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APLICABILIDADE DO CONCEITO DE ESTADO ÀS REALIDADES PRÉ CAPITALISTAS

1 DISCUSSÕES SOBRE ESTADO

1.2 APLICABILIDADE DO CONCEITO DE ESTADO ÀS REALIDADES PRÉ CAPITALISTAS

Os estudos a respeito do surgimento do Estado vêm, há muito, chamando a atenção de historiadores e cientistas políticos. Desde o início, a maioria preocupou- se em definir a gênese do chamado Estado Moderno, debruçando-se sobre a história da Europa feudal a fim de precisar onde e como se deu a ruptura que permitiu o nascimento do Estado capitalista. Esta abordagem traz consigo a ideia de que Estado é apenas aquela forma de organização política surgida no continente europeu no século XVI – o Estado-nação, portanto. Esse é, talvez, o maior dos problemas nos estudos relativos ao Estado pois, embora possa ser definido de diversas formas (De Quiroga fala, por exemplo, em 140 definições33), existe a

impressão de que é um conceito universal, aplicável a todas as formações estatais. O Estado, tal qual definido por Weber – concepção que será recuperada em outro momento desse capítulo – acabou por se consolidar como esse modelo universal quando, na realidade, apresenta apenas uma forma de interpretar esse Estado34.

No tocante à aplicabilidade do conceito de Estado, Dell’Elicine, Francisco, Morin e Miceli verificam a existência de duas polarizações extremas, quais sejam: o paradigma evolucionista, que distingue o Estado de uma forma anterior, “primitiva”, sendo ele, portanto, um estágio “civilizatório” e “superior”; e o antiestatalista, para o !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

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DE QUIROGA, Pedro López Barja. La ciudad antigua no era un Estado. In. : DELL’ELICINE, Eleonora ; FRANCISCO, Héctor ; MICELI, Paola ; MORIN, Alejandro. Pensar el Estado en las sociedades precapitalistas. Pertinencia, limites e condiciones del concepto de Estado. Universidad Nacional de General Sarmiento : Buenos Aires, 2012. p. 79.

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Apesar de não haver consenso entre os especialistas para uma definição única do que seja o Estado, usualmente este é definido a partir de três eixos principais (cf.: CLAESSEN, Henri J. M.; SKALNÍK, Peter. The Early State. The Hage: Mounton Publishers, 1978): existência de um território delimitado (cabe a pergunta: como definir esse limite territorial?), no qual habita um certo número de pessoas (novamente questiono: qual é o mínimo de população para que se possa ter um Estado?) e que possui um tipo específico de governo, o qual comporta um núcleo centralizado no qual estão um soberano e seu entorno (fica outra pergunta: Estado se confunde com governo centralizado?). Esse Estado seria, então, o responsável pela manutenção da ordem e a da lei, uma vez que possui o monopólio da coerção. Veremos ao longo desse capítulo como essa interpretação sobre o Estado é fruto de uma visão específica (a qual chamaremos de liberal) e outros vieses, essencialmente de cunho materialista, serão apresentados como contrapontos.

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qual o Estado nasce apenas como resultado do surgimento da sociedade capitalista, não reconhecendo formações estatais anteriores a ela35.

Disso resultam as discussões a respeito da pertinência ou não do uso do termo Estado para se referir a organizações políticas anteriores ao advento do Estado Nacional Moderno, tais como aquelas presentes na antiguidade e no medievo e em contextos exteriores à Europa. Muitos estudiosos, a exemplo de Tantaléan36 e do egiptólogo Juan Carlos Moreno García, advogam que a defesa

desta ou daquela visão sobre o Estado está intimamente associada a interesses políticos. Para Moreno Garcia, os estudos sobre os Estados europeus visam, historicamente, reforçar a hegemonia ocidental através da identificação, no Ocidente, de um modelo de desenvolvimento particular, que seria “superior”. O autor enxerga, ainda, que o resgate do estudo dos estados antigos visa justamente oferecer uma contrapartida e tirar essa centralidade ocidental, combatendo uma perspectiva linear que coloca a Europa sempre à frente. Isso se deve ao enfraquecimento de sua hegemonia nos dias atuais, nos quais o passado e o desenvolvimento de regiões atualmente em pleno crescimento econômico37, como é o caso da Índia e da China,

passam a ser valorizados e a ganhar foco. Trata-se, portanto, de repensar o estudo das sociedades antigas em outras bases que não tomando por referência sua aproximação ou distanciamento em relação ao desenvolvimento europeu.

