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A autobiografia de Harkhuf (Urk i, 120-131)

Mapa 2- Nomos do Baixo Egito

3.3 AS REFORMAS ADMINISTRATIVAS DA VIª DINASTIA E O FIM DO REINO ANTIGO.

3.3.1 CONSIDERAÇÕES SOBRE OS NOMOS MERIDIONAIS DO ALTO EGITO !

3.3.1.1 A autobiografia de Harkhuf (Urk i, 120-131)

A autobiografia de Harkhuf, junto à autobiografia de Weni, é uma das mais extensas e importantes do Reino Antigo. Sua tumba foi encontrada na necrópole de Qubbet el-Hawa, na região de Assuã, construída por membros da elite da ilha de Elefantina, capital do primeiro nomo egípcio (Ta Khentit, que significa “terra do arco”), situada na altura da primeira catarata do Nilo. A presença de um cemitério provincial nessa região, que data do fim do Reino Antigo, demonstra o crescente interesse do Estado egípcio nas relações com a Núbia, com o intuito de controlar as rotas de produtos africanos de luxo, como marfim e ébano. O estudo de cemitérios provinciais como esse, segundo Debora Vischak, deve ser realizado tendo em vista seu contexto original de produção, a fim de “demonstrar que seu caráter único é produto significativo da comunidade que o criou”382. Com isso, a arqueóloga acredita oferecer uma alternativa de estudo a respeito dessas comunidades que não leve unicamente em consideração sua relação com o faraó e o governo central e a ideia de continuidade, uma vez que,

(…) com o pé firmemente plantado na areia menfita, estudiosos têm visto a cultura material das províncias , em particular a arte da elite provincial, principalmente como uma reprodução bem sucedida de modelos menfitas. Similaridades formais são favorecidas, enquanto diferenças são racionalizadas, a fim de não perturbar a suave curva do arco narrativo central 383

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VISCHAK, Debora. Community and identity in Ancient Egypt. The Old Kingdom Cemetery at Qubbet el-Hawa. Cambridge : Cambridge University Press, 2014. p. 2.

383

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Apesar de considerarmos a perspectiva de Vischak bastante pertinente, para fins deste estudo iremos nos deter basicamente no aspecto relativo às relações entre o núcleo menfita e as províncias. É buscando, precisamente, elementos que ajudem a explicar essas relações que nos debruçamos sobre a autobiografia de Harkhuf. Este funcionário porta um extenso rol de titulaturas, dentre as quais encontram-se as de “supervisor do Alto Egito” e “supervisor das terras estrangeiras”. Alguns estudiosos apontam que Harkhuf tenha sido também nomarca384 de Elefantina. Para Klaus Baer, contudo, somente aqueles que portassem a titulatura Hr.y.w-tp aA n spAt + nome do nomo (que significa “grande chefe do nomo”) é que podem ser considerados nomarcas em sentido estrito385. Em Assuã, contudo, esse

título era praticamente inexistente, e os líderes de maior importância na região, como Harkhuf e Heqaib, cuja autobiografia também analisaremos, eram designados apenas como “líderes de expedição”. Suas tumbas, todavia,

(...) mostravam uma monumentalidade comparável em outras províncias somente as dos governadores provinciais, e o tom das autobiografias em suas tumbas cria a impressão de que essas pessoas pertenciam todas ao mesmo estrato social. Considerando a completa ausência do título Hr.y.w-tp aA na região de Assuã, não é provável que as responsabilidades dos chefes de expedição de Elefantina fossem similares às dos oficiais designados como Hr.y.w-tp aA em outras regiões, mas com a tarefa adicional de organizar expedições à Núbia?386

O fato de titulaturas diferentes representarem cargos similares ajuda a comprovar a hipótese de que a estrutura administrativa egípcia funcionava com muito menos rigidez e mais flexibilidade do que normalmente se atribui a ela.

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cf. RICE, Michael. Harkhuf. In. : _____. Who’s who in Ancient Egypt. London : Routledge, 2001. p. 58.

