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Mapa 2- Nomos do Baixo Egito

3.3 AS REFORMAS ADMINISTRATIVAS DA VIª DINASTIA E O FIM DO REINO ANTIGO.

3.3.1 CONSIDERAÇÕES SOBRE OS NOMOS MERIDIONAIS DO ALTO EGITO !

3.3.1.3 A autobiografia de Sabn

Sabni era um funcionário da VIª dinastia egípcia que serviu ao rei Pepi II. Em sua autobiografia, encontramos o registro de seus esforços para prover o funeral de seu pai, Mekhu, morto na Núbia. Sabni herdou de seu pai os títulos de sacerdote leitor, prefeito e amigo único e o tamanho de sua tumba, assim como a descrição do serviço mortuário destinado a seu pai demonstram que se tratavam de personagens de status social bastante elevado.

Os funcionários que possuíam uma tumba estavam entre os de maior status, mas nem todos tinham meios para construir e equipá-la, o que demonstra a estratificação social dentre os membros da própria elite. Com relação à construção de uma tumba, não é incomum vermos pedidos ao rei para a montagem do mobiliário funerário. É o caso de Djau, que pede ao rei Neferikara que conceda oferendas funerárias e um sarcófago a seu pai, provisão esta que é obtida através

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do Tesouro Duplo da Residência403. Djau foi enterrado junto a seu pai, mas é interessante a ressalva que aparece em sua autobiografia a esse respeito: “Eu fui enterrado em uma tumba junto com este Djau pelo desejo de estar com ele em um lugar e não por falta de meios para construir uma segunda tumba”. Esse trecho, em particular, é bastante interessante porque demonstra, nas palavras de Christopher Eyre, uma “conexão entre poder pessoal, status social e patronagem régia na localização e fundação de uma tumba”404, indicando como o Estado submete a lógica do patronato à sua própria com o intuito de estabelecer e reforçar alianças capazes de assegurar suas bases de poder local.

Assim como Pepynakht e Harkhuf, Mekhu e Sabni (ambos estão na mesma tumba) foram enterrados no cemitério de Qubbet el-Hawa. Kanawati acredita, inclusive, que Mekhu tenha sido o sucessor de Harkhuf no cargo de “supervisor do Alto Egito”, título reservado a membros de uma pequena fração do grupo dominante da região405.

A autobiografia de Sabni traz alguns indicadores importantes, a começar pela situação na região da Núbia a qual, conforme já dito, era de bastante instabilidade no período final do Reino Antigo. O fato de Mekhu ter sido morto na região (mais precisamente em Wawat) ajuda a comprovar a ameaça na região fronteiriça ao mesmo tempo em que demonstra a sua importância como ponto de trocas comerciais, uma vez que Sabni descreve inúmeros itens trazidos da região quando para lá se dirige para buscar o corpo de seu pai.

Outro elemento de destaque da autobiografia de Sabni é, precisamente, a organização do serviço mortuário realizado para Mekhu, do qual Sabni era o responsável. No Reino Antigo, com o recrudescimento do culto a Osíris, os laços familiares (especialmente entre pais e filhos) tornam-se um elemento importante do culto mortuário. Todo falecido passa a ser considerado um Osíris e a imitação dos papeis míticos desse deus e seu filho Hórus é parte importante do simbolismo funerário, como observou João:

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TPA. 404

EYRE, op. cit. (2015), p. 83. 405

Na parte preservada da autobiografia de Mekhu o título de “supervisor do Alto Egito” não aparece mas este é, contudo, encontrado registrado em seu sarcófago, conforme apontado por Debora Vischak.

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A morte para os egípcios era vista também como o medo da extinção dos laços sociais. A doutrina osiriana favoreceria, igualmente, estes laços, através da imitação dos papéis de Osíris e Hórus, fazendo o elo entre duas gerações através da atuação do filho amoroso, representado por Hórus, que presidiria a maioria dos rituais em favor de seu pai. Assim o faria o primogênito do falecido406.

