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CAPÍTULO 2 – DIREITO E VALOR: ELEMENTOS DE CRÍTICA

2.6 Direito, circulação e produção

2.6.1 Bernard Edelman

Em 1973 Bernard Edelman, partindo de um confessado ponto de partida marxiano76, publicou em seu livro O Direito captado pela fotografia duas teses sobre a relação entre o direito e o capitalismo. Na primeira, ele asseverou: “O direito fixa e assegura a realização,

como um dado natural, da esfera da circulação” (EDELMAN, 1973, p. 106).

Na esfera da circulação tanto o possuidor de dinheiro quanto o possuidor de força de trabalho se encontram como sujeitos de troca mercantil. Na qualidade de sujeitos da troca, são equivalentes. As trocas serão regidas tão-somente pelos valores de troca representados pelo dinheiro e pela força de trabalho que têm a oferecer como valor de uso para o capitalista. Como já o dissera Marx:

A esfera da circulação ou do intercâmbio de mercadorias, dentro de cujos limites se movimentam compra e venda de força de trabalho, era de fato um verdadeiro éden dos direitos naturais do homem. O que aqui reina é unicamente Liberdade, Igualdade, Propriedade e Bentham. Liberdade! Pois comprador e vendedor de uma mercadoria, por exemplo, da força de trabalho, são determinados apenas por sua livre-vontade. Contratam como pessoas livres, juridicamente iguais. O contrato é o resultado final, no qual suas vontades se dão uma expressão jurídica em comum. Igualdade! Pois eles se relacionam um com o outro apenas como possuidores de mercadorias e trocam equivalente por equivalente. Propriedade! Pois cada um dispõe apenas sobre o seu. Bentham! Pois cada um dos dois só cuida de si mesmo. O único poder que os junta e leva a um relacionamento é o proveito próprio, a vantagem particular, os seus interesses privados. E justamente porque cada um só cuida de si e nenhum do outro, realizam todos, em

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Por este ponto de partida me refiro à tentativa de Edelman de “articular, no processo global do Capital, as categorias jurídicas” (EDELMAN, 1973, p. 103), tomando, ainda, o Pachukanis de A Teoria Geral do Direito e

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decorrência de uma harmonia preestabelecida das coisas ou sob os auspícios de uma previdência toda esperta, tão-somente a obra de sua vantagem mútua, do bem comum, do interesse geral (MARX, 1988, p. 293).

Para Marx a esfera da circulação é responsável por todas as fases nas quais os sujeitos de dinheiro (como capital) e força de trabalho se encontram por intermédio de contrato e, por conseguinte do direito. Mas não é na esfera de circulação, assim considerada, que encontraremos a explicação para a mais-valia e, portanto, pela razão de ser do valor e do capital como categoria socializadora universal. Há um elemento que se apresenta fora da esfera da circulação e que é imprescindível para que esta exista e se movimente. Trata-se do uso produtivo da força de trabalho que resulta na mercadoria que adiante se integrará na esfera do consumo. É a dependência produtiva e consumidora da força de trabalho em relação ao capital que torna possível a extração de mais-valia. E isso explica a enigmática afirmação de Marx: “Capital não pode, portanto, originar-se da circulação e, tampouco, pode não originar-se da circulação. Deve, ao mesmo tempo, originar-se e não se originar dela” (1988, p. 284). O capital não se origina na circulação: tomando-se exclusivamente esta, não se é possível explicar como o valor de troca, que passa de sujeito a sujeito, pode terminar maior no fim do que no início de cada ciclo – ou seja, não se pode explicar a existência da mais-valia. O capital se origina na circulação: sem esta passagem de sujeito a sujeito não é possível se realizar a extração de mais-valia, que ocorre em outro lugar, na esfera da produção. Portanto, o capital, ao mesmo tempo, tem e não tem origem na circulação.

Para a ideologia jurídica, diz-nos Edelman, tudo se passa como se a esfera da circulação fosse a única existente. O “direito toma a esfera da circulação como se esta fosse um dado natural” (1973, p. 107). Ao fazê-lo, o direito toma a liberdade subjetiva do mercado – trabalho livre e livre iniciativa – como o único horizonte possível das liberdades. Dado que a esfera da circulação não encerra a verdade completa do capitalismo, como o demonstrara Marx, o direito só realiza uma liberdade ilusória que se interverte em obrigação ao trabalho e em salvo-conduto para a exploração de mais-valia. E aqui a argumentação de Edelman atinge um ponto muito interessante. Ele escreve o seguinte:

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Poder-se-ia dizer que a função última da ideologia burguesa consiste na idealização das determinações da propriedade (liberdade/igualdade), isto é, as determinações objetivas do valor de troca. A base concreta de toda ideologia é o valor de troca. O que fez Hegel ao desenvolver a Ideia do direito se não dar uma expressão pura do movimento do valor? E o que é a “dialética” dos

Princípios da Filosofia do Direito de Hegel senão a expressão mais e

mais abstrata do valor? Pois, ao fim e ao cabo, a Ideia hegeliana de direito – ou, antes, do Espírito no direito – é a auto-realização do valor [valeur em atente d’elle-même] (1973, p. 111).

