• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 3 – CRÍTICA DO VALOR, CRÍTICA DO DIREITO

3.5 Crítica do direito como forma fetichista

3.5.1. A autonomia, em certa medida, do direito estatal

Como já pudemos ver112, o moderno sistema produtor de mercadorias só se realiza quando instala a si mesmo enquanto dualidade constitutiva; quando impõe ao desenvolvimento dos mercados socialmente desagregadores o princípio oponível da política do estado e do direito.

Esta instância só realiza sua tarefa de “oponivelar”113 a economia de mercado quando: a) estabelece outras formas de troca sociais que não a mercantil em determinados setores e períodos (pilhagem e redistribuição)114; b) constrói e mantem edificações e aparatos onde a economia de mercado não consegue extrair rentabilidade (a assim chamada infra-

estrutura); c) realiza em nome próprio a empresa capitalista de uso de força de trabalho

abstrato para a produção mercantil (empresas públicas ou semi-públicas, etc.) e d) utiliza

112 Cf. item 3.1.

113 Com esta palavra queremos distinguir a relação entre economia e estado de uma relação de “oposição”. A economia capitalista de mercado e o estado não de “opõem” de fato, mas são oponíveis no interior de uma mesma realização histórica da formação social baseada na produção de mercadorias.

118

o aparato propriamente jurídico de regulação normativa estatal na figura de juízes, tribunais, delegados de polícia, ministério público, polícia militar, etc.

Em todas essas modalidades o estado precisa observar o ordenamento jurídico e harmonizar – na medida do possível – suas ações com este ordenamento em suas funções próprias de constituição, regulação e padrão normativo115. Sendo assim, é preciso lembrar que não é apenas na figura do aparato propriamente jurídico (d) que o estado recorre ao direito, contudo, sem este aparato qualquer recurso se torna impossível em qualquer uma de suas atividades.

Com efeito, o primeiro fator de autonomia do direito estatal decorre do aparato jurídico-institucional. Como parte de um dos poderes do estado, o judiciário, por exemplo, conta com dotação orçamentária própria e relativamente independente. Estes fatores respondem pela autonomia, em certa medida, do direito estatal: no plano ideológico, pelas suas funções próprias, sendo a de “padrão normativo” a mais importante neste aspecto; e no plano concreto, pelo aparato relativamente independente do judiciário e de outras instituições ligadas e este.

Vamos a um exemplo deste ponto.

3.5.1.1 O fim da “Era Lochner” nos Estados Unidos

Entre 1897 e 1937 os Tribunais norte-americanos estavam sob o signo daquilo que os juristas e historiadores chamaram de “Era Lochner”. Esta foi a designação dada à tendência da Suprema Corte e de muitos tribunais estaduais de rechaçar em seus julgamentos as tentativas do governo de intervir na esfera econômica, mesmo com a convulsão social ocasionada pela Grande Depressão. Recebeu este nome por conta do caso Lochner v. New York116 , no qual o

115 Cf. o item 3.3 desta tese.

116 Lochner v. New York se tratava do caso do julgamento na Suprema Corte, em 1905, de uma lei do estado de Nova Iorque que limitava as horas trabalhadas pelos padeiros deste estado a 10 horas diárias e 60 horas semanais. A lei foi considerada inconstitucional por 5 votos contra 4. Cf. 198 U.S. 45, disponível em: http://openjurist.org/198/us/45 . Segundo os juízes, ao limitar as horas trabalhadas pelos padeiros de Nova Iorque em 60 horas semanais (!) a lei do estado de Nova Iorque feriria a “liberdade de contrato”. Esta é uma das poucas liberdades das quais os destinatários querem sempre fugir como o diabo foge da cruz, para parafrasear Marx.

119

Tribunal de Nova Iorque rechaçou a tentativa governamental de regular as horas semanais dos trabalhadores das padarias. Diz-se que a “Era Lochner” acabou quando, ameaçados pelas tentativas do Governo Roosevelt de reforma do judiciário, os juízes deram uma reviravolta em suas opiniões ideológicas conservadoras, que transpareciam nos casos sobre regulação estatal da economia da “Era Lochner”. Esta reviravolta aconteceu no caso West Coast Hotel Co. v.

Parrish117. Neste caso, Else Parrish, uma camareira que trabalhava no Hotel Cascadian, na cidade de Wenatchee, Washington, processou o hotel com o intuito de receber pela diferença entre o que recebia e o que era estabelecido como salário mínimo de uma trabalhadora pelo Comitê de Bem-estar na Indústria e Supervisão do Trabalho Feminino, que era U$ 14,50. Após ganhar no Supremo Tribunal de Washington, Elsie Parrish foi demandada pelo West Coast

Hotel Co., proprietária do Hotel onde a camareira trabalhava. Parrish venceu a apelação. Lê-se

na sentença deste caso que:

A privação da liberdade de contrato é proibida pela Constituição sem o devido processo legal, mas se a restrição ou a regulação desta liberdade, se razoável em relação ao assunto e se adotadas para a proteção da comunidade contra os males que ameaçam a saúde, a segurança e o bem-estar das pessoas, ele terá seguido o devido processo legal118.

Ora, esta afirmação da Suprema Corte é precisamente o oposto do que esta mesma Corte havia dito em 1905, ao sustentar, contra os trabalhadores das padarias de Nova Iorque, que as normas de saúde que limitavam a certa quantidade máxima as horas por eles trabalhadas, com a alegação de que isto feriria a liberdade de contrato. Ainda mais quando lembramos que as leis estaduais nova-iorquinas em questão protegiam a saúde dos trabalhadores deste setor.

Esta “viravolta” da Suprema Corte, sob a pressão de Roosevelt ficou conhecida no meio jurídico e historiográfico norte-americano como “a virada a tempo que salvou nove” (“The

switch in time that saved nine”) e teve como seu protagonista o juiz Owen Roberts. Isto

porque em 1 de fevereiro de 1937 Roosevelt anunciou um plano de Reformas do Judiciário, a

Court-Reform Bill, que incluía a alteração do número de juízes na Suprema Corte de nove para

117

300 U.S. 379, Disponível em http://supreme.justia.com/us/300/379/. 118 P. 300 U. S. 391.

120

quinze e realizava outras reformas. Como o julgamento do caso West Coast Hotel Co. v.

Parrish só foi publicado em 27 de março, semanas após o anúncio do Plano de Reformas de

Roosevelt em cadeia nacional de rádio, o episódio terminou entrando para a história como um recuo da Suprema Corte – em especial do juiz Owen Roberts, cujos votos decidiam a maioria dos casos da “Era Lochner” por 5 a 4 – diante da artilharia de Roosevelt e do seu interesse de aprofundar e desenvolver o programa do New Deal, enormemente atravancado pelas opiniões conservadoras da Suprema Corte.

Esta virada radical nas decisões da Suprema Corte americana nos revela claramente a autonomia, em certa medida, do aparato propriamente jurídico do estado diante das tarefas históricas que implicam o estado como o oponivelador da economia de mercado.