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CAPÍTULO 3 – CRÍTICA DO VALOR, CRÍTICA DO DIREITO

3.6 O direito e a crítica do trabalho

3.6.3 Da antipolítica ao antidireito

Reconstruído criticamente o vínculo entre a crítica do direito e a crítica do trabalho, o tema do “fenecimento do direito” é retomado, ainda que por apalpadelas, no interior dos esforços teóricos do Krisis. Franz Schandl propôs algumas teses sobre o Fim do Direito em 1994. Em sua visão, a decomposição social da sociedade produtora de mercadorias atingia com grande impacto as formas e os conteúdos legais. O direito, segundo ele, estaria em decomposição “anômica” junto com a formação social do valor134. Seria possível pensar – as condições sociais e históricas nos impelem a isso – os limites incontornáveis deste “princípio formal” *Formprinzips] do Ocidente. Na 13ª hipótese escreverá ele:

...o direito é, por um lado, expressão de um elevado desenvolvimento histórico, mas por outro lado também a súmula de uma carência civilizacional. Em ordens para além da coação [Zwanges] nenhum direito seria possível. Os direitos subjectivos só são necessários onde eles não aparecem como evidências objetivas. “Um ‘direito’ à vida, à alimentação, à habitação, etc., é, em si mesmo, absurdo; ele só faz sentido num sistema de relações sociais que, por sua própria tendência, não pressupõe como evidentes estes elementos básicos da vida humana, mas, pelo contrário, os põe objetivamente em causa”135.

A crise terminal que revela os limites absolutos da reprodução do moderno sistema produtor de mercadorias impeliria ainda – embora reconhecesse a inexistência de qualquer “termo positivo” no presente estágio da crise – à criação, por parte dos movimentos emancipatórios, de um “pós-direito” *Nachrecht], de uma alternativa ao direito e à lei e não a novos direito e novas leis.

Embora desenvolva suas reflexões a partir de aspectos bastante distintos da obra de Marx, fazendo sua argumentação se basear em grande medida na obra de Engels e Lênin, Olufemi Taiwo também discorreu acerca de um possível nível societal “pós-jurídico”

134 Assunto com o qual nos ocuparemos no capítulo seguinte desta tese.

135 (SCHANDL, 1994), (SCHANDL, 2001) com tradução corrigida. A tradução em português (2001) omite as aspas entre “O direito à vida...” e “objetivamente em causa”, que marcam a citação de um texto de Robert Kurz: Der Letzte macht das Licht aus. Zur Krise von Demokratie und Marktwirschaft (1993), também omitida e que se encontra no original em alemão (1994).

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[postlegal] (TAIWO, 1996)136. Há entre nós, ainda, o entendimento de Thamy Pogrebinschi (2009), para quem a forma do direito moderno é superada pelo fim do estado moderno e seu “desvanecimento”137; contudo ela reluta em ver nisso um “desvanecimento” ou superação do direito, mas apenas de sua expressão formal-estatal, permanecendo ainda um direito prático, materialmente constituído pela comunidade pós-estatal138.

Na teoria crítica de István Mészáros, por seu turno, onde o trabalho ainda exerce a significação de único “contra-princípio”139 ao capital, encontramos uma clara resistência em aceitar a crítica do direito em sua inteira radicalidade. Em Para além do capital, cujo subtítulo é “Rumo a uma teoria da transição”, ele escreveu o seguinte:

Devemos salientar também que a negação prática materialmente efetiva das estruturas reprodutivas dominantes por meio de ação e organização extraparlamentar não implica a ausência de leis nem mesmo a rejeição apriorística do próprio Parlamento. Envolve, contudo, a contestação organizacionalmente sustentada nos limites cerceadores favoráveis ao capital, que as tendenciosas “regras do jogo” parlamentar impõem, como antagonista do

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Ao final de sua obra, Taiwo faz a pertinente observação: “Uma mais adequada, e eu deveria dizer, mais convincente argumentação da tese do fenecimento requer que os marxistas prestem mais atenção ao problema dos pré-requisitos sociológicos da realização de uma sociedade pós-jurídica e pós-política” (1996, p. 201)

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Cf. nota 125.

138 Diante do problema pachukaniano dos limites do direito como forma de uma socialização fetichista, Pogrebinschi oscilará, ora concordando com a crítica da forma jurídica pachukaniana, ora tentando ainda recuperar algum aspecto normativo que o direito possuirá após o desvanecimento do estado. A separação que ela opera entre a forma e o conteúdo, ao tentar recuperar este aspecto normativo de um suposto direito pós-estatal, contudo, não parece ser promissora. Na perspectiva aberta pelo percurso de nossa tese, apenas a seguinte premissa desta autora prospera: “se não há distinção entre a forma e o conteúdo direito” ou seja, se a forma e o conteúdo do direito e dos direitos não aparecem mais em sua clivagem constitutiva – expressão abstrata e formal das normas jurídicas e uma facticidade dependente da máquina do estado – “se aquela é absorvida neste, significa que não existe algo como ‘o direito’” (POGREBINSCHI, 2009, p. 313). Forma sem conteúdo é algo que não pode se dar. Extinta a forma jurídica, não há mais um conteúdo

propriamente jurídico que possa por ventura permanecer. Assim, não pode se dar também um “conteúdo e

só conteúdo” jurídico desvencilhado de sua forma, como quer esta autora (2009, p. 315).

139 Mészáros não deixa qualquer dúvida ou fresta quanto a isso, ao contrário de Marx, que ainda oscilava a este respeito. Lê-se em Para Além do Capital: “O trabalho não é apenas não-integrável (ao contrário de certas manifestações políticas do trabalho historicamente específicas, como a socialdemocracia reformista, que poderia ser corretamente caracterizada como integrável e na verdade completamente integrada nas últimas décadas), mas – precisamente como a única alternativa estrutural viável para o capital – pode proporcionar o quadro de referências estratégico abrangente no qual todos os movimentos emancipadores de ‘questão única’ podem conseguir transformar em sucesso sua causa comum para a sobrevivência da humanidade” (MÉSZÁROS, 2006, p. 95) (g. do a.).

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capital. Naturalmente, mesmo numa genuína sociedade socialista do futuro, não se pode ignorar a questão da legislação nem agir como se fosse inexistente. O que decidirá a questão será a relação entre os produtores associados e as regras que eles definirão para si próprios graças a formas apropriadas de tomadas de decisões. Certamente, Marx estava convencido que, numa sociedade socialista desenvolvida, muitas das inevitáveis exigências de regulamentação exigidas poderiam ser atendidas por meio dos

costumes e tradições estabelecidos pelas decisões autônomas e

inter-relações espontâneas dos indivíduos que vivem e trabalham numa estrutura de sociedade não-concorrencial. Sem isso, é inconcebível a supressão da política como esfera alienada, tornando impensável também o “fenecimento do Estado”. Mas também é claro que, para o futuro previsível, muitas das exigências de regulamentação geral devem permanecer associadas a procedimentos legislativos formais (MÉSZÁROS, 2006, p. 859).

E uma vez mais os “produtores associados” precisam recorrer ao direito do estado, agora agindo em prol do polo pretensamente oposto ao capital, o trabalho, construindo o modo de “regulação geral” do socialismo futuro. Neste ponto em particular, se trata de um novo esforço para se girar uma velha roda emperrada.

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