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Autobiografia de Izi e de Qar (Merynefer)

Mapa 2- Nomos do Baixo Egito

3.3 AS REFORMAS ADMINISTRATIVAS DA VIª DINASTIA E O FIM DO REINO ANTIGO.

3.3.1 CONSIDERAÇÕES SOBRE OS NOMOS MERIDIONAIS DO ALTO EGITO !

3.3.1.4 Autobiografia de Izi e de Qar (Merynefer)

Uma das autobiografias mais conhecidas do Reino Antigo é a autobiografia de Qar, do nomo de Edfu, segundo nomo do Alto Egito, que serviu aos reis Isesi, Unas e Teti, participando, então, da transição da Vª para a VIª dinastia412. Essa autobiografia é repleta de frases padrão que intuem exaltar as excelentes qualidades desse funcionário que, dentre os cargos mais importantes, destacou-se como nomarca da mencionada região ao final da VIª dinastia.

O texto dessa autobiografia inicia-se com a tradicional fórmula de apelo aos vivos, a qual aparece junto à descrição de alguns de seus títulos. Posteriormente, encontramos a fórmula htp di nsw, como é de costume nas autobiografias do Reino Antigo. Após uma série de registros de fórmulas funerárias, são mencionadas no texto algumas etapas da carreira de Qar, as quais nos ajudavam a comprovar a hipótese de que os membros das elites locais eram enviados para estudar na Corte e, depois, eram designados pelo rei para desempenhar funções de confiança. Qar menciona ter sido educado “entre as crianças dos chefes” no reinado de Pepi I e, logo após, comenta sobre sua promoção a “amigo único do rei”, ao que se sucedem !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

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Cf. BÁRTA, Miroslav. Tomb complex of the vizier Qar, his sons Qar Junior and Senedjemib and Iykai. Abusir XIII. Praga : Czech Institute of Egyptology, 2009. Pp. 87-117.

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diversos outros títulos de importância que esse funcionário passa a acumular ao longo de sua vida, sempre “em virtude de sua grande excelência”. A educação de um indivíduo de família provincial em Mênfis era uma hábil estratégia por parte das elites menfitas para difundir a cultura palatina nas províncias, já que essas pessoas retornavam a seus nomos de origem em posições estratégicas na administração e levavam, consigo, elementos característicos do modo de vida e de organização das elites centrais difundindo, assim, essa visão de mundo. A esse respeito, João comenta que

Há uma lenta difusão de elementos outrora pertencentes à realeza a estes setores da população, uma vez que o motor que movia a ascensão destas elites era um processo de imitação e emulação em relação à Corte. Na decoração dos sarcófagos, por exemplo, apareciam pintadas algumas possessões que não representavam, necessariamente, possessões do morto, mas sim elementos apropriados dos rituais fúnebres do monarca. Os amuletos apotropaicos colocados junto ao corpo do rei morto foram, igualmente, adquiridos por particulares, muito embora fossem utilizados em sua confecção materiais de qualidade inferior em relação àqueles confeccionados para o rei. Um outro exemplo é a utilização do formato piramidal na construção das tumbas de alguns nobres, outrora marcas distintivas dos locais de sepultamento dos governantes egípcios413.

Note-se, contudo, que essa é uma via de mão dupla pois, ao mesmo tempo que as elites se integram à chamada “cultura formal”, algumas referências ideológicas referentes a esses grupos também se incorporadas aos códigos canônicos. Um exemplo são os Textos dos Sarcófagos que aliam encantamentos produzidos outrora para usufruto do rei a variações regionais, incorporando temas caros à visão de mundo das elites locais. A junção do morto com a sua família no outro mundo é um desses elementos, uma vez que os laços com os ancestrais “(...) conjuram imagens de conectividade social, com o objetivo de reintegrar o falecido em uma comunidade que acolherá aquele que foi separado da terra dos vivos”414:

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JOÃO, Maria Thereza David. Anais do XXVI Simpósio Nacional da ANPUH. São Paulo, 2011.

Disponível em:

http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300882652_ARQUIVO_Anpuh_SP_2011.pdf (último acesso em 06/04/2015).

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ASSMANN, Jan. Invisible religion and cultural memory. In: ______. Religion and cultural memory. Stanford: Stanford University Press, 2006. p. 63. Como prova da ligação entre as famílias provinciais e seus antepassados está o aumento da construção de santuários familiares dedicados ao culto de ancestrais importantes e a divinização de alguns nomarcas nas regiões de Edfu e Elefantina. É o

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TS 143 - (…) N juntou seus dependentes, para que a família de N pudesse vir a ele. As massas serviram N, N fez um escrito para estes espíritos que estão escondidos nos lugares do Ocidente, para que eles dêem um espírito a N, para que eles possam criar a dignidade de N, para que eles possam acordar N quando N dormir415.