Um sistema de fundamentação racional do estado de direito moderno, que é o que se propõe Friedrich Hegel [1821] (1983), só pode resultar, ao fim e ao cabo, em uma apresentação criteriosa da auto-realização do próprio valor. Ao fundamentar em bases racionais o estado de direito, Hegel termina apresentando, involuntariamente, aquilo no qual o estado de direito se baseia e que se confunde com ele, a saber, o valor. Este insight seminal de Edelman77 aponta para o fato de que qualquer sistema de explicação e fundamentação do estado de direito moderno precisa tomar a esfera da circulação, e portanto, do valor de troca, como um dado natural, e assim, por conseguinte, tomar o valor ele próprio como um dado natural, como uma “segunda natureza” da sociedade.

A seguir, defende Edelman: “O Direito, assegurando e fixando a esfera da circulação

como um dado natural, torna possível a produção” (1973, p. 120).

Do mesmo modo que a circulação torna possível a produção e ambas tornam possível a realização dos ciclos do capital, ao assegurar e fixar a circulação, o direito torna possível também a produção. É por isso, ainda, que a doutrina jurídica pode recuar para tempos antigos a fim de encontrar institutos jurídicos que se assemelham aos da contemporaneidade. Figuras e traços da esfera da circulação, considerada isoladamente, já existiam em épocas e sociedades remotas. Entretanto, para usar uma expressão hegeliana, é apenas da sociedade capitalista que a esfera da circulação realiza seu próprio conceito, ou seja, realiza todas as potencialidades constantes na Ideia. E isso só se deu

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O escopo desta tese não permite desenvolver esta afirmação provocativa de Edelman em torno de Hegel. Pudemos fazer algumas observações sumárias neste sentido em outro trabalho, Cf. (NASCIMENTO J. , 2012, p. 104 e ss.).

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quando a atividade humana passou a “circular” mercantilmente, na forma de trabalho abstrato, atividade humana vendida e comprada para fins de autovalorização do valor.

A esfera da circulação, então, ao realizar-se plenamente no capitalismo, passa a tornar possível, ao mesmo tempo em que oculta, a esfera da produção. E deste modo também o faz o direito como forma. “A produção aparece e não aparece no Direito, assim como aparece e não aparece na circulação” (EDELMAN, 1973, p. 104). Como muito bem o caracterizou uma intérprete recente de Edelman:

A ideologia jurídica tem, como base, o valor de troca imposto aos sujeitos enquanto equivalentes vivos, que ideologicamente, caracterizam-se como senhores, quando nas relações de produção encontram-se como produtos. Portanto, produzir uma mercadoria equivale a produzir um sujeito respectivo para representá-lo na esfera da circulação (TISESCU, 2011, p. 89).

As teses de Edelman cumprem os propósitos do autor: avançam em relação ao ponto em que o problema foi deixado pelA Teoria Geral do Direito e Marxismo. E nesta altura é possível perceber o quão equivocada foi a posição de Nicos Poulantzas adotada em sua última obra O Estado, o Poder e o Socialismo de 1978. Para ele, tanto na teoria marxista do estado quanto na teoria marxista do direito a posição que o localiza a partir da aparência da esfera da circulação deveria ser reprovada, pois a especificidade do direito e do estado deveriam ser encontrados na “divisão social do trabalho e nas relações de produção” (POULANTZAS, 2000, p. 84). Ora, Pachukanis e Edelman na sua esteira, são tão “circulacionistas” quanto o próprio Marx o é. Ou seja, se eles encontram na circulação o decalque de onde compreendem o modo de funcionamento material e simbólico do direito fazem-no conscientes, como vimos, de que o capital se realiza e não se realiza, ao mesmo tempo, na esfera da circulação, que oculta ao mesmo tempo que realiza, a esfera da produção. Adotando uma posição onde este aspecto peculiar da exposição marxiana é

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obliterado em proveito de um dualismo, circulação ou produção, Poulantzas se mostra bem aquém do próprio Marx e de um sólido encaminhamento do problema78.