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CAPÍTULO 3 – CRÍTICA DO VALOR, CRÍTICA DO DIREITO

3.2 O direito como parte do polo estado

O direito compreende a fração do estado que se autoconstrói e se dirige normativamente aos seus destinatários com generalidade formal. Esta fração do estado, que abarca em si suas dimensões tanto materiais quanto simbólicas, se apresenta de modo distinto do restante da maquinaria estatal, embora indissociável desta. É com o acúmulo de experiências históricas que o estado assume para si a designação, na modernidade, de “estado de direito”82.

Em uma definição preliminar, no estado de direito os três poderes do estado, a saber, o executivo, o legislativo e o judiciário, eles próprios, são constituídos, balizados, disciplinados e subordinados às normas jurídicas vigentes. Nesta fase do desenvolvimento das formas institucionais do capitalismo o direito como mediação social atingiu seu ápice e alcançou seu próprio conceito.

Antes da modernidade capitalista, a propriedade privada se colocava como uma atribuição que o detentor de mercadorias apresentava diretamente a outros detentores de mercadorias. Era preciso, na maioria das vezes, que estes negociantes encontrassem uma ocasional terceira parte, por vezes um terceiro possuidor de mercadorias e por vezes

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Refiro-me também, evidentemente, à experiência histórica que resulta ainda no Rechtsstaat germânico e no princípio da Rule of Law anglo-saxã.

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não, para atuar como árbitro em caso de contenda envolvendo uma determinada troca ou compra e venda. As eventuais regras que este árbitro poderia lançar mão eram ditames de sabedoria e prudência que haviam sido passados de geração em geração e, como raízes e plantas medicinais, ser indicadas para o uso em certas circunstâncias particulares. Em alguns lugares e períodos um sábio ou outro poderia ser constantemente chamado para prestar-se a tal papel de árbitro (MASCARO, 2007). Estas formas jurídicas ainda embrionárias surgiam com mais e mais força naqueles espaços que Marx chamou de “nichos” onde uma comunidade trocava seus excedentes com outras comunidades. Onde, portanto, as trocas mercantis ocorriam nas fronteiras externas destas comunidades e, por conseguinte, como uma forma secundária de metabolismo social83.

O ponto mais desenvolvido destas formas embrionárias de direito foi na Roma Antiga. A diferença qualitativa entre uma forma embrionária de direito e um direito desenvolvido, e que responde efetivamente pelo seu caráter “embrionário”, mesmo contando com dispositivos jurídicos por vezes vastos e complexos, é clara: a relação de produção elementar daquela formação social permanecia constituída por laços tanto de política quanto de força bruta, a saber, pela escravidão. Como o disse Marx, o direito romano definia de modo preciso o escravo como aquele que nada podia obter por troca84, isto é, o que estava alijado da esfera das trocas mercantis e, portanto, da própria esfera da subjetividade jurídica – o escravo era apenas objeto e não sujeito de direito. Assim, a antiguidade romana não foi capaz de dar os passos que conduziriam aqueles dispositivos avançados ao seu fértil espaço de desenvolvimento. Ao mesmo tempo, se torna compreensível que a nascente sociedade industrial capitalista tenha dado um salto na história para buscar nestes dispositivos da antiguidade as ferramentas para enfrentar as potestades nobiliárquicas e feudais e seus hábitos, tradições e privilégios vindos da terra e do sangue85.

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O que se busca neste parágrafo não é fidelidade às minúcias históricas acerca do que se afirma, mas, sobretudo, dar a entender os aspectos lógicos da distinção entre a modernidade e a pré-modernidade capitalista. Para uma análise mais minuciosa deste processo, cf. (TIGAR & LEVY, 1978).

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“Daí resulta que, no direito romano se encontre esta definição exata de servus: aquele que nada pode obter por troca” (MARX, 1983, p. 277).