Entender o Estado restringindo-o ao Estado Moderno é partir, portanto, de uma perspectiva eurocêntrica, dominante nos estudos históricos. Lucien Febvre adota claramente essa perspectiva, uma vez que, para ele,

Falar do problema das origens do Estado quando se trata de imaginar o que na mais remota das sociedades humanas puderam ser os primórdios de um poder que nem sequer podemos denominar político (...) é dar ensejo a uma intolerável confusão de ideias. As origens do Estado devem ser !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

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DELL’ELICINE, Eleonora ; FRANCISCO, Héctor ; MICELI, Paola ; MORIN, Alejandro . Pensando en situación: el concepto de Estado en el estudio de lassociedades precapitalistas. In. : _____, op. cit., 2012. p. 128 .

36

TANTALEÁN, Henry. Arqueología de da formación del Estado. El caso de la Cuenca norte del Titicaca. Lima: AFINED, 2008.

37

MORENO GARCIA, Juan Carlos. Introduction. Élites et états tributaires : le cas de l’Égypte pharaonique. In. : _____ (org.). Élites et pouvoir en Égypte ancienne. CRIPEL 28 (2009-2010). Université Charles de Gaulle, Lille 3. pp. 11-50. Outra consideração que não pode deixar de ser feita é a de perceber, como já dizia Marc Bloch, que o historiador é homem de seu tempo, e a pretensa objetividade na análise documental não existe, visto que o estudo de determinado objeto está sempre condicionado ao olhar subjetivo do pesquisador que, por sua vez, não tem como descolar essa visão de questões colocadas por sua própria época e que influenciam em sua percepção sobre o passado.!!

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consideradas somente quando começa a existir um organismo que, aos homens do século XVI, mostrou-se bastante novo para que eles sentissem a necessidade de dotá-lo de um nome: um nome que os povos, na mesma época, passaram de um para outro38

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A percepção do Estado Nacional Moderno como única forma de organização política existente na Europa, tornando-o uma espécie de modelo de referência, tem sido bastante debatida nos estudos medievais. Frequentemente tenta-se estabelecer uma conexão forçada entre as monarquias feudais e o tipo de Estado surgido na Idade Moderna, como se estas gestassem uma espécie de proto-Estado capitalista. Ou é assim, ou o feudalismo é considerado uma espécie de “gap” histórico, postura que está bastante atrelada a uma visão teleológica dos acontecimentos39. Essa

interpretação parte de pressupostos evolucionistas que compreendem a história como uma sucessão de estágios que culminariam no amadurecimento da “sociedade comercial”, capitalista, cujas sementes já estariam dadas desde o início da história humana40. O feudalismo e a retração das atividades comerciais

representariam, portanto, uma interrupção nesse desenvolvimento, freado com a queda do Império Romano do Ocidente e recuperado com o renascimento urbano da Baixa Idade Média41. O mesmo pressuposto evolucionista é postulado para o

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FEBVRE, Lucien apud (Jr) SOUZA, Almir Marques de. O Estado como um conceito viável para estudar a Idade Média. Atas do X Encontro Internacional de Estudos Medievais (EIEM) da Associação Brasileira de Estudos Medievais (ABREM) – Diálogos Ibero-americanos.Brasília: ABREM/PEM-UnB, 2013. p. 57.

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Dada a ausência de discussões similares sobre Estado no contexto da antiguidade oriental, mais especificamente para o caso egípcio, os estudos medievais foram importantes referências no que diz respeito ao desenvolvimento deste trabalho.

40

Cf. WOODS, Ellen. Democracia contra capitalismo. A renovação do materialismo histórico. São Paulo: Boitempo, 2011. p.130. Bourdieu chamaria essa perspectiva de “ilusão restrospectiva”, a qual culminaria numa “ilusão teleológica”. (Cf. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004, p. 81)

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É interessante pensar que a referência de Estado para esses autores está, desde os primórdios, atrelada ao Ocidente, uma vez que a continuidade é pensada em termos de Império Romano Ocidental. Não fazem parte desse desenvolvimento os antigos estados do Oriente, como o egípcio que, ao serem incorporados ao mundo romano, teriam ficado sujeitos às mesmas regras de desenvolvimento das instituições ocidentais. Em momento algum se pensa no Oriente como tendo desenvolvido um modelo particular de Estado, mas simplesmente como emuladores de um modelo « vencedor », capitalista, cujas bases não poderiam ter surgido noutra parte que não fosse a Europa, como nunca cansam de tentar demonstrar. O que não se encaixa nessa perspectiva é fato de que, enquanto boa parte da Europa estava isolada em feudos e sua economia era basicamente de subsistência, o comércio de longa distância, no Oriente, estava a todo vapor. Como, portanto, atribuir à Europa o surgimento de algo do qual ela era, nesse momento, apenas uma sombra perto do dinamismo e vitalidade econômicos de um Império Bizantino ou de uma India, por exemplo?

