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A autobiografia de Pepynakht (Heqaib)

Mapa 2- Nomos do Baixo Egito

3.3 AS REFORMAS ADMINISTRATIVAS DA VIª DINASTIA E O FIM DO REINO ANTIGO.

3.3.1 CONSIDERAÇÕES SOBRE OS NOMOS MERIDIONAIS DO ALTO EGITO !

3.3.1.2 A autobiografia de Pepynakht (Heqaib)

Pepynakht é, talvez, um dos personagens mais emblemáticos dessa transição do Reino Antigo para o Primeiro Período Intermediário. Sua atuação como funcionário estatal se deu durante os reinados de Merenra I e Pepi II e ele foi responsável, como podemos inferir através da sua autobiografia, por uma série de campanhas militares na região da Núbia. Assim como Harkhuf, Pepynakht era da região de Elefantina e foi enterrado na necrópole de Qubbet el-Hawa, e o que mais chama atenção é o fato de que, tendo mudado seu nome para Heqaib, institui-se um culto à sua pessoa, bastante popular no Primeiro Período Intermediário e Reino Médio. A deificação de Pepynakht, assim como a de Mekhu, também membro da elite provincial de Elefantina, mostra a grande importância adquirida por esses funcionários provinciais, que passam a carregar também o título de príncipes (iry – pat)397, de modo a demonstrar sua estreita relação com a família real. Não há !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

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Cabe, aqui, uma importante ponderação a respeito do uso desse título. A tradução do termo iry – pat como « príncipe » sempre foi um dos argumentos mais fortes para comprovar o ganho de poder por parte de membros das elites provinciais e usá-la como causa de uma suposta desagregação do Estado egípcio. Em primeiro lugar, há que se repensar essa tradução. Durante o Reino Novo, iry – pat era usado para designar o príncipe que seria o próximo na sucessão do trono (príncipe herdeiro), o que levou muitos estudiosos a assumir que essa titulatura seria válida também para outros períodos da história egípcia, como o Reino Antigo. Nesse contexto, contudo, a titulatura adquire outro sentido. De acordo com o dicionário de Raymond Faulkner, o termo iry significa « relacionado à » (cf. FAULKNER, Raymond. A concise dictionary of Middle Egyptian. Oxford: Griffith Institute, 1991). Já o termo pat era, originalmente, um termo usado para designar os membros da nobreza. De acordo com Baines, iry–pat era uma titulatura usada para designar o pertencimento a um determinado grupo – a “elite”, em oposição aos rXyt, que representaria os dominados – e que não implica nenhuma função exercida efetivamente (BAINES, John. Origins of Egyptian Kingship. In.: O’CONNOR, David: SILVERMANN, David. Ancient Egyptian Kingship. Leiden: Brill, 1995. p. 133) Outras interpretações, contudo, entendem o termo como indicativo do mais alto nível de funcionário estatal da época. Em segundo lugar, mesmo que membros da elite local tivessem arrogado para si prerrogativas régias, isso não deve ser entendido como um ataque ao Estado egípcio, mas sim como a existência de novos grupos em disputa por esse Estado Político. A personalização do Estado na figura de um determinado faraó é o que gera esse tipo de confusão e à interpretação equivocada de que, durante o Primeiro Período Intermediário, houve uma espécie de « colapso » do Estado egípcio causada pela existência de núcleos de poder nas províncias contrários à monarquia. Outro ponto importante a ser levado em consideração diz respeito às lógicas informais de poder utilizadas pelas elites que controlavam o Estado egípcio para manter seu equilíbrio. Tão importante quanto a integração formal

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nenhuma evidência de que Pepynakht tenha tentado ameaçar a existência da monarquia menfita, muito embora seu prestígio e grande influência no âmbito local sejam bastante claros. A autobiografia deixa entrever, pelo contrário, estreitas relações com a Residência, mas a instabilidade causada após a morte de Pepi II - que deixou muitos herdeiros e, com isso, disputas pela sucessão do trono ocorreram - pode ter favorecido a consolidação de núcleos regionais de forma mais independente em virtude da retração da capacidade centralizadora do Estado. Não se trata, portanto, de núcleos lutando pela independência ou em disputa aberta com a monarquia, como a historiografia tradicional interpreta. Trata-se mais do fortalecimento de núcleos regionais de poder, outrora favorecidos pelas funções desempenhadas a serviço do Estado egípcio, que se autonomizam (não completamente), em virtude da retração da capacidade centralizadora do Estado. Possivelmente a divinização de ancestrais tenha servido para as elites locais como um mecanismo de legitimação de sua autoridade em um momento de instabilidade política398. Ao sul, em Tebas, um novo núcleo de poder com importância supralocal se consolida e, em um Egito dividido sendo governado por monarquias paralelas, as elites da região também buscam estabelecer sua hegemonia através de alianças com outros potentados ao sul e, mais tarde, reunificam o Egito sob um único rei, provavelmente através do expediente de guerras.

