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A ORGANIZAÇÃO DAS PROVÍNCIAS DURANTE A Vª DINASTIA

Mapa 2- Nomos do Baixo Egito

3.2 A ORGANIZAÇÃO DAS PROVÍNCIAS DURANTE A Vª DINASTIA

Para a primeira metade da Vª dinastia, as autobiografias de Nefernesut e Nefermaat nos ajudam a compreender melhor as responsabilidades relativas às províncias do Alto Egito e representam um momento de transição em que os governantes das províncias deixam de ocupar vários nomos e passam a ficar responsáveis por apenas um343. Pai e filho, Nefernesut e Nefermaat estavam ligados ao nomo de Abidos. Enquanto, contudo, Nefernesut aparece como responsável por cerca de três nomos (dentre os quais o décimo e o oitavo), Nefermaat, seu sucessor, tem sua atuação restrita ao nomo de Abidos344. Seus enterramentos, contudo, ainda foram realizados em necrópoles menfitas (o primeiro em Gizé e o segundo em Dashur), indicando que o controle das províncias era ainda, de certa forma, !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

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WILKINSON, Toby. Early Dynastic Egypt. Londres: Routledge, 1999. p. 140. 343

FISCHER, Henry. Four provincial administrators at the memphite cemeteries. Journal of the American Oriental Society 74. New Haven, 1954. pp. 26-27.

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realizado por representantes da administração central345. A ligação desses dois indivíduos com a capital torna-se ainda mais clara quando percebemos que ambos eram sacerdotes (Hm-nTr) que atuavam no culto funerário do faraó Quefren.

Os reinados de Neferikara e Djekara marcam uma transição no tocante à administração provincial, pois neles podemos encontrar a existência dos primeiros grandes cemitérios provinciais: Akhmin e Hargasa, no nomo de número nove. Em Akhmin há o registro da tumba de um vizir346, o que é indício de uma maior representação do governo central nas províncias do sul. Para a Vª dinastia, foram encontrados também outros cemitérios provinciais localizados no décimo347, décimo- quinto348 e vigésimo349 nomos egípcios, nos quais representantes de altos cargos foram enterrados.

Um estudo de Kanawati, que se baseia em boa parte nas condições geográficas atuais do Alto Egito (que, para ele, diferente do Delta, não se alteraram de forma significativa ao longo dos milênios que separam o Egito de hoje do período faraônico), associa a pobreza das tumbas dos nomos mais ao sul, como Edfu, à pouca produtividade das terras na região. Sua conclusão, apresentada na forma de dois gráficos, indica que as áreas mais produtivas do Alto Egito concentram-se acima do nono nomo e se estendem até o vigésimo. Abaixo destes estariam as terras menos produtivas, justamente onde se encontram os cemitérios mais pobres.

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Uma supervisão constante das províncias, nesse período, parece improvável dadas as condições de deslocamento dentro do Egito, feita pela via da navegação, e ao fato de muitas regiões serem de difícil acesso. Tendo em isso em vista, parece mais razoável pensar em termos de um controle sazonal por parte da administração central.

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Trata-se do vizir Herwy. Cf. KANAWATI, Naguib. Governmental Reforms in Old Kingdom Egypt. Warminster : Aris & Phillips, 1980.

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Trata-se do cemitério de El-Hammamiya, onde foram enterrados importantes funcionários durante a Vª dinastia. Não há registros, contudo, de enterramentos na região em dinastias posteriores. Kanawati sugere que o cemitério tenha sido transferido para outra localidade em virtude do calcário de baixa qualidade existente na região, que acabava prejudicando a decoração das tumbas. (EL- KHOULI, A.; KANAWATI, Naguib. The Old Kingdom Tombs of El-Hammamyia. ACE Report 2, Sidney, 1990).

