• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 2 – DIREITO E VALOR: ELEMENTOS DE CRÍTICA

2.5 O marxismo ocidental e a tese do primado da política

2.5.1 A Escola de Frankfurt

Se o debate sobre o assunto estava praticamente terminado na União Soviética a partir deste ponto59, no Ocidente o próximo tópico do problema que nos ocupa foi igualmente obscurecido, por palpáveis razões não só teóricas como históricas.

A tese que prosperaria em muitos círculos marxistas e de esquerda foi a defendida por Friedrich Pollock entre o final dos anos 30 e início dos 40, em especial nos artigos que ele

59

“O inteiro sabor da vida intelectual se submete a uma drástica mudança. Qualquer um que saiba russo pode notar esta mudança por si mesmo, bastando ler os artigos sobre temas sócio-econômicos em revistas em 1928 e os comparar, digamos, com os de 1932. Entre estas datas não apenas se tornou impossível a crítica séria, mas os artigos se tornaram progressivamente o veículo de afirmações propagandistas de sucesso e de denúncias de reais ou alegados desvios, assim como de [supostos] agentes de potências estrangeiras” (NOVE, 1989, p. 150).

70

escreveu para a conhecida Revista de Pesquisas Sociais do Instituto criado e mantido por filósofos como Max Horkheimer, Theodor Adorno e Herbert Marcuse e que depois ficou conhecido como “Escola de Frankfurt”.

Antes de qualquer coisa é preciso sublinhar a influência da experiência soviética de controle estatal da economia nas concepções formuladas por Pollock. Assim como defendiam quase todos os intelectuais e partidos ligados ao Comintern, o planejamento estatal era tomado como o nec plus ultra da crítica e da oposição prática ao capitalismo. A diferença desta posição, que tivemos oportunidade de analisar no Pachukanis de 1929, e a do Pollock nos final dos anos 30, era a ênfase dada por este último no caráter democrático deste estado planejador e interventor. Para Pollock não havia porque negar o conceito de “capitalismo de estado”, contanto que se lute organizadamente por sua democratização.

Para este autor “o mercado está deposto de suas funções de coordenar a produção e a distribuição. Estas funções foram tomadas por um sistema de controles diretos”; “Estes controles diretos” defendeu Pollock, “são investidos no estado que usa uma combinação de novos e velhos serviços” (1982, pp. 72-73)60.

A partir desta constatação, os campos possíveis seriam, segundo ele, dominados ou por uma versão “totalitária” de capitalismo de estado ou por uma versão democrática deste, a depender do fato deste controle ser exercido pelo “povo” ou a despeito deste, por uma elite “dominante”. Pollock assevera de diversas maneiras estes mesmos fatos: “o sistema de mercado é substituído por outra forma organizacional” (p. 74); “o capitalismo de estado substitui os métodos do mercado por uma nova configuração de regras” (p. 75); “os interesses por lucro tanto de indivíduos quanto de grupos ou quaisquer outros interesses especiais são estritamente subordinados a um plano geral ou o que quer que fique neste lugar” (p. 76); “desempenho do plano aplicado pelo poder do estado, de modo que nada essencial seja deixado para o funcionamento das leis do mercado ou outras “leis” econômicas” (p. 77), etc.

É evidente o fato de que o desenvolvimento do capitalismo industrial tenha alargado em grande medida as funções do estado – e consequentemente, do direito do estado.

71

Para Pollock, e a seguir, para muitos outros autores marxistas, entretanto, os meios diretivos políticos-estatais poderiam “domesticar” completa e inteiramente as vicissitudes das economias de mercado calcadas na livre iniciativa individual visando lucros. O planejamento estatal já era capaz de subordinar todas as formas econômicas do capitalismo às suas regulações, inclusive jurídicas. De sorte que o grande desafio, segundo ele, passava a ser a democratização do acesso do povo a estes meios diretivos.

Os maiores obstáculos para a forma democrática do capitalismo de estado são de natureza política e só podem ser superados por meios políticos. Se nossa tese estiver certa, a sociedade em seu nível atual pode superar as dificuldades do sistema de mercado pelo planejamento econômico (POLLOCK, 1982, pp. 93-94).

A primeira coisa a ser constatada aqui é que a tese proposta por Pollock, a exemplo do revisionismo bernsteiniano61, subestima completamente as categorias teórico-críticas marxianas de valor, capital, assim como seus derivados, as categorias sociais de estado e direito. No artigo citado, que o autor afirma “sumarizar” (POLLOCK, 1982, p. 71) o debate sobre o tema, ele sequer toca nestes tópicos62. Mas o resultado mais problemático das análises pollockianas é que nelas o “econômico” e o “político” são colocados em um quadro de referências em que aparecem estanques, absolutamente externos um ao outro. A recepção que as teses de Pollock tiveram na assim chamada “Escola de Frankfurt” é emblemática. Ela tem dois sentidos.

Por um lado, a expressão “capitalismo de estado” foi assimilada obliquamente por aqueles que objetivavam construir uma teoria de fundamentação e apologia da ordem jurídico-estatal como meio irrecorrível para a emancipação social ainda historicamente possível, tal como o fizeram os juristas desta escola, a saber, Franz Neumann (NEUMANN, 1969) e Otto Kirkheimer (KIRKHEIMER, 1967), (NEUMANN & KIRKHEIMER, 1996)63. Embora Neumann tenha criticado a formulação pollockiana de “capitalismo de estado”

61 Cf. item 2.1 desta tese.

62 Fugiria ao escopo desta tese realizar uma análise crítica vis-à-vis das teses de Pollock. Os melhores esforços nesse sentido que conhecemos são (BRICK & POSTONE, 1994) e (POSTONE, 2006, p. 96 e ss.). 63

Sobre a recepção deste artigo de Pollock na assim chamada “Escola de Frankfurt” cf. (WIGGERSHAUS, 2002, p. 308 e ss.)