TS 146 - Reunindo a família, pai, mãe, amigos, associados, crianças, mulheres, concubinas, servos, trabalhadores e tudo pertencente a ele no mundo dos mortos. Um encantamento um milhão de vezes correto416.

Um ponto interessante do texto de Qar é que, se analisado junto à autobiografia de outro importante nomarca da região, Izi, seu pai, podemos acompanhar o desenvolvimento da presença do Estado nessa província e de que forma as elites menfitas passam a explorar os recursos locais em seu benefício.

Izi é o primeiro a portar o titulo de nomarca (Hri-tp aA n spAt) no nomo de Edfu e a ser enterrado na região. Antes de ser nomarca, é apontado como HqA Hwt. A existência de um hwt no nomo de Edfu indica que já no reinado de Unas havia interesse por parte do Estado no controle de atividades produtivas na região. No momento em que é designado como nomarca e, também, como responsável pelos trabalhos régios (título que aparece concomitante à sua designação como vizir do sul417), passa a orientar sua atuação de acordo com os desígnios da Residência. A partir da VIª dinastia a administração provincial do nomo de Edfu conhece um grande desenvolvimento, haja vista a presença de inúmeros funcionários importantes atestados nas tumbas do período e mesmo posteriormente, no Primeiro Período Intermediário. O interesse do Estado na região pode estar vinculado ao seu caráter econômico e estratégico. Moreno Garcia menciona a existência de alguns grafites que mostram, no Reino Antigo, a passagem de expedições por uma rota que ligava Edfu ao Mar Vermelho. Por esse motivo, esse nomo deve ter servido como um importante local para abastecimento daqueles que por ali passavam, de onde se !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! caso de Heqaib, da sexta dinastia, cuja autobiografia foi analisada anteriormente (RAUE, Dietrich. Sanctuary of Heqaib. UCLA Encyclopedia of Egyptology, Los Angeles, 2014).

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TS 143. 416

TS 146. 417

Algumas controvérsias aparecem em relação ao título de « vizir do sul » encontrado em Izi. Para autores como Alliot e Martin-Pardey, esse título não representa o exercício do vizirato na prática. Para o primeiro, Izi teria sido vizir da capital no governo de Teti e, aposentado, resolveu fazer-se enterrar na província (ALLIOT, Maurice. Un nouvel exemple de vizir divinisé dans l’Égypte ancienne. BIFAO 37, 1937-38, pp. 93-160). Para o segundo, Izi teria usurpado esse título (MARTIN-PARDEY, Eva. Untersuchungen zur ägyptischen Provinzialverwaltung bis zum Ende des Alten Reiches. Hildesheim, 1976). Preferimos, contudo, acatar a posição de Kanawati, que discorda de ambos por julgar que não há evidências que comprovem nenhuma das mencionadas hipóteses.

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explica a existência de diversos domínios agrícolas estatais (os Hwwt), nessa região. Uma presença mais efetiva de instituições estatais na província de Edfu ajudaria, igualmente, a assegurar o controle dessas rotas.

A otimização da captação desses recursos pode ser aferida através da passagem da autobiografia de Qar em que o nomarca diz “eu fiz com que o gado desse nomo fosse mais numeroso que o gado que estava no estábulos à frente do todo o Alto Egito”, uma vez que o gado era uma importante referência para medir as riquezas adquiridas pelo Estado418. Mesmo que as fontes não nos apresentem dados suficientes para uma análise mais aprofundada, é de se supor o grande impacto da maximização do aproveitamento dos recursos locais na vida da população campesina, a qual deveria sofrer, dentre outros fatores, com o aumento da pressão fiscal do Estado em forma de tributos pagos em trabalho (corveia) e em produtos.

O título de “supervisor do Alto Egito”, portado por Qar, ajuda-nos a compreender a organização da administração estatal no contexto da sexta dinastia. Em primeiro lugar, a presença de um “supervisor do Alto Egito” é novidade introduzida pelos governantes da VIª dinastia, provavelmente com o intuito de reforçar a presença estatal na porção meridional do Egito. Ao exercer essa função, Qar torna-se responsável por todos os nomos da região e “é valioso ser o senhor no comando de todos os chefes na totalidade do Alto Egito”. Além disso, Qar menciona ser aquele “que julga todo o Alto Egito”, indicando que essa posição também o tornava responsável por questões de justiça. A menção ao controle de terras estrangeiras também é feita nessa autobiografia o que, para Strudwick, refere-se ao controle de rotas para os oásis419.

