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TRANSFORMAÇÕES NA ADMINISTRAÇÃO CENTRAL AO LONGO DO REINO ANTIGO

1 DISCUSSÕES SOBRE ESTADO

2 A ADMINISTRAÇÃO EGÍPCIA: ENTRE CENTRALIDADE E DESCENTRAMENTO

2.3 TRANSFORMAÇÕES NA ADMINISTRAÇÃO CENTRAL AO LONGO DO REINO ANTIGO

Se formos pensar em características mais ou menos gerais que representem a situação da administração central nas duas últimas dinastias no Reino Antigo, é possível enxergar a predominância de um modelo tripartite: a monarquia seria o nó central de uma estrutura administrativa que se resumia na atuação de um grupo de departamentos administrativos e de altos funcionários comandados pelo vizir (tAyty (n) zAb tATy)230.

Ao longo de toda a história egípcia, o vizir sempre foi considerado como o segundo homem mais importante do Egito, atrás apenas do faraó. O cargo de vizir era o mais alto dentro da hierarquia administrativa egípcia e suas responsabilidades incluíam a supervisão de quase todas as atividades levadas a cabo pelo Estado egípcio. Assim como todas as funções relativas à administração estatal, nas primeiras dinastias o cargo de vizir era restrito a membros da família real – mais especificamente, aos príncipes, chamados de iri-pat. Gradativamente, esse cargo passa a ser ocupado por indivíduos de fora desse círculo e a associação do vizir ao título iri-pat cai em desuso.

As atribuições do vizir variam bastante e podem ser encontradas em um documento posterior ao Reino Antigo chamado de Instruções para o Vizir, datado do início do Reino Novo231. Dentre as funções mais importantes exercidas pelo vizir estão a de chefe do Celeiro, chefe do Tesouro, chefe das Oficinas do Palácio e chefe das cidades da pirâmide232, as quais controlavam importantes atividades produtivas.

Os vizires pertenciam ao Conselho Real, que agrupava anciãos influentes em torno do rei. Esse Conselho pode ser identificado de diversas formas, sendo Conselho do Grande Deus, Grande Conselho, Conselho do Rei, Conselho de Hórus !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

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O vizir era o homem mais importante do Egito após o faraó. Acumulava diversas atribuições, dentre as quais o controle fiscal e a supervisão de diferentes departamentos administrativos. Junto ao título de vizir vinham também outros títulos honoríficos, como smr-waty (amigo único), que atestavam proximidade com o rei. A partir do momento em que o cargo de vizir passa a ser ocupado por membros de fora da família real, o título de “filho do rei” (iri-pat), que acompanhava esse funcionário, cai em desuso nesse contexto.

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Boorn, G.P.F van den. The duties of the vizier. Civil administration in the Early New Kingdom. Londres : Routledge, 1988.

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as denominações mais comuns. Suas funções eram consultivas e dali emanavam certas diretrizes obrigatórias que orientavam a conduta dos funcionários do Estado. Em caso de falha nesse conduta, era esse mesmo Conselho o encarregado de realizar o julgamento. Na autobiografia de Pepyankh de Meir (também conhecido como Pepyankh, o Médio) encontramos um exemplo desse caso. Pepyankh comenta ter sido apontado como um sr (“nunca dormi longe do selo desde que fui designado como sr”) e podemos supor através do trecho em que diz “em relação ao que foi dito em relação a mim na presença dos srw, eu tive sucesso e a queixa foi jogada contra os acusadores, pois fui absolvido na presença dos srw”233, que foram os seus próprios pares do Conselho Real que o julgaram quando uma queixa foi apresentada contra ele.

Por sua posição de autoridade e influência, os membros do Conselho Real (designados coletivamente pelo termo srw) eram também responsáveis pela resolução de querelas judiciais, como aparece, por exemplo, na autobiografia de Weni, o Ancião, vizir que atuou na VIª dinastia. A atestação da participação de Weni como membro do Conselho Real, identificado em sua autobiografia como Conselho das Seis Casas (« eu agi em nome do rei para o Harém Real e para as Seis Grandes Casas »234), dá-se no contexto do julgamento do famoso caso da Conspiração do Harém, no qual houve um complô para assassinar o faraó Teti.

Os srw também possuíam atribuições na coleta de impostos, como é possível entrever através do Decreto de Coptos B, no qual o rei concede isenção de impostos ao templo de Min e seus funcionários e ameaça aqueles que por ventura os colocarem na lista de coleta:

Quanto ao srw desse nomo, trazido diante de um supervisor do Alto Egito para agir conforme ele, depois de ter sido sido levado à presença de funcionários, Minha Majestade ordena que ele retire o nome dos sacerdotes e funcionários deste templo. Todo funcionário, escriba dos documentos do rei, supervisor dos campos, supervisor dos escribas do Xri-xtm ou qualquer funcionário que aceite um srw que escrever decretos para colocar o nome de qualquer supervisor de sacerdotes, controlador dos sacerdotes, funcionários, espectadores das performances de Min ou trabalhadores-mrt do serviço do pr-Sna do Templo de Min, ou esses construtores de Min em Coptos e no nomo de Coptos, ou qualquer trabalho da Casa do Rei, ele

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A transliteração e tradução da autobiografia de Pepyankh encontram-se em KANAWATI, Naguib. The Cemetery of Meir. The tomb of Pepyankh the Middle. ACE Reports 31, Oxford, 2012.

