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CAPÍTULO 3 – CRÍTICA DO VALOR, CRÍTICA DO DIREITO

3.1 A dualidade constitutiva da modernidade produtora de mercadorias

A emergência das sociedades que reproduzem em si a forma valor-capital, ou seja, das sociedades centralmente produtoras de mercadorias, se deu a partir de uma relação, ao mesmo tempo de afinidade e de conflito, com algum tipo de formação estatal- institucional.

Todas as formações sociais com esta “segunda natureza” social constituíram, ao longo de sua história, um dualismo entre o campo dito econômico, onde os sujeitos podem perseguir com liberdade seus interesses privados e egoísticos mediados pela propriedade e pelo dinheiro, e o campo dito político, onde o bem comum e a igualdade seriam os princípios basilares da ação fundada nos interesses públicos da coletividade. De modo inteiramente positivo, os polos mercado e estado se tornaram os centros irradiadores desta dualidade constitutiva. Eles se tornaram os centros de debates e confrontos que se seguiram, como por exemplo, entre o planejamento estatal da economia e a liberdade de iniciativa privada. Como um pêndulo em movimento, cada um destes polos poderia contar para si êxitos e derrotas (KURZ, 1997)80.

80 Em um artigo mais recente, escreverá Kurz, no mesmo sentido: “Assim se estabelece, simultaneamente, a polaridade imanente entre estatalidade e economia, entre homo oeconomicus e homo politicus, entre

bourgeois e citoyen (determinados ‘masculinos’ como sempre); com certeza que de modo plenamente

inconsciente, como duplicação contraditória da ‘vontade geral’ na estatalidade transcendental, ou na ‘forma vazia’ de uma ‘lei em geral’, por um lado, e na máquina transcendental da ‘mão invisível’, por outro. Ambos

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Qualquer um dos polos fracassa ao buscar trazer apenas para si o centro da socialização. O mercado é por demais desintegrador socialmente, e deixa enormes lacunas onde a vida e as relações sociais simplesmente não têm atrativos do ponto de vista da extração de mais-valor e estas falhas inevitáveis, por seu turno, comprometem as áreas nas quais seria possível esta extração. O estado, por sua vez, não é capaz de realizar suas tarefas de planejamento e alocação de recursos sem se utilizar dos meios do dinheiro, da mercadoria e do trabalho abstrato, não importando o quanto possa ideologicamente se colocar como um “estado de trabalhadores”.

Assim, estado e produção sistemática de mercadorias e valor são dois aspectos de uma mesma realidade, de uma mesma totalidade sempre dinâmica, que não pode se reduzir uma à outra. Jean-Marie Vincent lembra bem que

O Estado não é uma simples derivação das relações mercantis capitalistas, ao contrário, ele deve negá-las parcialmente para ser capaz de mantê-las, e longe de acabar com a heterogeneidade dos dois mundos, ele a reproduz na sua escala em suas disfunções recorrentes e nas suas contradições internas (1987, p. 114).

Este fato-problema aparece também em István Mészáros, como uma unidade que pode ser captadas pelos seus dois polos, o do capital e o do estado. Sob um primeiro aspecto:

O Estado moderno – na qualidade de sistema de comando político abrangente do capital - é, ao mesmo tempo, o pré-requisito necessário da transformação das unidades inicialmente fragmentadas do capital em um sistema viável, e o quadro geral para a completa articulação e manutenção deste último como sistema global. Neste sentido fundamental, o Estado – em razão de

os momentos da ‘vontade geral’ apontam um para o outro e procedem um do outro. O mecanismo social objectivado da ‘mão invisível’ precisa do poder de submissão política do Leviatã, que force a sociedade a esta forma, e da forma jurídica geral dos ‘sujeitos’, porque as mercadorias, na formulação posterior de Marx, ‘não podem ir ao mercado sem seus guardiões’, e estes últimos têm de agir em relações contratuais reguladas, para poderem ser funcionários da legalidade pseudo-natural. Inversamente, a estatalidade e a forma jurídica têm como seu próprio pressuposto a ‘mão invisível’ do mercado, na realidade o ‘sujeito automático’ da reprodução fetichista no seu conjunto, que lhes determina a moldura do ‘poder de decisão’ e da juridificação” (KURZ, 2011, p. 8).

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seu papel constitutivo e permanentemente sustentador – deve ser entendido como parte integrante da própria base material do capital. Ele contribui de modo significativo não apenas para a formação e a consolidação de todas as grandes estruturas reprodutivas da sociedade, mas também para seu funcionamento ininterrupto.

