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CAPÍTULO 4 – A CRISE DO VALOR E DO DIREITO

4.3 Crise e (e da) intervenção do estado de direito

Neste ponto de nossa argumentação não é nem um pouco forçoso reconhecer que contrapor regulação jurídico-estatal e crises econômicas do capital “financeirizado”, como se os dois fossem opostos torna-se um equívoco tanto da teoria quanto da crítica social contemporânea. Jappe já o dissera muito bem. Segundo ele:

Opor as realidades “sólidas” e “honestas” do Estado e da nação, do trabalho e dos ‘investimentos produtivos’ ao capital financeiro e à especulação burguesa arrisca-se a ser, independentemente das intenções de quem defende tais ideias, um jogo bastante perigoso, mais útil para mobilizar sentimentos de ódio do que para criar um movimento de emancipação social. Este último não pode de modo algum limitar-se a escolher um pólo de abstracção mercantil (o Estado, o trabalho) para opor ao outro (o dinheiro, a finança). Porém, em vez de opor a emancipação social ao capitalismo, o que está em moda é opor a “democracia” ao “mundo descontrolado da finança”. O que acontece é que a polêmica contra a especulação é perfeitamente compatível com o elogio de um “capitalismo são”, relativamente ao qual os “excessos financeiros” seriam uma espécie de doença. Com efeito, em 1995, o presidente Jacques Chirac chamava à especulação monetária “a sida [AIDS] das nossas economias”. Como é evidente, esta argumentação confunde a causa e o efeito da crise. Como dissemos já, não é o peso da finança parasitária que esmaga uma economia capitalista que em caso contrário pudesse estar de boa saúde, antes é a economia do valor que, tendo atingido o seu ponto de esgotamento, continua a sobreviver provisoriamente graças à especulação (JAPPE, 2006, pp. 250-251).

Há uma considerável literatura teórico-crítica sobre o fenômeno do estado em face das crises capitalistas. Diversos autores, a exemplo de Jean-Marie Vincent (1977), Suzane de Brunhoff (1977, 1985), John Holloway e Sol Picciotto (1991), Joachim Hirsch (1977), David Yaffe (1972), Nicos Poulantzas, (1977), Pedro Lopez Díaz (1988), Chris Harman (2009), Robert Kurz (2006), (2011), e outros trataram do assunto. Desta feita, podemos afirmar

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que esta literatura crítica reconhece a evidente dependência mútua entre estado de direito e capital. Esse relativo consenso se encontra bem sintetizado por Manuel Castells:

...na prática a intervenção do Estado converteu-se em um elemento essencial das economias capitalistas avançadas de todos os países, independente de qual seja a modalidade principal de intervenção, desde as nacionalizações (como na França ou na Itália) até o gasto público maciço (como nos Estados Unidos). Esta intervenção adota cinco funções principais através de uma grande diversidade de formas, sendo cada uma delas decisiva para a sobrevivência do sistema (1979, pp. 109-110).

A questão que ainda movimenta a pesquisa sobre esta relação cerca as modalidades e as transformações recentes desta (BRUNHOFF, 1985, p. 1). Entretanto, como parte importante da literatura crítica contemporânea constata, Marx deixou a tarefa de uma análise específica do estado em grande medida por fazer e esse déficit foi herdado pelos seus continuadores145.

Em primeiro lugar seria preciso afirmar, depois do percurso de nossa argumentação, a correção da análise de Holloway e Picciotto (1991), para quem a relação entre o estado e o capital não pode ser pensada de modo exterior, como se a economia fosse apenas uma das variáveis da ação autônoma do estado, e este fosse apenas uma das variáveis das ações tomadas no nível econômico. Já pudemos perceber, em nosso exemplo da regulação jurídico-estatal da moeda e do trabalho assalariado (item 3.4.2) que nestes domínios é ainda mais implausível fazer esta dissociação sem mais. A intervenção do Estado nestes domínios, como bem mostrou os estudos de Brunhoff, é imanente e ao

145 “A crítica da economia política de Marx já no título implica a estatalidade e a esfera política com ela relacionada, como componente essencial que simultaneamente remete às origens da relação de capital. Não obstante, o desenvolvimento sequencial das categorias económicas permanece incompleta na exposição marxiana, precisamente neste aspecto. O marxismo do movimento operário historicamente tornado obsoleto é também herança, expressão e consequência desse déficit” (KURZ, 2011, p. 1). Neste mesmo sentido: “A teoria clássica do imperialismo tem uma implicação importante. Ela coloca a questão da relação dos estados e dos capitais em seus interiores. Marx deixou a questão sem resolução. Ele abordou alguns de seus aspectos em seus textos não-econômicos, mas não foi longe o suficiente para integrar estes aspectos a sua análise do sistema capitalista como um todo. Mas esta não é uma questão que qualquer análise séria do capitalismo cem anos após sua morte pode evitar” (HARMAN, 2009, pp. 102-103). Cf. ainda neste sentido (HIRSCH, 1990, p. 157) e (SCHÄFER, 1990, p. 97).

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mesmo tempo exterior às relações consideradas econômicas146. Isto é, atuam como garantia e coerção externa, mas também como catalisadores e estruturadores internos das relações econômicas direta ou indiretamente vinculadas à sucção de mais-valia.

Dito isto, fica mais fácil compreender por que as grandes crises do capitalismo levaram a profundas transformações nos arranjos jurídico-estatais ao redor do mundo industrializado. As crises foram as balizas mais importantes para a intervenção estatal; as crises foram as vigas sobre as quais se desenharam as instituições reguladoras da socialização mediada pela mercadoria e pelo valor. Como o escreveu Octavio Ianni:

... na base da intervenção estatal está a conjuntura crítica. As diferentes orientações adotadas pelo aparelho governamental, ao interferir direta e indiretamente nas atividades econômicas, apóiam-se na eclosão de situações críticas. É especialmente nas crises estruturais que o Estado amplia a sua ação neste ou naquele setor da produção, nesta ou naquela esfera da economia, estabelecendo diretrizes para o uso do capital, da força de trabalho, etc. (2004, p. 203).