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1 DISCUSSÕES SOBRE ESTADO

1.1 PROBLEMÁTICAS INICIAIS !

1.1.2 A TRAJETÓRIA EGIPTOLÓGICA

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Trazer um novo olhar para a historiografia do Primeiro Período Intermediário é, também, criticar uma análise uniforme e generalizante das relações políticas no Egito, que normalmente desconsidera particularidades regionais e, muitas vezes, cronológicas16. Isso leva à revisão de outro ponto importante, que é a ideia

comumente aceita de que o Estado egípcio era uma espécie de bloco monolítico, que dependia exclusivamente do faraó e da rede administrativa institucional por ele controlada quando, na realidade, esse Estado era muito mais plural e fragmentado do que podemos imaginar. É o que postula, por exemplo, Kemp, quando afirma que:

Em última instância, os dogmas serviam para reforçar o processo histórico através do qual uma autoridade central apareceu para exercer seu controle sobre uma rede há muito estabelecida de política de comunidades, e era continuamente reforçada nas províncias pelo ritual e iconografia do ritual que fizeram, por exemplo, do rei o responsável pelas cerimônias nos templos provinciais17

Para o egiptólogo J.J. Janssen, a posição central atribuída ao faraó e à família real não era apenas uma questão de dogma, mas um fato, se levarmos em consideração especialmente o contexto anterior à VIª dinastia18.! Atribuir ao faraó o

papel de senhor absoluto parece ser o princípio apriorístico de quase todas as análises sobre Estado e monarquia e acaba por perpetuar a ideia de que “o faraó, !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

16

É comum encontrarmos enfatizada na literatura a ideia de estabilidade política no Egito, como se as estruturas sociais, políticas e econômicas não tivessem sofrido abalos ou alterações ao longo de milênios de história. As próprias listas dinásticas formuladas pelos egípcios, a exemplo do Papiro de Turim e das listas reais de Abidos (encontradas nos templos de Seti I e Ramsés II), contribuem para firmar essa impressão, visto que não mencionam os períodos intermediários. Por influência dessa distinção, os períodos denominados “reinos” (Antigo, Médio e Novo), nos quais havia a presença de uma monarquia centralizada, são vistos pela Egiptologia como períodos de estabilidade em oposição aos períodos intermediários, de fragmentação política, entendidos como momentos de caos. Vale a pena salientar que pensar os períodos intermediários em termos de centralização e descentralização política não contribui para a discussão que se pretende realizar aqui. Julga-se mais relevante pensar em termos de retração ou expansão da capacidade centralizadora do Estado.

17

KEMP, Barry. Old Kingdom, Middle Kingdom and Second Intermediate Period c. 2686-1552 b.C. In.: TRIGGER, Bruce ; KEMP, Barry ; O’CONNOR, David ; LLOYD, Allan. Ancient Egypt : a social history. Cambridge : Cambridge University Press, 2003. p. 73.

18

JANSSEN, J. J. The early state in Ancient Egypt. In.: CLAESSEN, H.J.M; SKALNIK, Peter. The early state. The Hage: Mounton Publishers, 1978. p. 223.

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por meio de seu ofício divino, era a cabeça do Estado e o maior administrador do Egito, e agia como o garantidor universal da economia e da estrutural governamental da qual era encarregado”19. Uma tal posição deixa-se, sem dúvida, contaminar pelo

discurso das fontes, que dotam o rei de um poder excepcional diante do qual se curvam, até mesmo, os deuses:

Levantai vossas faces, ó deuses que estão no outro mundo, porque o rei veio para vós possais vê-lo, ele se tornou o grande deus. O Rei é anunciado] com temor, o rei é vestido. Guardai-vos, todos, porque o rei governa os homens, o Rei julga os vivos no domínio de Rá, o Rei fala a sua região pura à qual fez sua morada com aquele que julgou entre os dois deuses. O rei tem poder em sua cabeça, o rei porta o seu cetro e Thot mostra respeito pelo rei. O Rei senta com aqueles que remam a barca de Rá, o rei ordena o que é bom e Rá o faz, porque o Rei é o grande deus20