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Durante o Reino Antigo os nomarcas do nomo Hare foram enterrados no cemitério de Sheik Said. Há registros, ainda na VIª dinastia, de enterramentos em Deir el-Bersha, que se tornou bastante popular no Reino Médio. Sobre o uso do cemitério de Deir el-Bersha no Reino Antigo, cf. DE MEYER, Marleen. The tomb of Henu at Deir el-Barsha. The Bulletin of the Egypt Exploration Society 31, 2007, pp. 20–24.

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Necrópole de Deshasha. Pouco se sabe a respeito do vigésimo nomo durante o Reino Antigo, do qual saiu uma das dinastias mais importantes do Primeiro Período Intermediário, a heracleopolitana. Um dos poucos textos encontrados é o de Inti, em cuja tumba encontra-se a cena mais antiga de que se tem notícia mostrando uma batalha entre os egípcios e asiáticos, datada do final da Vª dinastia ou início da VIª (cf. TPA, p. 371).

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Para Kanawati, Akhmin era a região mais produtiva enquanto Elefantina era uma das menos cultiváveis.

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Figura 1 - Estudo de Kanawati mostrando o potencial produtivo das terras nos nove primeiros nomos do Alto Egito durante o Reino Antigo. A classe 1 se refere às terras mais produtivas e a classe 5 às terras menos produtivas.

Figura 2 – Estudo de Kanawati mostrando o potencial produtivo das terras do décimo ao vigésimo-segundo nomos do Alto Egito durante o Reino Antigo.

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Como prova do interesse do Estado nessas localidades podemos mencionar os registros que mencionam a construção de capelas do ka nessas regiões, como atesta a autobiografia de Iy, de Akhmin: “eu nunca peguei nenhum grão que estava sob minha responsabilidade a não ser para os pagamentos relativos aos trabalhos da capela do ka de Pepi, que está em Akhmin”350. Além da menção a uma capela do

ka podemos inferir pela importância dessa região no fornecimento de grãos,

oriundos provavelmente do pagamento de tributos, o que corrobora a hipótese de Kanawati de que esse nomo era dotado de grande capacidade de produção e, também, uma importante base local da administração central351. A grande prosperidade dos funcionários dessa região pode ser verificada através da descrição de Qereri, também de Akhmin, que comenta sobre o tamanho de sua propriedade, cujo terreno era repleto de sicômoros e no qual teria mandado construir um tanque.

A presença de tumbas e de funcionários com títulos ligados ao rei demonstra os elos estabelecidos entre os mencionados nomos e os grupos menfitas. A presença de um vizir fixado no nomo de Akhmin indica que essa região era um centro importante de onde a administração central exercia seu controle nos territórios daquele entorno352. Tendo em vista ser o Egito um país que dependia da agricultura, tanto o estudo de Kanawati quanto a constatação da formalização da presença do Estado tornam-se, em conjunto, extremamente valiosas. O que esses dados demonstram é o interesse do Estado em assegurar o controle de recursos produtivos, assim como da força de trabalho, essenciais para os trabalhos agrícolas e para a construção das grandes obras públicas. Sennedjem Ibi, um dos vizires do reinado de Djekara, estava inclusive envolvido em atividades de construção na região, conforme visto no capítulo anterior na seção em que mencionamos os “supervisores dos trabalhos do rei”. Nota-se, por isso, uma presença maior de instituições estatais em certos nomos em detrimento de outros, justamente porque o

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TPA, p. 360.

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Esse trecho também dá a entender que a prática desvio de grãos (tributos) era algo a ser combatido no Egito, o que nos ajuda a desfazer a imagem de administradores impecáveis que seguiam à risca as ordens emanadas pelo faraó em virtude de medo e respeito a sua condição de divindade.

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Em Akhmin nota-se a existência de uma família que monopolizou o ofício de nomarca da VIª dinastia ao começo do Primeiro Período Intermediário. Trata-se da família de Tjeti Kai-Hep, enterrado na necrópole de El-Hawawish (Cf. KANAWATI, Naguib. The Rock Tombs of El-Hawawish. The Cemetery of Akhmin. V. III. Sidney : The Ancient History Documentary Research Centre, 1988).