Especificamente sobre o texto da autobiografia de Pepynakht, o início se desenrola através das tradicionais estruturas próprias a esse gênero: longas listas de titulaturas mas, nessa, nota-se a ausência da fórmula htp-di-nsw, assim como de outras fórmulas funerárias destinadas à garantia de um bom enterro e de provisão de oferendas. A estreita relação com a residência aparece nessas titulaturas, a exemplo daquelas em que demonstra ter participado das phyles das pirâmides dos !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! das elites provinciais ao aparato estatal como forma de cooptação de aliados o era também a lógica de parentesco. Casamentos entre membros da família real e de importantes famílias locais eram um astuto expediente utilizado dentro da lógica de constituição de alianças, necessária à construção do Estado e à ampliação do grupo dominante (cf. CAMPAGNO, Marcelo. De los modos de organización social en el Antiguo Egipto: lógica de parentesco, lógica de Estado. In.: _____ (ed.) Estudios sobre parentesco y Estado en el Antiguo Egipto. Buenos Aires : Ediciones del Signo, 2006). O fato de um funcionário local adotar o título pat pode ser indicativo desse tipo de relação, que denota muito mais sua aproximação que seu afastamento em relação à monarquia estabelecida.

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Lembrando que a monarquia era, até então, a fonte de legitimação da autoridade dessas elites. A inscrição de Meri II, de Hagarsa, traz um passagem na qual é possível atestar a evocação de ancestrais como um instrumento de legitimidade. Após enumerar diversas ações que remetem às de um patrono, Meri II diz que o fez «de acordo com o que disseram os ancestrais, aqueles que existiram antes de mim » (TPA, p. 362).

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faraós Pepi II e Merenra e, se quisermos melhor compreender as relações entre funcionários das províncias e Mênfis, a análise dessas titulaturas traz importantes informações.

As phyles são, de acordo com a Egiptologia, grupos de pessoas que realizavam serviços temporários em templos em equipes de trabalho e cuidavam do culto mortuário de reis e altos funcionários durante o período faraônico. Segundo Ann Macy Roth,

O sistema usado para organizar essas phyles variava para acomodar a instituição à qual as phyles eram ligadas. No mais conhecido desses sistemas, os sacerdotes do culto mortuário da quinta dinastia, cada uma das cinco phyles era dividida em dois, que serviam ao culto independentemente e resultava em um ciclo de dez meses de serviço rotativo399

Havia, portanto, pelo menos dois grupos de trabalhadores nas phyles, identificados sob o títulos individuais de Xnty-S e Hm-nTr. No que se refere ao trabalho nas phyles, Pepynakht porta os títulos de Xnty-S n sA mn-anX-nfr-kA-ra (portador da terra e escriba da phyle da pirâmide “Neferirkara está estabelecido e vivo”400) e mty n sA Xai-nfr-mr-n-ra (escriba da phyle de Merenre)401.

A principal fonte de estudos das phyles durante o Reino Antigo são os chamados Papiros de Abusir, que consistem em um grande arquivo encontrado no templo mortuário do rei Neferirkara Kakai, da Vª dinastia402. Nesses arquivos, todos os Xntyw-S têm seus nomes associados ao do rei Neferirkara e são formados a partir do seu nome de nascimento, kAkAi. Isso sugere, segundo Roth, que embora os nomes das pessoas pudessem ser mudados ao longo da vida e não serem indicadores infalíveis da situação de seus donos no nascimento, que os Xntyw-S !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

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ROTH, Ann Macy. Egyptian phyles in the Old Kingdom. The evolution of a system of social organization. Studies in Ancient Oriental Civilization, n.48, Chicago, 1991. p. 3.!!

400

Trata-se do nome do complexo mortuário de Pepi II, que era composto por sua pirâmide e templo mortuário adjacente. Sua representação hieroglífica é .