Por outro lado, todavia:

... este inter-relacionamento íntimo também se mantém quando visto pelo outro lado, pois o Estado moderno em si é totalmente inconcebível sem o capital como função sociometabólica. Isto dá às estruturas materiais reprodutivas do sistema do capital a condição necessária, não apenas para a constituição original, mas também para a sobrevivência continuada (e para as transformações históricas adequadas) do Estado moderno em todas as suas dimensões. Essas estruturas reprodutivas estendem sua influência sobre todas as coisas, desde os instrumentos rigorosamente repressivos/materiais e as instituições jurídicas do Estado, até as teorizações ideológicas e políticas mais mediadas de sua raison d’être e de sua proclamada legitimidade (MÉSZÁROS, 2006, pp. 124-125)

A conclusão a que se chega é que este dualismo entre produção sistemática de mercadoria e as instituições do poder do estado perfaz um mesmo “campo histórico”; constitui uma mesma formação histórico-social, variando nas complexas e diversas modalidades em que esta se dá.

Compreendemos facilmente que, nesse sistema, sempre devem existir os dois pólos: do capital e do trabalho, do mercado e do Estado, do capitalismo e do socialismo, etc., não importa qual seja a roupagem histórica e que peso distinto esses pólos tenham em cada caso. A economia estatal de cunho soviético e o liberalismo econômico total (por exemplo, na doutrina de um Friedrich von Hayek ou de um Milton Friedman) constituem somente os extremos de todo um espectro de ideologias, de políticas econômicas e de formas de reprodução político-econômicas, que dizem respeito todos igualmente ao mesmo sistema de referência, isto é, à forma de mercadoria total da sociedade (KURZ, 1997, p. 93).

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É, ainda, uma característica peculiar da formação social produtora de mercadorias, em que esta forma totaliza socialmente as trocas sociais materiais e simbólicas, que ela se duplique em uma esfera funcional oponível. Ou seja, onde a forma mercadoria totaliza as relações de trocas sociais – isto é, no moderno sistema de produção de mercadorias – ele aparece apenas como um dos polos, como uma das esferas funcionais (KURZ, 2002). Dito de outro modo, “a totalidade sob a forma da mercadoria tem primeiro de mediar-se consigo mesma através de seu ‘tornar-se outro’ (o verdadeiro fundamento social para toda a construção hegeliana81)”. Em outras palavras, a totalidade social produtora de mercadorias é que cinde-se em duas como condição de possibilidade de sua própria existência, muito embora gere, de suas próprias características distintivas, a ilusão fetichista de que, em verdade, é apenas uma esfera social dentre outras no interior de uma matriz dual.

Toda sociedade baseada em relações fetichistas, isto é, em que uma “segunda natureza” social cega medeia as relações das pessoas para com a natureza e para consigo - sendo, na pré-modernidade, principalmente, as formas religiosas – produz “esquizofrenias estruturais” [strukturelle Spaltungsirresein], isto é, modos duais e contraditórios de

existência. Na modernidade produtora de mercadorias, entretanto, a esquizofrenia estrutural atinge uma forma muito mais pronunciada.

A esquizofrenia estrutural agora institucionalizada faz aparecer as esferas separadas na forma de pares antagónicos lógicos e institucionais, nos quais o nexo mediador se manifesta à superfície, sem deixar traço de sua génese. Do mesmo modo que a totalidade na forma de mercadoria se dissocia no antagonismo estrutural "indivíduo-sociedade", o espaço social no antagonismo "público-privado" e a vida quotidiana no antagonismo "trabalho- tempo livre", assim também o nexo funcional dessa totalidade se cinde no antagonismo "economia-política" (KURZ, 2002, p. 2).

Isto acaba tendo efeitos em cada indivíduo socializado, uma vez que cada um deles internaliza o aspecto esquizofrênico-estrutural desta formação social, sendo ao mesmo

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E aqui, não por acaso e uma vez mais, nos deparamos com Hegel como o filósofo que sistematizou os problemas institucionais estruturais da contemporaneidade, Cf. a nota 77 desta tese.

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tempo indivíduo cidadão-político-sujeito-de-direito quanto empresário-trabalhador- agente-econômico. Estas formas de consciência e vontade não permanecem apenas complementares. Por vezes são inteiramente antagônicas. Um exemplo dado por Kurz é emblemático a esse respeito: “O interesse no ganho constante de dinheiro é antagónico ao direito ou a determinados aspectos do direito, ao passo que o interesse do mesmo sujeito na maior segurança jurídica possível é antagónico ao ganho ilimitado de dinheiro” (2002, p. 3). Isso não anula, contudo, o fato de que o valor como “fato social total” – como o caracteriza Jappe, referindo-se ao conceito de Mauss – é que se bifurcou em uma

dualidade apenas para realizar-se a si mesmo como forma social universalizada.