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Foi somente com a superação da escravidão e da servidão e a conversão destas em trabalho assalariado “livre” que o cerne do modo histórico de produção passou a ser mediado juridicamente. Deste modo, a força de trabalho passou a ser constituída de sujeitos de direito, proprietários das mercadorias que eram eles próprios, e que poderiam se colocar diante dos proprietários de dinheiro-capital como juridicamente iguais. Somente neste ponto lógico e histórico que o direito pode atingir sua forma desenvolvida. E isso ocorreu pelo intermédio do mesmo evento que tornou possível à forma dinheiro se converter em capital, a saber, quando se pôde submeter a atividade humana ao ciclo sempre tautológico de sucção de mais-valor. Quando a atividade humana é convertida em “gelatina de trabalho humano abstrato” formadora de valor tanto o dinheiro se metamorfoseia em capital, quanto certos ditos e dispositivos de sabedoria e prudência se convertem em direito do estado.

Nas funções e nas formas do estado e do direito a figura do “terceiro supostamente desinteressado” passa de ocasional para estrutural, se tornando uma mediação sem a qual o próprio sistema moderno de produção de mercadorias não poderia existir86. A forma jurídica passa a ser um dos principais modos de funcionamento do estado.

Quanto mais a economia de mercado e, com ela, a relação monetária abstrata se expandem, tanto menor se torna a força vinculativa das formas de relações tradicionais, pré-modernas, e tanto mais todas as ações e relações sociais precisam ser postas na forma abstrata do direito e, nesse sentido, serem codificadas juridicamente. Todos os homens, sem exceção, inclusive os produtores imediatos, precisam agir cada vez mais como sujeitos modernos do Direito, já que todas as relações se transformam em relações contratuais com forma de mercadoria. Por isso, o Estado transforma-se na máquina legislativa permanente, e quanto maior o número de relações de mercadoria e dinheiro, maior o número de leis ou de decretos regulamentares. Em conseqüência disso, o aparelho de Estado também aumenta progressivamente, pois a

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“Há uma ampla literatura” escreveu um conhecido intelectual conservador recentemente, “que liga o estabelecimento do estado de direito [Rule of Law+ ao desenvolvimento econômico” (FUKUYAMA, 2011, p. 247). Assevera ele mais adiante “... a emergência do estado de direito moderno foi criticamente dependente do reforço [enforcement+ de um forte estado centralizado” (2011, p. 253). A constelação de estado, direito e economia capitalista é assumida por ele, embora por intermédio de métodos teóricos inteiramente distintos dos nossos e, evidentemente, em sentido fortemente apologético.

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‘juridificação’ precisa ser controlada e executada (KURZ, 1997, p. 96).

Entretanto, como bem adverte Bob Fine (2002), que parte de uma homologia entre a forma dinheiro e a forma jurídica87, disso não se deve extrair duas conclusões equivocadas:

A primeira delas é considerar o estado apenas como uma etapa posterior na cadeia evolutiva do direito, como se a evolução dos dispositivos jurídicos culminasse na emergência do estado e, que, portanto, fundamentalmente, direito e estado fossem indistinguíveis. Como esclarece Fine, assim como o dinheiro-capital possui características que vão muito além daquelas que a forma dinheiro possui considerada isoladamente, o estado de direito possui características que vão muito além de um mero acúmulo de dispositivos jurídicos agregados quantitativamente.

O segundo equívoco é considerar direito e estado como dois princípios inteiramente apartados, sem uma conexão intrínseca entre eles, ou ainda, como se esta conexão fosse inteiramente contingente. Em resposta a esta objeção seria preciso afirmar que o dinheiro se realiza e supera-se a si mesmo no capital sem, entretanto, deixar de ser dinheiro. Do mesmo modo, o direito se realiza e se supera como tal no estado de direito, sem, todavia,

deixar de ser direito. “O estado realiza a qualidade que está apenas latente no direito, a de

sua existência independente no exterior do processo da circulação” (FINE, 2002, p. 148).