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Para Miroslav Bárta, a monarquia ocupa papel proeminente na pesquisa egiptológica desde o início da década de 20, quando da descoberta da tumba de Tutankhamon21. Na última década, contudo, alguns estudos começaram a se

dedicar a contestar a ideia de centralidade monárquica e a visão de estabilidade do reino egípcio. No caso específico do Reino Antigo, vale destacar a produção do egiptólogo espanhol Juan Carlos Moreno Garcia, hoje pesquisador do CNRS22, em

Paris, e responsável pela renovação de boa parte dos estudos referentes à administração do Estado23. Outras interpretações, como a de Hratch Papazian,

acreditam que « uniformidade, mais do que centralização rígida, representariam, talvez, uma designação mais apropriada do sistema prevalente, que proliferava os

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19

PAPAZIAN, Hratch. The Central Administration of the Resources in the Old Kingdom: Departments, Treasuries, Granaries and Work Centers. In.: MORENO GARCIA, Juan Carlos. Ancient Egyptian administration. Leiden: Brill, 2013. p. 46.

20

Encantamento 252 dos Textos das Pirâmides (cf. FAULKNER, Raymond. The Ancient Egyptian Pyramid Texts. Warminster: Arris & Phillips, 1969).

21

BÁRTA, Mirosláv. Egyptian Kingship during the Old Kingdom. In. : HILL, Jane A. ; JONES, Philip ; MORALES, Antonio J. Experiencing power, generating authority. Cosmos, politics and the ideology of kingship in Ancient Egypt and Mesopotamia. Filadélfia : University of Pennsylvania Museum of Archaeology and Anthropology, 2013a. p. 258.

22

Centre National de la Recherche Scientifique.

23

Vide, por exemplo: MORENO GARCIA, Juan Carlos (org.). Ancient Egyptian administration. Leiden: Brill, 2013.

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métodos operacionais do governo central para os vários distritos do Egito”24. Já

Harco Willems, por exemplo, rejeita a ideia de uniformidade desse sistema e percebe diferenças na maneira de se conduzir a administração nas diversas províncias egípcias do Reino Antigo25.

É necessário, portanto, combater não apenas a visão de centralidade no faraó e na instituição monárquica mas, também, a de uniformidade, que concebe a administração egípcia como um sistema homogêneo aplicado ao longo de todo o território de maneira única. Reconhecer, nessa sociedade, a existência de diversos núcleos de poder dotados de legitimidade e que não passam, necessariamente, pelo âmbito institucional ou são formalmente conectados ao que se chama de administração central também é de fundamental importância para que se possa ampliar a nossa compreensão a respeito da dinâmica de funcionamento do Estado egípcio.

Essa reflexão ampliada, contudo, não pode ser feita sem que antes se discuta a própria concepção daquilo que concebemos como Estado. Na Egiptologia, o termo vem sendo utilizado sem que haja muitas ponderações a respeito de seu uso e de sua pertinência, aparecendo na forma de uma categoria abstrata dada a priori que, como tal, naturaliza sua própria existência e contornos, como se estes fossem únicos e válidos para toda as sociedades ao longo do tempo. É necessário perceber, contudo, que o Estado não é uma condição dada, e que precisa ser historicizado, o que implica em desnaturalizar o uso de categorias contemporâneas26.

Não se pretende, aqui, escrever um tratado geral do Estado, muito menos apresentar uma definição única a respeito do que seja o Estado no pré-capitalismo, mas compreender como uma ideia cristalizada a respeito do que é o Estado (da qual a Egiptologia é caudatária), aliada à falta de precisão conceitual leva os egiptólogos a caírem em simplificações e em muitas contradições, o que influi diretamente na compreensão da dinâmica do poder nessa sociedade, a qual fica reduzida muitas vezes a certas imprecisões.

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24

PAPAZIAN, op. cit., 2013, p. 50. É a perspectiva de que, de um núcleo de poder, derivariam todos outros.

25

WILLEMS, op. cit., 2008.

26

Saliente-se, apenas, que o intuito não é abandonar o uso de categorias modernas e contemporâneas no estudo da Antiguidade nem desconsiderá-las como ferramentas heurísticas.

