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CAPÍTULO 2 – DIREITO E VALOR: ELEMENTOS DE CRÍTICA

2.3 Desenvolvimentos marxistas do problema do direito e do valor

2.3.2 Georg Lukács

Responsável pela revitalização filosófica do marxismo no século XX, Georg Lukács, filósofo e crítico literário húngaro, é apontado como fundador de uma nova tradição de crítica. Sua tese principal, esboçada em seu legendário livro História e Consciência de

Classe (1923) era a de que:

Não é o predomínio de motivos econômicos que distingue de maneira decisiva o marxismo da ciência burguesa, mas o ponto de vista da totalidade. A categoria da totalidade, o domínio universal e determinante do todo sobre as partes constituem a essência do método que Marx recebeu de Hegel e transformou de maneira original no fundamento de uma ciência inteiramente nova.

Para em seguida concluir que: “Para o marxismo, em última análise, não há, portanto, uma ciência jurídica, uma economia política e uma história, etc. autônoma, mas somente uma ciência histórico-dialética, única e unitária do desenvolvimento da sociedade como totalidade” (LUKÁCS, 2003, pp. 31-32).

Em outro dos ensaios que compõem História e Consciência de Classe, quando trata do tema da reificação, Lukács aborda de passagem o direito no intuito de exemplificar, e desvelar com o exemplo, o funcionamento de uma estrutura social reificada no capitalismo moderno. Segundo ele, Max Weber teria acertado ao afirmar que a passagem do pré-capitalismo ao capitalismo tenha se dado, se observado a partir de seu interior, por intermédio da generalização das decisões feitas com base no cálculo. Se concordarmos com isso, concordaríamos também que tanto a administração e a justiça, que são partes

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articuladas da base produtiva, também precisariam operar a partir principalmente de bases calculáveis, previsíveis e passíveis de gerenciamento de “riscos” e de ganhos.

Neste contexto, os sistemas jurídicos modernos vão se afastando gradualmente dos antigos meio de administração e justiça primitivos, que se constituíam de práticas sobretudo subjetivas e empíricas, quando não ligadas a motivos mágicos religiosos. Tal processo guarda todas as analogias com o processo de substituição do artesanato pela produção industrial moderna.

Lukács também assinala neste ensaio a forma histórica pela qual os jusfilósofos conceberam o estatuto da autonomia do direito. Às portas da revolução, a burguesia estava diante de uma aristocracia nobiliárquica que fundamentava seus privilégios no poder para além do direito que emanava do soberano, onde a jurisprudência era diversificada e heterogênea, diferente a cada caso em que era solicitada. Para combatê-la, a Revolução Francesa, como modelo mais acabado de revolução burguesa, apelou para princípios mais racionais, pois universais, além de mais homogêneos. Segundo os princípios por estes almejados, não poderia o cidadão estar a qualquer momento diante do arbítrio de seus governantes. Como poderiam os revolucionários levar à prática tais princípios? Buscando substituir toda a legislação e as práticas judiciárias medievais calcadas na soberania não limitada pelo direito por normas universalmente válidas, que independem dos indivíduos concretos envolvidos, ou seja, normas que tenham caráter formal o mais próximo da perfeição abstrata, pois. Assim,

A luta pelo direito natural e o período revolucionário da classe burguesa partem justamente do princípio de que a igualdade formal e a universalidade do direito (sua racionalidade, portanto) estão em condição de determinar, ao mesmo tempo, seu conteúdo (LUKÁCS, 2003, p. 235).

Em outros termos, poderíamos lembrar que quando a burguesia buscava o poder político que ainda não detinha foi capaz de convencer as massas de camponeses, artesãos e outras camadas sociais não diretamente ligadas à sua causa, de que seus lemas de igualdade e liberdade eram para todos sem distinção. Foi assim que, vencidas as batalhas,