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estará participando de um ato de traição235.

A ideia de que os vizires eram agentes responsáveis pela coleta de impostos é reforçada pelas inscrições de Kagemni, tornado vizir no reinado de Teti e posteriormente deificado236, na qual “o vizir Kagemni declara: a majestade do faraó Teti, meu senhor – que viva eternamente! – me nomeou responsável de todas as oficinas relacionadas com todo o tipo de impostos das Residência Real”237.

Com relação ao papel do vizir, é necessário bastante cautela pois as atribuições relativas a essa função mudaram bastante ao longo do tempo. Se, no Reino Novo, temos o vizir como um espécie de segundo homem no comando, isso não é válido para boa parte do Reino Antigo. Até a Vª dinastia a administração central encontrava-se bastante fragmentada no Egito e, segundo Harco Willems, não se verifica, nessa época, a existência de um vizir com responsabilidades gerais238. Essa situação muda somente a partir das reformas empreendidas na VIª dinastia, quando os cinco eixos em torno dos quais se articulava a administração central passam a ser subordinados ao vizir239. A identificação desses cinco eixos segue as já mencionadas elaborações de Strudwick, o qual crê estarem essas cinco categorias organizadas formalmente em departamentos com atribuições específicas: Justiça, Arquivo, Trabalhos Públicos, Celeiro e Tesouro, chefiados respectivamente pelo Supervisor das Seis Grandes Casas (im.y-r Hw.t-wr.t 6)240, pelo Supervisor dos Escribas dos Documentos do Rei (im.y-r sS<.w> a nsw.t), pelo Supervisor dos Trabalhos do Rei (im.y-r kAt nsw.t), pelo Supervisor do Duplo Celeiro (im.y-r Snw.ty) !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

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TPA, p. 108. O pr-Sna correspondia a um centro de estocagem e processamento existente em todos os domínios rurais. Esse local servia também como um centro administrativo no qual se organizava a força de trabalho e se estabeleciam os impostos. (cf. MORENO GARCIA, Juan Carlos. Estates (Old Kingdom). In.: FROOD, Elizabeth ; WENDRICH, Willeke (eds.). UCLA Encyclopedia of Egyptology. Los Angeles, 2008. Acesso em : http://escholarship.org/uc/item/1b3342c2 (último acesso em 04/04/2015).

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Sobre a deificação de Kagemni, cf. HAMILTON, Julia Claire Francis. Veneration of Vizier Kagemni at Saqqara. Auckland, 2014. Dissertação (Mestrado em Arte). Departamento de Arte, História Antiga, Universidade de Auckland, 2014.

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MORENO GARCIA, op. cit. (2009), p. 113. 238

WILLEMS, op. cit (2008), pp. 32-33. 239

Papazian traz uma interpretação contrária. Para esse autor, o vizir realizava controle direto e irrestrito sobre uma enorme variedade de ofícios, situação que muda com o surgimento de departamentos especializados na Vª dinastia (PAPAZIAN, Hratch Papazian. The Central Administration of the Resources in the Old Kingdom: Departments, Treasuries, Granaries and Work Centers. In.: MORENO GARCIA, Juan Carlos (ed.). Ancient Egyptian administration. Leiden: Brill, 2013. p. 54).

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Ou, apenas, « chefe da Grande Casa ». O termo supervisor (imy) também pode ser encontrado como sinônimo de chefe em todas essas titulaturas.

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e pelo Supervisor do Duplo Tesouro (im.y-r pr.wy-HD), este último também conhecido como Supervisor da Casa Dourada (im.y-r prwy HDw)241. Strudwick observa que, na Vª dinastia, os vizires portavam ao menos duas dessas titulaturas, indicando sua posição de encarregados gerais das principais atividades produtivas levadas a cabo pelo Estado. Não se pode esquecer, contudo, de outras atividades importantes que parecem ter sido, igualmente, supervisionadas pelo vizir, como o controle dos campos, a direção de equipes de trabalhadores e o comando de tropas242.

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Vale a pena indicar que as fontes egípcias não mencionam, claramente, esses departamentos, cuja existência é aferida por Strudwick a partir das titulaturas de funcionários do Reino Antigo. Baseado em um documento da XIIIª dinastia, o Papiro Bulaq 18, Bruce Trigger identifica a menção a três departamentos básicos, que seriam : Departamento da Cabeça do Sul, sendo esta uma região correspondente à parte mais meridional do Alto Egito, dotada de grande unidade política; Ofício do Trabalho Governamental e o Tesouro. Esses três departamentos, segundo a interpretação de Trigger dos dados fornecidos no mencionado papiro, constituíam as maiores fontes de recursos do Estado (TRIGGER et all. op. cit. 1983, p. 82). Como se trata de um documento posterior ao Reino Antigo, não é possível supor, portanto, que o mesmo seja válido para esta época.

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Aqui vale a pena retomar as considerações de Moreno Garcia quando comenta que os departamentos administrativos concernem somente o controle de recursos e pessoas, usados pela Coroa em atividades de seu interesse, uma vez que o Estado egípcio « só se ocupava daquelas atividades produtivas ou das manifestações que serviam aos seus interesses » (MORENO GARCIA, op. cit. 2009, p. 108). A maior ou menor presença do Estado em uma determinada região dependia de sua importância econômica, estratégica ou política.!

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