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Nesse sentido, vale a pena apontar que a Egiptologia parece bastante resistente a perceber a importância de abordagens mais teóricas e se constitui como um campo de discussões essencialmente empíricas. Recentemente Moreno García publicou um excelente e esclarecedor artigo acerca dos principais desafios envolvendo a Egiptologia27. Um dos pontos para o qual o autor chama mais atenção

é, justamente, seu isolamento e atraso em relação a outras ciências sociais no que diz respeito a métodos e teorias envolvendo discussões de temas complexos como economia e sociedade. Moreno García aponta que essa situação pode ser percebida desde os primórdios do desenvolvimento da Egiptologia (o marco inicial da ciência egiptológica é a decifração dos hieróglifos da Pedra de Rosetta por François Champollion, em 1822), quando a « caça ao tesouro » e a atenção seletiva para certos temas considerados « mais importantes », (a exemplo da arte, religião e construção monumental) contribuíram decisivamente para os rumos posteriores dos estudos sobre o Antigo Egito.

Os métodos obsoletos usados pelos egiptólogos, calcados na ideia de que a Filologia e a Arqueologia eram as únicas razões de ser da Egiptologia, levaram à necessidade de se abrir uma discussão com o intuito de renovar esse campo, inserindo novos temas de estudo e abordagens mais interdisciplinares, a exemplo de um congresso no Cairo no ano de 1975. Ainda hoje, contudo, persiste a necessidade de se abrir cada vez mais ao debate com outros campos28. Moreno

Garcia observa o que talvez, hoje, seja um dos maiores problemas da Egiptologia: mesmo quando realizam estudos sobre temas não tradicionais, como história econômica, por exemplo, o trabalho de boa parte dos egíptólogos consiste em longas e exaustivas traduções de documentos, recheados de comentários filológicos e a interpretação do conteúdo propriamente dito, como ferramenta para a compreensão da realidade egípcia, fica por conta de algumas notas esparsas que reproduzem acriticamente o senso comum e não demonstram nenhuma !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

27

MORENO GARCIA, Juan Carlos. Recent developments in the social and economic history of Ancient Egypt. Journal of Near Eastern Studies (JANEH), n.1, 2014.

28

No contexto de ampliação do campo de estudo da Egiptologia, Ciro Cardoso observa a existência de debates sobre economia egípcia, ocorridos na década de 70, articulados entre três perspectivas: a marxista, a formalista e a substantivista. Nesse contexto entram as contribuições de Liverani e Zaccagnini, como expoentes da primeira corrente; Jacob Janssen, dentro da segunda perspectiva, influenciado pelas ideias de Polanyi; e, finalmente, Barry Kemp, que Cardoso enxerga como sendo formalista. (CARDOSO, Ciro Flamarion. A economia e as concepções econômicas no Egito faraônico: síntese de alguns debates. História econômica & história de empresas. v. 1, 2003. pp. 151-178).

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preocupação metodológica ou com a construção de um debate teórico. Nesse aspecto, « coletar, catalogar e estudar objetos individualmente no quadro da história da arte e da filologia tem sido a preferência em detrimento de interpretações históricas »29, e a pesquisa direcionada a objetos se faz, normalmente, sob

perspectivas defasadas, transformando a Egiptologia « (...) numa disciplina cujas práticas, conceitos e preocupações intelectuais estão simplesmente alienadas dos atuais debates em História Antiga e Arquelogia »30.

A perspectiva adotada nesse trabalho parte do pressuposto de que uma história teoricamente bem informada é fundamental, assim como uma teoria historicizada e, por isso, insiste em certas discussões conceituais uma vez que

(…) a “teoria” é objetificada e abordada em introduções, em artigos especializados, ou segregada como objeto de estudo dos profissionais específicos da história intelectual. Não se espera que historiadores perguntem questões acerca das condições que possibilitam o conhecimento histórico que eles produzem - sobre a genealogia de suas categorias e seu enraizamento nos mundos sociais que eles mesmos pretendem explicar, sobre a sua própria relação com seus objetos de estudo, e sobre a relação entre esses passados e o presente do historiador. Ainda que historiadores frequentemente critiquem a teoria por ser exageradamente abstrata, eles tendem a abstrair a teoria de suas conexões com o mundo, como se ela estivesse em um ponto fora da história, como algo a ser usado e aplicado. Como resultado, pesquisadores são geralmente recompensados por fornecerem uma assessoria especializada sobre métodos de arquivo a serviço de conclusões que já estão dadas de antemão (por exemplo, fenômenos históricos são mais complexos do que as abstrações teóricas os tornam; eventos contingentes têm um papel importante em processos históricos; a mudança histórica é resultado de diversos determinantes e não apenas uma causa; a ideologia nunca é totalmente convincente para todos; o poder do Estado nunca é absoluto; projetos nunca são implementados integralmente; discursos e práticas nem sempre se alinham, ações frequentemente tem consequências inesperadas; atores nem sempre !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

29

MORENO GARCIA, Juan Carlos. The cursed discipline ? The peculiarities of Egyptology at the turn of the Twenthy First Century. In : CARRUTHERS, W. Histories of Egyptology : Interdisciplinary Measures. London : Routledge, 2014. p. 53.