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surgimento do Estado, visto como uma tendência “natural” de todas as sociedades e que gestariam, de diferentes formas, os fundamentos do Estado Moderno, seu ápice. Cerineu alerta que

Caracterizar pejorativamente aquilo que não se enquadraria em um conceito posterior de Estado como “retrocesso de natureza feudal” acaba por cindir a Baixa Idade Média da Modernidade, pressupondo rupturas que, na prática, não existiram; além de proceder a um julgamento de valor no qual o medieval é apresentado necessariamente de forma negativa42

A rejeição do feudalismo como um período no qual imperava certo caos é corolária de uma percepção acerca do que é o Estado e que deve ser revista. Genêt diz, por exemplo, que “o Estado Moderno não é (...) a única estrutura sócio-política viva no Ocidente cristão. Ele é tanto em concorrência (interna e externa), tanto em simbiose, coexistente com outras estruturas de poder (...)”43.

Isso significa dizer, por exemplo, que as disputas entre as elites nobiliárquicas da Idade Média e a aparente fragmentação do poder ocorrida em seus séculos iniciais é vista, normalmente, como um entrave ao “inexorável” desenvolvimento das instituições estatais. O “poder central”, compreendido nesse momento como o poder de comando sobre um território, monopolizado por um soberano, aparece como incompatível com a existência de lógicas senhoriais. Se mudarmos a perspectiva e considerarmos que, na prática, forças políticas de naturezas diversas coexistiam paralelamente aos organismos institucionais, alteramos também a própria percepção acerca do que seria essa fragmentação, uma vez que isso implica reconhecer que a atuação dessas elites é parte integrante dessa teia de relações a que chamamos Estado e que a ideia de que o governo central detém a autoridade absoluta não é compatível com a realidade. Dessa forma, se nos voltarmos à materialidade do Estado, veremos que não é possível rejeitar a atuação de poderes regionais como exteriores à lógica estatal, uma vez que ambos se completamentam mutuamente e a !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

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CERINEU, João. Domínio e exploração sociais na emergência do Estado Moderno Português (D.Pedro e D. Afonso V - 1438-1481). Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2013. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense, 2013, p.18.

43

GENÊT, Jean-Philippe. La genèse de l’État moderne (les enjeux d’un programme de recherche). Actes de la recherche en sciences sociales. 1997, vol. 11 8, n. 118. p 8.!

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existência de um depende da existência do outro. Não existe tal coisa como “poder centralizado”, usada como sinônimo para “Estado” – este é, na realidade, resultado de relações múltiplas e fragmentadas e a ideia de “Estado centralizado”, que tudo controla, não passa de uma abstração. Há, é claro, alternância de períodos em que se verifica uma maior ou menor capacidade centralizadora das elites no comando das instituições estatais. Nos momentos de retração dessa capacidade, abre-se espaço para que outros grupos disputem esse aparato institucional, mas cujos interesses são, na realidade, pouco diferentes daqueles das elites dominantes, os quais podem ser brevemente definidos como o desejo de exploração de boa parte da população44.

Essa noção é de importância fundamental para o estudo do caso egípcio, mais especificamente aquele que toca o tema desta tese. Ao trabalharmos com as relações entre poder central e as elites locais durante o Reino Antigo, visa-se justamente rever a percepção de que essas duas esferas representam pólos antagônicos e que o Primeiro Período Intermediário, assim como o feudalismo, foi um período obscuro no qual a sobrevivência do próprio Estado restou ameaçada. Uma das hipóteses desse trabalho, conforme já apresentado, é a de que o Estado egípcio funcionava de maneira descentralizada45 e que as chamadas elites locais

eram um dos principais pilares que sustentavam a monarquia faraônica, dependendo também desta para a sua própria sobrevivência e ligadas entre si por diversos laços que não eram apenas formais46. Em vez de agentes exteriores, eram

na realidade agentes colaboradores do Estado e, para tanto, deve-se partir da revisão da noção de que estudar o Estado é se deter no estudo de seu aspecto institucional e que a centralidade é a sua marca registrada.