385

BAER, Klaus. Rank and Title in the Old Kingdom. The Structure of the Egyptian Administration in the Fifth and Sixth Dynasties. Chicago: University of Chicago Press, 1960. No Reino Antigo, o título de nomarca Hr.y.w-tp aA n spAt o de mais alta importância nas províncias, seguido do Hry-tp aA n Smaw (supervisor do Alto Egito), sSm-tA (líder da terra), imy-r Hm(w)-nTr (supervisor dos sacerdotes) e imy-r wpwt (supervisor das comissões).

386

WILLEMS, Harco. Historical and Archaeological Aspects of Egyptian Funerary Culture Religious. Ideas and Ritual Practice in Middle Kingdom Elite Cemeteries. Leiden : Brill, 2014. p.54. Trata-se da mesma obra publicada em francês, no ano de 2008, sob o título Les Textes des Sarcophages et la Démocratie, em versão revisada e atualizada.

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De volta ao caso de Harkhuf, este parece ter atuado junto a seu pai, Iri, e ambos exerciam a função de sacerdote leitor e companheiro único do rei, conforme se infere através da leitura de sua autobiografia: “Sua Majestade, o rei Merenra, mandou-me junto a meu pai, companheiro único e sacerdote leitor, Iri, para Iam para abrir os caminhos para essa terra estrangeira”. Dois faraós são mencionados em sua autobiografia, Pepi II e Merenra I, os que nos leva a datar o documento como pertencente à VIª dinastia. Este último o teria incumbido de uma série de expedições a uma terra identificada como Iam387 (a autobiografia menciona três, no total), das

quais é possível retirar valiosas informações a respeito das relações do Egito com a Núbia no período do Reino Antigo.

A primeira parte da autobiografia de Harkhuf, que encontra-se logo na entrada de sua tumba, apresenta a estrutura padrão das autobiografias do período: inicia-se com a fórmula Htp-di-nsw (“uma oferenda que o rei faz”), seguida da descrição de suas funções e apelos para um bom enterro, para que se torne um imakhu (imAxw)388. Outro elemento comum nas autobiografias e que aparece no texto de

Harkhuf é a fórmula de apelo aos vivos (“ó vivos que estais sobre a terra e passais pela minha tumba”) com o propósito mágico de assegurar a provisão de oferendas funerárias. A presença da fórmula Htp-di-nsw é importante uma vez que associa diretamente o funcionário ao rei, o qual era também responsável pela doação de um domínio funerário que permitisse a construção de sua tumba e a produção de oferendas destinadas ao seu culto mortuário.

O texto de Harkhuf continua com a descrição de três viagens que teria realizado a pedido do rei Merenra I. A primeira delas, com duração de sete meses, Harkhuf realizou junto a seu pai, com o intuito de “abrir os caminhos para essa terra !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

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A localização precisa de Iam é alvo de inúmeras controvérsias uma vez que, fora da autobiografia de Harkhuf, há poucas referências a esse topônimo e as informações existentes não são suficientes para que se possa chegar a uma conclusão definitiva sobre sua exata localização. Até a descoberta recente de uma inscrição mencionando Iam em Gebel Uweinat, na região da Líbia, a maioria dos estudiosos a situava na porção norte da Núbia, enquanto uma minoria defendia sua localização o Deserto Ocidental. Para uma discussão envolvendo os debates recentes sobre Iam, cf. COOPER, Julien. Reconsidering the location of Yam. JARCE 48, 2012, pp. 1-22. A autobiografia de Mekhu II, filho de Sabni, também comenta a respeito da região de Iam, para onde seu pai teria sido mandado e onde teria morrido.

388

Sobre o uso do termo imakhu, Snape comenta que sua importância está na íntima associação com uma pessoa ou pessoas (no caso de Harkhuf, essa associação aparece com Ptah-Sokar, com Anúbis e com Osíris, este também identificado sob o epíteto de « Grande Deus »). Essa associação e a transformação de uma pessoa em um imakhu é o que, segundo Snape, garantiria a ela a provisão de um domínio funerário. (SNAPE, Steven. Ancient Egyptian Tombs: The Culture of Life and Death.