30

Ibid, p. 53. Uma exceção pode ser atribuída a David Warburton que, ao tratar de aspectos relativos à economia e ao Estado no Reino Novo, oferece uma discussão preliminar a respeito de vários modelos interpretativos referentes a essas duas categorias. Mais especificamente sobre o Estado, Warburton adota o conceito de que este « (...) pode ser definido genericamente como uma unidade geográfica com uma população e com uma autoridade legal reconhecida », apontando a necessidade de um governo legítimo ou de um corpo de leis como requisitos mínimos para a sua existência (cf. WARBURTON, David A. State and Economy in Ancient Egypt. Fiscal Vocabulary of the New Kingdom. OBO 151, Friburgo. p. 36). O autor rejeita as teorias que só vêem o Estado Moderno como exemplo de formação estatal e atribui ao Egito a condição de um um Estado-nação territorial. Muito embora sua percepção de Estado seja diversa daquela à qual se vincula esse trabalho, o esforço realizado pelo autor de inserir as discussões sobre o Egito no seio de debates mais abrangentes envolvendo as ciências sociais é digno de nota.!

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sabem o que estão fazendo, fenômenos históricos e processos são frequentemente contraditórios). Um empiricismo descritivo aparece, portanto, como uma inovação teórica31.

Por mais que faltem na Egiptologia estudos que se dediquem a uma reflexão mais teórica e conceitual, a maneira como a maioria dos egiptólogos trata o Estado traz embutida uma visão específica a respeito de seu funcionamento, a qual é por eles reproduzida (mesmo que inconscientemente). Perpetua-se a ideia de que o Estado egípcio é o exemplo por excelência de uma eficiente estrutura burocrática e altamente centralizadora que coloca, de um lado, o faraó e seu entorno de dignitários e, de outro, a grande massa por ele controlada32. Como se verá ao longo

deste trabalho, a adoção de uma perspectiva rígida como essa a respeito do Estado egípcio não deixa entrever a enorme complexidade envolvendo esse tipo de organização que dependia não só de mecanismos institucionais e legais, mas também de redes locais e informais de poder para a manutenção da sua existência.

Objetiva-se, portanto, trazer à Egiptologia novas possibilidades de se pensar aquilo que entendemos por Estado e, com isso, embasar uma reflexão crítica que permita um novo olhar sobre a monarquia faraônica e sobre a própria questão da organização e distribuição do poder nessa sociedade. Para começar a discussão é possível dizer, grosso modo, que o Estado egípcio pode ser compreendido a partir de dois eixos interpretativos: é possível analisá-lo através do viés institucional; ou, então, pode-se advogar que o Estado, mais do que instituição, é relação social.

Ambas as interpretações serão desenvolvidas de maneira mais acurada no decorrer desse capítulo. Antes, contudo, iniciaremos por uma discussão mais genérica a respeito da aplicabilidade do conceito de Estado fora do contexto das monarquias nacionais europeias e, posteriormente, far-se-á um arrazoado das principais correntes interpretativas dedicadas ao estudo do Estado, inserindo-as no contexto dos debates egiptológicos.

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31

WILDER, Gary. From Optic to Topic: The Foreclosure Effect of Historiographic Turns. The American Historical Review, vol. 117, no. 3 (junho 2012), pp. 723-745.

32

Esse posicionamento é claramente o adotado por Janssen ao falar sobre o Reino Antigo: “o quadro usual da sociedade egípcia durante o Reino Antigo é de uma massa amorfa de camponeses governada por um Estado centralizado representado por uma relativamente pequena classe de altos funcionários, a maioria de sangue real, e um grupo de funcionários de escalão mais baixo, ligeiramente, mais amplo. No geral, essa visão parece correta.” (JANSSEN., op. cit., p. 227).

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1.2 APLICABILIDADE DO CONCEITO DE ESTADO ÀS REALIDADES PRÉ-