401

Christopher Naunton traduz o título mty n s3 como « controlador da phyle ». NAUNTON, Christopher. Regime change and the administration of Thebes during the Twenty-fifth Dynasty. Swansea : University of Swansea, 2011. Tese (Doutorado em Artes e Humanidades) – Departamento de História e Clássicas, Swansea, 2011, p. 103.

402

Cf. Posener-Krieger, P. Les archives du temple funeraire de Neferirkare-Kakai. BdE 65, 2 vols. Cairo, 1976.

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estavam associados ao culto de Neferirkara desde o nascimento, provavelmente por se tratar de um título hereditário. Transpondo essa mesma lógica para o caso de Pepynakht (“Pepi é forte”), a menção ao rei Pepi II em seu nome de nascimento, embora tenha trocado seu nome posteriormente para Heqaib (“aquele que comanda seu próprio coração”), pode denotar a íntima associação entre esse funcionário provincial e a Residência desde o seu nascimento. A hereditariedade desse tipo de função, que se trata não de um ofício provincial mas de um diretamente associado a funções exercidas na corte (mais precisamente, no complexo funerário régio localizado na necrópole de Saqqara), pode ser encarada como estratégia por parte do Estado egípcio de manter esses funcionários provinciais, desde cedo, vinculados ao núcleo menfita em uma atividade bastante prestigiosa.

Como um Xnty-S, o funcionário tinha acesso a terras e ficava encarregado de cultivá-las, assim como de realizar o transporte das oferendas nela produzidas. Se comparados aos Hmw-nTr, os Xntyw-S eram funcionários de categoria inferior, mas ainda assim de bastante prestígio. Sua estreita associação com o culto mortuário do rei tornou esse ofício altamente desejável, visto que, conforme analisa Roth, permitia aos seus incumbentes crescer em status e fortuna, ascendendo inclusive a categorias superiores de funcionários. Esse é mais um exemplo de como o exercício de funções estatais permitia a ascensão social funcionários provinciais sendo, nesse caso, também benéfica ao Estado pois, uma vez que sua riqueza e prestigio dependiam do exercício dessa função, o Estado teria controle sobre essas pessoas.

Analisando a autobiografia de Harkhuf e a de Pepynakht, pertencentes mais ou menos ao mesmo período, é possível notar que a situação na região da Núbia era bastante instável. Harkhuf foi enviado junto a uma armada para a região a fim de explorar uma nova região e garantir o domínio egípcio sobre ela e, em uma de suas viagens, passa pelos territórios de Irtjet e Setjau, relatando o encontro com o chefe dessas terras. Na terceira viagem, comenta a respeito do chefe de Irtjet, Setjau e Wawat, demonstrando uma politica de expansão tendo em vista a anexação de mais um território aos dois mencionados primeiramente. Em Pepynakht, a ameaça desse expansionismo é clara, resultando num comando do rei egípcio para que fosse feita uma intervenção na região: “a majestade do meu senhor me mandou para devastar a terra de Wawat e Irtjet”. Provavelmente por conta dessas ameaças, os egípcios precisassem de líderes fortes na região, como é o caso de Pepynakht.

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O restante de sua autobiografia traz o relato de um confronto bélico com os núbios, no qual ele teria matado “um grande número, incluindo os filhos do governante e comandante da excelente força núbia”. Muitos foram levados à Residência como prisioneiros e Pepynakht comenta a respeito do sucesso com o qual realizou a empreitada: “meu senhor mandou-me àquelas terras para subjuga- las. O fiz de tal forma que meu senhor ficou imensamente satisfeito comigo”. Além disso, comenta ter levado à presença do rei egípcio, como prisioneiros, os chefes dessas terras, dois comandantes núbios e suas crianças. Ao final, Pepynakht conta ter sido instruído pelo rei a trazer de volta o corpo de Ankhti que, ao ir para Punt para construir um barco de juntos, foi atacado e morto pelos “moradores do deserto” junto à sua divisão armada. O fato de Ankhti estar na região na presença de um corpo de funcionários armados, bem como a sua morte por parte desses povos demonstra a fragilidade das fronteiras egípcias no período final do Reino Antigo, que podem muito bem ter contribuído para a acentuação das divisões regionais, especialmente ao sul, em Elefantina, região próxima à Núbia.