Além disso, a autobiografia de Qar representa uma mudança importante no que diz respeito ao conteúdo desse tipo de registro. Nela, nota-se a introdução de um novo estilo, repleto de temas inexistentes até então e que se tornarão, da VIª dinastia em diante, canônicos especialmente no contexto do Primeiro Período Intermediário420. Moreno Garcia levanta um ponto importante ao indicar que a !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

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Isso se deve, provavelmente, ao número limitado do rebanho no Egito Antigo. Quem chega a essa conclusão é Ciro Cardoso que, ao basear-se em estudo de Alessandra Nibbi, atesta ser o couro uma matéria-prima consistentemente escassa no terra dos faraós (cf. CARDOSO, op. cit. (2015), p. 28). 419

TPA, p. 344. 420

Uma comparação entre os vários estágios referentes à produção das autobiografias no Reino Antigo pode ser encontrada em JOÃO, op. cit. (2008), pp. 53-63.

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presença desses novos temas e desse novo estilo autobiográfico não é generalizado para todo o Egito e que aparece somente nos textos encontrados na região de Edfu421. Isso nos permite supor que esse desenvolvimento se trata de uma inovação regional relacionada ao contexto dessa província. Dentre as mudanças perceptíveis na autobiografia de Qar está o foco no indivíduo, cuja atuação divide-se em duas frentes: em funções estatais e no serviço à comunidade, auxiliando os menos favorecidos. Um dos temas que passa a ser recorrente nas autobiografias posteriores é o tema da fome, repetido inúmeras vezes através da fórmula “eu dei pão ao todos os famintos e roupas ao desnudos que encontrei nesse nomo”.

A narrativa presente em Qar, embora repleta de fórmulas padrão, é interessante para que possamos atestar a importância das relações de patronato no contexto da VIª dinastia. Qar aparece como um patrono benevolente que dá de comer aos habitantes do nomo com alimentos de seu pr-Dt422, veste o desnudo,

ajuda os fracos frente aos opressores (“eu resgatei o desamparado daquele que era mais poderoso que ele”), propicia meios para o enterro “daqueles que não têm filhos”, dentre outras boas ações.

Assmann define o patronato como um modelo de “solidariedade vertical”, utilizado para exprimir uma relação entre indivíduos de posições sociais distintas, e não entre "iguais", da mesma maneira como Finley define as relações entre patrono e cliente para o caso da Roma Antiga, de onde o termo é emprestado423. Em sua concepção, esse tipo de laço de solidariedade se fortalece nos momentos em que o poder central se enfraquece, uma vez que « por baixo da superfície monocêntrica do estado territorial dominante nas fases de “Reino” da história egípcia, uma profunda estrutura policêntrica repetidamente aparecia quando a superfície desmoronava »424. Parece-nos, contudo, mais adequado pensar da forma como orienta João para a qual, longe de se constituírem uma exceção, as relações de patronato « fazem parte da própria estrutura da sociedade egípcia e, como tal, sua proeminência em !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

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MORENO GARCIA, op. cit. (1998). 422

O pr-dt representa o conjunto de todos os bens de função adquiridos por um funcionário. Sobre o pr-dt, cf. MORENO GARCIA, Juan Carlos. Hwt y la retribución de los funcionários provinciales en el Imperio Antiguo: el caso de Jbj de Deir el-Gebrawi (Urk. I 144:3 – 145:3). Aula Orientalis 12, 1994, pp. 29-50.

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FINLEY, Moses. Autoridade e Patronato. In: ______. Política no mundo antigo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1983. cap. 2.

424

ASSMANN, Jan. The mind of Egypt. History and meaning in the time of the pharaos. Cambridge: Harvard University Press, 2003. p. 84.

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períodos de crise não pode significar uma ruptura radical com os modelos preestabelecidos »425.

A presença da lógica do patronato será melhor desenvolvida nesta tese quando da análise de uma outra autobiografia, a de Ankhtifi de Mo’alla. Por ora, resta apenas salientar que o elemento patronal era uma lógica coexistente à estatal e sua presença não indica, necessariamente, o enfraquecimento do Estado426. Há indícios, inclusive, de que o Estado subordinava o patronal à sua própria lógica, o que nos serve de argumento para contestar a tradicional visão sobre o fim do Reino Antigo e Primeiro Período Intermediário através da qual o recrudescimento dos laços de patronato427 é considerado fator de desequilíbrio do Estado levando, em última instância, à fragmentação política no Egito por favorecer a autonomia de certos grupos e indivíduos em relação ao poder central.