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estrangeira”. Existem ao menos três maneiras de se interpretar o verbo wb3, traduzido por Strudwick e Lichtheim como “abrir”: inspeção, exploração ou ato ligado a atividades comerciais389. No registro da primeira viagem não fica claro se Harkhuf

teria sido o primeiro incumbido da exploração dessas terras – menciona-se apenas a sua volta bem-sucedida à Elefantina carregado de uma série de bens valiosos390. No

registro na segunda viagem, dessa vez realizada sem a presença de seu pai e com duração de oito meses, é possível inferir o pioneirismo de Harkhuf na região de Iam, na parte em que este funcionário salienta ter explorado aquelas terras como ninguém o havia feito antes (“eu explorei essas terras estrangeiras como ninguém. Eu não vi isso sendo feito por nenhum companheiro e supervisor das terras estrangeiras que foram previamente para Iam”). Tendo isso em vista, Goedicke crê que o intuito das expedições de Harkhuf era o de explorar novas terras391.

Na descrição da terceira viagem, Harkhuf comenta não ter encontrado o chefe de Iam quando chega à região, visto que este havia se dirigido a Tjemehu, no deserto da Líbia, para levar os líbios “para o canto ocidental do céu”392. Não satisfeito, Harkhuf comenta sobre como foi atrás do chefe de Iam e o “satisfez”. O termo para satisfez, em egípcio, é sHtp, cujo significado pode variar entre o cumprimento de uma atividade comercial e agradar, no sentido de retribuir um ato resultante da lealdade dos estrangeiros com o rei egípcio, de forma a estabelecer relações pacíficas entre esses povos. O que pode ter acontecido é que provavelmente Harkhuf ofereceu ajuda ao chefe de Iam no combate com os líbios, pelo que teria sido recompensado materialmente com vários asnos carregados de

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 389

Para essa discussão cf. SILVA, André. Alguns problemas de interpretação da biografia de Horkhuf do Império Antigo Egípcio. ISSUU – Revista Férula, n4, Instituto PAEHI.

390

O que nos referimos aqui genericamente como bens corresponde ao termo egípcio inw, o qual é traduzido por Strudwick como « tributo », enquanto aparece como « presente » na tradução de Miriam Lichtheim. Por motivos que iremos expor adiante, seguiremos com a tradução de Lichtheim.

391

GOEDICKE, Hans. Harkhuf’s Travel. Journal of Near Eastern Studies, v. 40, n.1, janeiro de 1981, pp. 1-20.

392

A menção à ameaça líbia é importante pois, durante o Primeiro Período Intermediário, vemos o estabelecimento da dinastia heracleopolitana, que substitui a menfita, e cuja origem é atribuída aos povos vindos da Líbia que invadiram o Egito e se estabeleceram na região do Fayum. Jaromír Málek sugere que as várias cenas de reis vencendo seus inimigos, insistentemente pintadas no final da VIª dinastia exprimem uma tentativa de, através do poder mágico que se acreditava ter a escrita e a representação pictográfica, garantir a continuidade dessa estabilidade em um momento em que estrangeiros ameaçavam as fronteiras egípcias. (MÁLEK, op. cit.)

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bens de luxo (peles de pantera, marfim, incenso etc.)393. Também como resultado de ter agradado esse chefe, conta como este “louvou todos os deuses em nome do rei”. Algumas informações interessantes podem ser retiradas desse último trecho. A primeira delas é que o agradecimento do chefe de Iam não se dirige à pessoa de Harkhuf, mas sim ao faraó, uma vez que passa a louvar aos deuses em nome deste último. Isso denota a posição de Harkhuf enquanto intermediário do rei o qual, em última instância, era o responsável por seu status e riqueza, como veremos adiante. O termo usado na autobiografia, nesse momento, para se referir ao rei egípcio é itw, o qual significa soberano o que, segundo interpretação de Goedicke, demonstra que o chefe de Iam reconhece o faraó como soberano, mas não está submetido a ele – do contrário, teria usado não o termo itw, mas nsw bity.

A recompensa material que o Harkhuf recebe em nome do rei pode ser inserida na lógica do dom e do contradom, através da qual “as trocas e contratos se fazem sob a forma de presentes, na verdade obrigatoriamente dados e retribuídos”394. Essa lógica contribuía, em grande parte, para abastecer os diversos

reinos com matérias-primas e artigos de luxo diversos.