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interesse era maior nas regiões que oferecessem algum tipo de vantagem política ou econômica.

Com relação aos enterramentos de importantes funcionários nas províncias, os quais passam a ocorrer a partir da Vª dinastia, é possível dizer que vêm, desde muito, sendo encarados como sintoma do enfraquecimento do poder central e da crescente autonomia adquirida pelas elites locais. A suposição de que o governo central encontrava-se fragilizado, nesse momento, a ponto de não conseguir frear a atuação de alguns indivíduos particulares, cujo poder se reflete da magnitude de suas tumbas, diverge bastante dos elementos encontrados na documentação referente à essa dinastia. Parece mais provável que esses enterramentos indiquem, na realidade, um descentramento da administração como estratégia suportada pelo próprio governo central para ampliar a presença do Estado em regiões onde o controle se dava de maneira anteriormente fluida, fortalecendo-o em vez de fragilizá- lo. Paradoxalmente, é possível afirmar que era através da descentralização que o Estado aumentava a sua própria centralidade.

Nota-se, nesse sentido, uma lenta difusão de elementos da cultura palatina no âmbito provincial, como é possível observar, de forma mais clara, nos sarcófagos pertencentes a alguns nomarcas do final do Reino Antigo, Primeiro Período Intermediário e Reino Médio. Nota-se, nesse momento, que encantamentos outrora utilizados pelos reis em suas pirâmides, com o intuito de garantir a imortalidade do monarca, passam a ser inscritos nos féretros desses importantes funcionários provinciais a partir de um processo que ficou conhecido como “democratização” da imortalidade. Os Textos dos Sarcófagos, como foram chamados esses encantamentos, trazem algumas inovações e diferenças em relação aos encantamentos das pirâmides régias, mas seu conteúdo permanece afirmando a ideologia monárquica e a supremacia do faraó como senhor da duas terras e mantenedor da ordem. Esta é, portanto, uma maneira de reforçar, ideologicamente, o papel da monarquia mesmo que, como ocorre no Primeiro Período Intermediário, ela estivesse em disputa por parte de alguns grupos.

No que diz respeito mais especificamente ao reinado de Djekare, algumas importantes reformas administrativas são observáveis no período. A primeira delas é a criação de um responsável unicamente pelas províncias do Alto Egito, conforme se observa pela titulatura que dois vizires de Djekara (Kai e Rashepesesse) passam a

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usar: imi-rA Sma, “supervisor do Alto Egito”. A presença de um funcionário como esse é indicativa de uma maior presença do Estado nessa porção do território egípcio, através do qual a elite menfita, articulada ao rei, poderia exercer um maior controle sobre as atividades produtivas levadas a cabo em uma região notadamente fértil. Esse, aliás, parece ter sido o maior objetivo desses grupos quando expandem a administração do Estado a regiões antes integradas a eles somente de maneira informal.

Ao mesmo tempo, verifica-se a instituição, nos governos de Djekara e Unas, do vizirato duplo, com a presença de um vizir residindo na capital e de outro responsável pelo Alto Egito. Se levarmos em consideração a autobiografia de Sennedjemibi, nota-se que este vizir sozinho era responsável por uma série de atribuições que incluíam tanto a supervisão dos trabalhos realizados para o rei quanto funções administrativas referentes à coleta de impostos. Na Vª dinastia, as funções se dividem e surge um vizir responsável pelos trabalhos régios e outro pela coleta de impostos. Verifica-se que as funções relativas ao Tesouro concentram-se, em sua maioria, nos vizires do sul – diante disso, é plausível admitir que esse novo sistema tinha como objetivo intensificar o controle e assegurar de forma mais permanente os tributos referentes ao Alto Egito353.

3.3 AS REFORMAS ADMINISTRATIVAS DA VIª DINASTIA E O FIM DO REINO