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estes lemas foram atirados em todas as legislações como princípios basilares. No período especificamente revolucionário, todavia, tais princípios estavam diretamente ligados à sua efetivação e não apenas a uma codificação abstrata. Fazia parte da própria consciência dos revolucionários que estes princípios universais deveriam ser codificados como um meio para a realização de seu fim, qual seja, a efetivação de seu conteúdo. No período subsequente, entretanto, com a subida da burguesia ao poder do estado por sobre os “arbítrios” das monarquias absolutistas, surgem intensas modificações na forma como os juristas e os novos detentores do poder político concebiam estes princípios. Todo o discurso universalista, então, muda de figura. Uma nova ciência jurídica surge no horizonte, reputando-se como detentora de todo o saber relativo às codificações universalistas da burguesia. E ela advogava para si tanto uma coerência sistêmica quanto uma autonomia nos procedimentos. Nos mais variados matizes e tendo as mais diversas peculiaridades este processo ocorreu em todas as partes onde, gradualmente, de êxito em êxito, as revoluções burguesas transformaram as sociedades tradicionais.

Assim Lukács descreve este momento:

Somente após a vitória ao menos parcial da burguesia, é que se manifesta nos dois campos uma concepção “crítica” e “histórica”, cuja essência pode ser resumida pela idéia de que o conteúdo do direito é algo puramente factual e não pode, portanto, ser compreendido pelas categorias formais do próprio direito (LUKÁCS, 2003, p. 235).

Mas a contribuição de Lukács nesta obra vai além de sua descrição da emergência do pensamento jurídico e político burguês. A questão da forma do valor da mercadoria e a questão do fetichismo, como “patologia social” (Krahl) dela decorrente, recebe um dos primeiros tratamentos sistemáticos no pensamento de Lukács. Nesta obra há uma densa interpretação do capitalismo e de suas contradições no plano objetivo e subjetivo a partir de uma leitura peculiar do fenômeno do fetichismo levantado por Marx em O Capital. Seu viés é preponderantemente o filosófico, diferente, como vimos, do de Rubin, mormente econômico-político. Como lembra o próprio Lukács, seu ponto de partida eram as consequências sociais, no plano objetivo, mas também subjetivo, do fenômeno do

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fetichismo da mercadoria e de sua universalização. Ele toma explicitamente como pressuposto a teoria marxiana do valor e do fetichismo para um estudo de suas consequências sociais na filosofia, na política e nas ciências. O ponto de partida de Lukács fica claro na seguinte passagem:

Não é de modo algum casual que as duas grandes obras da maturidade de Marx, que expõem o conjunto da sociedade capitalista e revelam seu caráter fundamental, comecem com a análise da mercadoria. Pois não há problema nessa etapa do desenvolvimento da humanidade que, em última análise, não se reporte a essa questão e cuja solução não tenha de ser buscada na solução do enigma da estrutura da mercadoria. Certamente, essa universalidade do problema só pode ser alcançada quando a formulação do problema atinge aquela amplitude e profundidade que possui nas análises do próprio Marx; quando o problema da mercadoria não aparece apenas como um problema isolado, tampouco como problema central da economia enquanto ciência particular, mas como o problema central e estrutural da sociedade capitalista em todas as suas manifestações vitais. Pois somente nesse caso pode-se descobrir na estrutura da relação mercantil o protótipo de todas as formas de objetividade e de todas as suas formas correspondentes de subjetividade na sociedade burguesa. (...)

Nosso objetivo é somente chamar a atenção – pressupondo as análises econômicas de Marx – para aqueles problemas fundamentais que resultam do caráter fetichista da mercadoria como forma de objetividade, de um lado, e do comportamento do sujeito submetido a ela, por outro (LUKÁCS, 2003, pp. 193-194).

Na percepção subjetiva e na consciência de classe o estado e o direito não poderiam aparecer senão como “estrutura de poder” que contêm uma inegável “existência empírica” (2003, pp. 472-473). Ou seja, não se pode, por um lado, conceder ao estado e ao direito o lugar ideológico segundo o qual estes se situam sobre as classes sociais antagônicas. Por outro, não se pode negar a realidade e a fator de força que estes exercem contra e a favor das pretensões do proletariado organizado, como ele o demonstra no ensaio Legalidade e Ilegalidade que compõe História e Consciência de

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De mais a mais, Lukács se afirma em um registro que pode ser visto em paralelo ao de Rubin. Ele desvenda os mecanismos estruturais e ideológicos segundo os quais as categorias valor, capital, estado e direito se tornaram parte uma “segunda natureza” categorial na socialização da modernidade49.