Imediatamente após seu encontro com o chefe de Iam, Harkhuf manda um funcionário acompanhado de um iamita à Corte, para que contassem ao rei o que haviam visto e como havia desempenhado bem sua função satisfazendo o chefe de Iam já que, uma vez ciente dos feitos de Harkhuf, o rei poderia recompensá-lo. Logo no início de sua autobiografia, na descrição de sua primeira viagem, Harkhuf comenta sobre os bens trazidos da região de Iam e como foi “altamente favorecido por isto”. Em sua volta para casa, o supervisor do Alto Egito comenta ter se encontrado com os chefes de Irtjet, Setjau e Wawat395 e, quando chega em

Elefantina, narra ter sido recepcionado por um funcionário de nome Khuni, o qual teria sido enviado para conceder-lhe “navios carregados com vinho, pães, bolos e cerveja” provavelmente para usufruto pessoal como recompensa por seus atos.

As estreitas relações entre o rei e o Harkhuf podem ser verificadas no fato desse funcionário possuir, em sua tumba, uma carta a ele dirigida escrita pelo faraó !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

393

Pantalacci levanta hipótese de que Harkhuf teria parado em Balat por ocasião da sua terceira viagem em direção à Núbia (PANTALACCI, op. cit., 2007, p. 345)

394

MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo : Cosac Naify, 2003. p.187. 395

Em sua segunda viagem também aparecem referências ao chefe de Irtjet e Setjau. A menção à Wawat pode indicar mudanças na organização política da região, com a absorção de um território por parte de um único governante.

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Pepi II. Nessa carta, o rei mostra-se vivamente empolgado com a aquisição de um pigmeu que Harkhuf teria conseguido em Iam, e ordena a esse funcionário:

Suba para a Residência agora mesmo! Apressa-te e traga contigo esse pigmeu que trouxeste da terra dos moradores do horizonte. Vida, prosperidade e saúde para que ele possa dançar para o deus e alegrar o coração do rei do Alto e Baixo Egito, Neferkara, que vive para sempre!396

Pepi II é claro, ao final da carta, ao dizer que “minha majestade fará coisas boas por você”, indicando que Harkhuf será recompensado de alguma forma tanto por seus préstimos ao Estado egípcio quando por atender a esse pedido do faraó.

Em conclusão à análise da autobiografia de Harkhuf, no que tange mais especificamente à atuação do Estado egípcio e a relação entre poder central e poderes locais, verificamos que a expansão de fronteiras é feita no âmbito local. Nenhum funcionário de Mênfis veio inspecionar os trabalhos de Harkhuf e, nem por isso, as relações com a Residência deixam de ser mencionadas, como é o caso da carta que Harkhuf envia ao faraó para dar ciência de seus atos. Ao mesmo tempo, a função exercida por Harkhuf lhe dá acesso a diversos bens de prestigio, como aqueles obtidos através da rota de produtos africanos da Núbia, e com isso ajudam a consolidar seu status social diferenciado. Diversas recompensas são obtidas por esse funcionário em razão de sua função a serviço do Estado egípcio, sendo uma delas a construção de uma tumba monumental e todo o texto da autobiografia deixa entrever as estreitas relações entre Harkhuf e a Residência, em uma relação de benefícios mútuos. Através de um agente local o rei consegue expandir suas fronteiras, garantir o acesso a importantes rotas comerciais e obter o reconhecimento de um chefe de terra estrangeira, enquanto Harkhuf consegue consolidar sua posição influente na região através do serviço ao Estado. Uma das titulaturas portadas por esse funcionário, a de smr-waty (“companheiro único” ou “amigo único” do rei) é usada justamente para atestar essa proximidade e indicar seu poder e status, conforme se observa na inscrição de um outro funcionário, Tjeti, que serviu aos reis Merenra e Pepi I: “(...) quando fui nomeado Amigo Único sob a Majestade de Pepi I, quando fui nomeado Amigo Único fui introduzido à Casa Real, honra que nunca havia sido concedida antes a qualquer outra pessoa e meus !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

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desejos foram atendidos mais que generosamente pela Residência sob a Majestade do faraó Merenra”.

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