estender ao rito de organização da mesa paroquial grande parte das nossas conclusões acerca da formação da junta de qualificação. Assim como na etapa anterior, encontramos evidências de que em algumas ocasiões as mesas recorriam a práticas que não eram previstas na legislação. Na ata de organização da mesa paroquial da freguesia principal da Vila do Santo Antônio do Curvelo, Comarca do Rio das Velhas, em 1849, verificamos que o presidente dessa recorreu ao sorteio com o objetivo de desempatar a escolha de eleitores e suplentes para a mesa728. Diferentemente do caso similar citado anteriormente – sobre a formação de uma junta qualificadora –, ocorreu empate de votos tanto no grupo de eleitores quanto no de suplentes. Assim, foram realizados dois sorteios com objetivo de solucionar o impasse. Entretanto, a ata faz menção ao costume de se empregar um garoto menor de idade – com sete anos e meio de acordo com o documento – para tirar a sorte em uma urna, somente para o desempate entre os suplentes729. Há de se observar que, no outro caso verificado, a prática foi utilizada para desempatar eleitores. Não há razões para presumir que houvesse uma distinção entre o desempate de eleitores e suplentes. O mais provável é que a ata tenha omitido a informação para o primeiro sorteio. Independentemente da dúvida suscitada pela fonte, o que importa é que o rito de formação dessa mesa paroquial em particular recorreu a uma prática não prescrita pela legislação. Reiteramos as conclusões já traçadas a respeito desse costume.

Como vimos, o Juiz de Paz mais votado era igualmente o responsável pela condução da escolha de seus auxiliares. Contudo, diferentemente da qualificação, em momento algum o magistrado foi removido da presidência. Portanto, em consonância com a nossa leitura sobre o processo de qualificação, a presença de um magistrado eleito como

726 Ibid., art. 43. 727 Ibid., art. 44.

728 APM. CV-08, p. 27. (Ata da organização da mesa paroquial da freguesia principal da Villa do Santo

Antônio do Curvelo, 1849).

729 Lembramos que tal prática não era prevista para essa etapa, mas somente para empates de votos

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responsável pela organização da mesa, bem como o método de escolha dos seus auxiliares, teriam como finalidade dificultar o controle das mesas por parte de chefes ou facções políticas. Entretanto, se no caso da qualificação verificamos que os princípios do método podiam ser anulados pela extensão do processo no tempo, no caso da eleição primária esse fator possuía um peso menor. Afinal, a eleição primária podia se estender por, no máximo, dois dias730. Consequentemente, os membros apontados para a composição da mesa paroquial no início do dia da eleição seriam de fato aqueles que conduziram boa parte do trabalho, quando não todo ele. Assim, se eleitores e suplentes fossem de algum modo coagidos a não participar da eleição primária como auxiliares da mesa por alguma força política, eles o deveriam ser antes da composição da mesa. Encontramos evidências dessa prática na ata que acabamos de mencionar, isto é, durante a organização da mesa paroquial a freguesia principal da Vila do Santo Antônio do Curvelo, Comarca do Rio das Velhas, em 1849. Na ocasião, o presidente leu o seguinte ofício do eleitor José Ribeiro de Araújo, que justificava sua ausência:

Meritíssimo Senhor, acuso recebido o oficio de VS de cinco de julho passado em que convoca-me na qualidade de eleitor desta paroquia a comparecer nessa matriz às nove horas da manhã do dia cinco do corrente agosto, para fazer parte das turmas na organização da mesa paroquial. Muito certo senhor acho-me privado de acudir a semelhante convocação e mesmo levar a mesa o meu voto (...) pois a ninguém a ignora que sou ameaçado de ser recolhido à cadeia no momento em que nessa Vila pisar, o que tem sido publicamente alardeado por mais de uma das autoridades policiais de que nenhum crime tenho cometido pouco ou nada importaria semelhante prisão se pudesse-me convencer-me de que a título de resistência deixa-se de ser massacrado e mesmo torturado depois de metido na prisão mas vejo- me cercado de mui sérias apreensões. Tudo temo e tudo espero e nesse estado de coação que deixo de comparecer, e ainda mais fui eu avisado no primeiro deste mês que o Sub Delegado Manoel de Mattos disse no mesmo dia à vista de mais de vinte pessoas que se eu fosse à vila que não passava a ponte para a outra parte porque aí estava uma escolta à minha espera para me prender, tão bem foi avisado por Joaquim da Costa Leite, que estando com o subdelegado João de Paiva este disse ao dito Costa que eu não havia de assistir às eleições e que assim que eu chegasse aí era logo preso731.

Em suma, no que diz respeito ao método de escolha dos auxiliares, o rito de organização das mesas paroquiais guardava muitas semelhanças com o de formação das juntas de qualificação. Isso demonstra, mais uma vez, a preocupação da legislação posterior a 1846 em promover organizações eleitorais isentas e, sobretudo, por meio de práticas

730 Lei nº 387, de 19 de agosto de 1846, art. 48.

731 APM. CV-08, p. 27. (Ata da organização da mesa paroquial da freguesia principal da Villa do Santo

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ordenadas. De fato, se comparadas com as práticas previstas pelas normas anteriores, nas quais os auxiliares das mesas eram escolhidos por aclamação pela Assembleia Paroquial, a lei de 19 de agosto de 1846 proporcionou grande avanço.

Não obstante a organização das mesas paroquiais guardasse similaridades com a formação das Juntas de qualificação, percebe-se que as referidas etapas do processo eleitoral requeriam o emprego de estratégias distintas de corrupção eleitoral por parte de forças políticas interessadas em intervir nas eleições. Por outro lado, a organização da mesa paroquial se distingue, sobretudo, pela pompa e suntuosidade do seu rito. Ao mesmo tempo em que havia uma preocupação em tornar público o desenrolar dos trabalhos, a mesa afirmava simbolicamente sua autoridade ao ocupar o corpo da Igreja Mariz e ao se isolar dos demais presentes por meio de uma divisória física. Nota-se, ainda, que o rito de organização da mesa paroquial mesclava as esferas política e religiosa. A nosso ver, a partir da eleição primária, o apelo do Estado à Igreja estaria muito mais relacionado à busca de uma sacralização da vida política do que meramente às necessidades práticas de acesso a um sistema de informações ou a edifícios adequados, como ocorria na qualificação. A celebração da Missa do Espírito Santo como ato de abertura da eleição é um bom exemplo dessa recorrência do Estado ao Sagrado. Verificamos que a referida missa significava muito mais do que uma solenidade ou uma exibição teatral das hierarquias sociais vigentes. Com efeito, ela mobilizava o dogma católico segundo o qual o Espírito Santo opera as atividades humanas quando invocado. Isso torna evidente que a sociedade imperial não confiava apenas nas normas e instituições para ter uma boa e correta eleição, mas, para tanto, recorria diretamente ao sagrado.