O tipo de enterro realizado para Mekhu, porém, é semelhante ao dos iry-pat, “príncipes herdeiros” e, segundo Sabni, “nunca ninguém como ele havia sido enterrado dessa forma407”. A associação com o tipo de enterro realizado para membros da família real é indicativo do status adquirido por essa pessoa e deriva diretamente da função exercida por ela no quadro da administração estatal. Como bem aponta Alexanian, no Egito “não havia um livre mercado onde alguém pudesse simplesmente comprar, por exemplo, uma porta-falsa de calcário de Tura. No Egito ninguém tinha livre acesso ao material, aos trabalhadores ou a conhecimento especializado”408 e a construção e o tamanho de uma tumba, assim como determinados itens do equipamento funerário eram, portanto, adquiridos mediante um decreto régio. Na autobiografia de Debeheni aparece o registro de que o rei Merenkaura teria determinado a inspeção do tamanho da tumba construída por esse funcionário, por exemplo. Em Sabni a intervenção do Estado no âmbito funerário é ainda mais explícita. Conta sua autobiografia que, quando foi à Núbia resgatar o corpo de seu pai, um emissário régio de nome Iri foi enviado à Residência, de onde voltou com um decreto e diversos itens necessários ao enterro de um alto funcionário, como embalsamadores, carpideiras, tecidos, unguentos e “todo o equipamento da pr-nfr409). Sabni deixa bem claro que “todas as necessidades do enterro foram providas pela Residência”. Ainda, no decreto há uma outra ordenação específica a ser cumprida por Iri, a de conferir as funções de haty-a, provavelmente com o intuito de saber se Mekhi era merecedor do tipo de enterramento que haveria de receber.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 406

JOÃO, op. cit. (2008), p. 145. 407

Como recurso literário é comum encontrarmos nas autobiografias referências de algo que « nunca havia sido feito antes », a fim de ressaltar os feitos do funcionário. Nesse caso, contudo, a menção não parece ser meramente um recurso literário, visto que anteriormente aparece uma comparação nominal (Mereru), tratando-se provavelmente de uma equiparação real.

408

ALEXANIAN, op. cit. (2006), p. 8. 409

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Muito embora os funcionários provinciais da VIª dinastia não fossem mais enterrados nos cemitérios da capital, próximos à pirâmide do rei, podemos observar através do exemplo de Mekhu e Sabni que isso não representa a extinção do papel do monarca como intermediário de seus súditos na obtenção da imortalidade. À medida que existe uma regulamentação específica e regras de decoro norteando o tipo de tumba e de enterramento que uma pessoa poderia adquirir, isso demonstra não uma perda de controle, mas uma nova forma de intermediação. A arqueologia demonstra que as tumbas nos cemitérios provinciais imitam em grande parte o modelo palatino, e os elementos inovadores (como por exemplo os novos temas que aparecem nos Textos dos Sarcófagos e os elementos decorativos que caracterizam os monumentos provinciais), representam uma tentativa de afirmação de valores próprios de uma elite que se constitui a fim de afirmar seu papel na sociedade local, sem romper, contudo, com a cultura oficial.

Pela realização de seus esforços, Sabni comenta ter recebido um lote de trinta arouras de terra do complexo da pirâmide régia, o que demonstra que boa parte da riqueza desse funcionário dependia diretamente da sua função e não se realizava à margem dela. Moreno Garcia, aliás, comenta sobre a improbabilidade da formação de uma “aristocracia fundiária” de longo prazo no Egito, capaz de usurpar rendas devidas ao Estado e constituir riquezas consideráveis à margem deste410. Sabni recebe, ainda, diversos outros itens (madeira, mirra, óleos, linho, carne ...) e também um ornamento de ouro conhecido como o “ouro de louvor”, entregue àqueles que cometiam atos de bravura. Isso se deve, provavelmente, ao fato de ter pacificado a região da Núbia. Ao saber da morte de seu pai, Sabni partiu para Wawat com cem burros carregados de diversos itens como potes de faiança e mel, para oferecer como presentes aos núbios da “Porta Estreita”411, indicando uma tentativa de aproximação diplomática com os dirigentes da região. O texto comenta que “eu satisfiz aquelas terras estrangeiras com esses presentes”, indicando provavelmente ter conseguido uma trégua nos conflitos da região. Mais tarde, Sabni comenta ter conseguido trazer de volta de Wawat, junto ao corpo seu pai, uma série de outros itens valiosos, como peles de leão, marfim e incenso, indicando que o comércio havia se normalizado. Menciona, inclusive, ter trazido tropas núbias junto !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

410

MORENO GARCIA, 2009, passim. 411

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com as suas e, por isso, “esse servidor foi, então, favorecido pela majestade do Conselho da Corte”.

Sabni, que morreu na região de Iam - conforme se verifica através de uma inscrição na tumba de seu filho, Mekhu II - foi encontrado por este no wabet (ou “Lugar Puro”, onde se realizavam embalsamamentos) e novamente menciona-se um decreto régio concedendo oferendas para o culto funerário de um funcionário, e que

Todos os itens necessários ao enterro foram providenciados pelos lugares da Residência (na mesma maneira como teria sido feito) para um iry-pAt na pirâmide de Neferkara para o imakhu na proteção do Grande Deus, Sabni”.