A postura aqui adotada considera a ampliação do conceito de Estado e, com isso, leva à possibilidade de aplicação do conceito a realidades fora do contexto !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

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Posteriormente far-se-á uma discussão a respeito do conceito do Estado ao qual se vincula esse trabalho e que, adiantando, o compreende no pré-capitalismo como relação destinada à exploração e controle dos excedentes produzidos em determinado território.!

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Essa ideia vai ao encontro do conceito de “Estado Segmentário” desenvolvido por Aidan Southall (cf. SOUTHALL, Aidan. The Segmentary State in Africa And Asia. Comparative Studies in Society and History. v. 30, n. 1, janeiro de 2008. pp. 52-82).

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Como exemplo dessas relações, pegue-se a autobiografia de Ankhtifi de Mo’alla (Primeiro Período Intermedário), que comenta a respeito de membros da elite provincial realizarem seus estudos na Corte. Essa era uma das muitas estratégias utilizadas pelas elites que controlavam o Estado de cooptar novos aliados nas províncias.

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capitalista, uma vez que postula a existência de diferentes formas estatais. Disso decorre uma dificuldade, que é a de fechar um único modelo de Estado que se encaixe a todas as sociedades pré-capitalistas, visto que

O estudo da aparição do Estado deve levar em consideração o estudo das condições precisas de organização e distribuição do poder nas primeiras organizações políticas e processos de formação e reprodução da autoridade47.

Marcella Frangipane, por exemplo, entende que a existência de diferentes sistemas econômicos depende da combinação e da relação dialética entre dois fatores: meio ambiente e estruturas sociais, o que levaria ao surgimento de diferentes formas de governos centralizados (urbanos e não-urbanos, por exemplo)48.

Tais condições, contudo, são variáveis de sociedade para sociedade e é preciso derrubar o mito de que os Estados antigos eram todos “grandes sistemas territoriais governados por déspotas totalitários que controlavam o fluxo de bens, serviços, informações e impunham a lei e ordem a seus súditos”49. Tendo em vista,

portanto, o amplo espectro das formações estatais, parece válido recuperar aquilo que diz Haldon a respeito da noção de Estado, quando pontua que esta “deve ser usada como ferramenta heurística, em vez de uma camisa de força conceitual que ignora a fundamental dinâmica e dialética da natureza social”50.

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MORENO GARCIA, op. cit., 2009. p. 13.

48

FRANGIPANE, Marcella. Different models os power structuring at the rise of hierarchical societies in the Near East : primary economy versus luxury and defence management. In. : BOLGER, Diane ; MAGUIRE, Louise. Development of pre-state communities in the Ancient Near East. Oxbow Books, 2010.

49

YOFFEE, Norman. Mitos do Estado Arcaico. São Paulo : EDUSP, 2013. p. 28.

50

HALDON, John. Pre-industrial states and the distribution of resources: the nature of the problem. In.: CAMERON, Averil (ed). The Byzantine and Early Islamic Near East, vol. III, States, Resources and Armies (Papers of the Third Workshop on Late Antiquity and Early Islam), Nova Jersey: The Darwin Press, 1993. Cabe apenas salientar que esse debate acompanha também as discussões presentes na história econômica entre as correntes substantivista e formalista – a primeira rejeita a aplicação de padrões caracteristicamente capitalistas na análise das sociedades pré-modernas enquanto a segunda pressupõe que o estudo das economias pré-capitalistas pode ser feito à luz de teorias pensadas para o mundo moderno e contemporâneo e da aplicação de conceitos que seriam supostamente universais, como lucro, capital e mercado (para essa discussão Cf. JOÃO, Maria Thereza David. A economia no Antigo Oriente Próximo. In. : _____. Tópicos de História Antiga Oriental. Curitiba : IBPEX, 2010. pp. 46-74). O debate entre formalistas e substantivista, contudo, surge de um debate anterior, existente já no século XIX, entre primitivistas e modernistas (a chamada « contenda Bücher-Meyer »). A renovação desses estudos, no século XX, deu-se a partir da crítica

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1.3 CONCEPÇÕES IDEALISTAS E CONCEPÇÕES MATERIALISTAS: O ESTADO