72

estes autores eram firmes apoiadores do “primado da política” que estava implícita na tese do “capitalismo de estado”. Como bem o demonstrou Wiggershaus, se referindo a Neumann:

A análise que Neumann apresentava das relações entre partido, Estado, exército e economia era tal, que suas divergências com Pollock se reduziam, na maior parte, a questões de palavras. A evolução que Neumann traçava concordava totalmente com o que Pollock designava pela mal-escolhida expressão “capitalismo de estado” (2002, p. 317)64.

E por outro lado, a tese também influenciou decisivamente a crítica do “núcleo restrito” da Escola, Adorno, Horkheimer e Marcuse65 que, se afastando da crítica categorial baseada na crítica da economia política marxiana, passaram progressivamente a uma crítica da “dominação”, da “sociedade totalmente administrada” ou da “sociedade unidimensional”. Estas respectivas críticas, apesar de inúmeros pontos avançados e ainda pertinentes, assumiam implícita ou explicitamente a tese pollockiana do primado da política e do estado, ainda que em sinal negativo, como uma situação responsável pela estruturação quase “metafísica” da dominação do homem pelo homem66. Como já vimos na Introdução desta tese, os méritos desta crítica, apoiada na filosofia, nas ciências sociais e na psicanálise, auxiliaram nos esforços da releitura de Marx a partir da crítica da forma

64 Em um livro recente, Harry Dahms afirmou que a divergência entre Pollock e Neumann a respeito do conceito de capitalismo de estado ia além da “nomenclatura”. Entretanto, as divergências que ele apresenta são muito mais de grau do que de natureza. Para Neumann, que estudava o desenho societal da Alemanha sob o nacional-socialismo, os monopólios ainda eram importantes, senão decisivos, e o estado não havia conseguido superar, de fato, as contradições no nível econômico que eram colocadas pelos monopólios, daí Neumann preferir o termo “capitalismo monopolista totalitário” que o de “capitalismo de estado” de Pollock (DAHMS, 2011). Com efeito, para além dessa divergência de grau, a natureza da clivagem entre economia e política e o primado desta última permanecem em ambas as proposições teóricas, tanto que o mesmo Dahms admite que ambas foram admitidas pelo Instituto sob a batuta de Horkheimer por conta de suas similaridades.

65 “... depois de ler o manuscrito de Pollock, Horkheimer havia expressado mais uma vez seus velhos temores, mais ou menos inalterados. Ele aprovava a tese fundamental: a evolução econômica revelava, em toda parte, uma tendência para o capitalismo de estado, que representava uma forma econômica mais eficaz e adaptada a seu tempo do que o capitalismo privado, o que era viável mesmo sob uma forma não totalitária” (WIGGERSHAUS, 2002, p. 311).

66

Para duas análises da mútua dependência do “círculo restrito” da Escola de Franfkurt com as teses sobre o capitalismo de estado de Friedrich Pollock cf. (MARRAMAO, 1990, p. 230 e ss.) e (KELLNER, 1992, p. 55 e ss.)

73

valor no final dos anos 60, por intermédio de ex-alunos de Adorno e de Marcuse, como Hans-Jürgen Krahl, Hans-Georg Backhaus, Helmut Reichelt e Moishe Postone. O que merece destaque aqui é que a tese do primado da política não se coloca como uma refutação fundamentada do ponto de partida da crítica da economia política marxiana. Apesar de se colocarem no campo marxista, os filósofos da Escola de Frankfurt subestimaram em grande medida este tipo de problema categorial, o ponto de partida daqueles ex-alunos. E isto se sucedeu mormente pela aceitação mais ou menos tácita da tese do “primado da política”67.

Pollock aqui é uma figura mormente representativa de uma tradição, que como o defenderam Brick e Postone (1994), engloba todo o marxismo tradicional. Esta tradição centra a análise crítica do capitalismo primariamente nas esferas da distribuição, a saber, nas relações de mercado e propriedade e suas vicissitudes e em como estas são manejadas pelo estado. Paradoxalmente, a teoria marxista que havia sido uma das mais importantes bases intelectuais do movimento operário centraria seus esforços críticos essencialmente na esfera da distribuição e não na da produção:

No interior deste quadro teórico de referências a contradição marxiana entre as forças e as relações de produção é também interpretada primariamente a partir do aspecto da distribuição da riqueza social. A contradição é vista como aquela entre uma capacidade produtiva que pode potencialmente satisfazer as necessidades de consumo de todos os membros da sociedade e as relações sócio-econômicas que impedem que este potencial se realize. Entretanto, uma vez que este quadro de referências é

aceito, segue que o modo de produção industrial – aquele baseado no labor proletário – é visto como historicamente terminal (BRICK

& POSTONE, 1994, p. 257) (g. dos a.).

É este aspecto da tese pollockiana que é comungado com o marxismo ocidental e o liga mesmo com o marxismo soviético.

67

Conforme o demonstrou em detalhes um estudo recente, dentre estes filósofos o que mais demonstrou interesse na crítica da economia política marxiana foi Adorno, embora também para este a tese do primado da política tenha permanecido válida em alguma medida, Cf. (BRAUNSTEIN, 2011)

74

Porque o capitalismo é entendido essencialmente em termos de propriedade privada e de mercado – isto é, as categorias marxianas são consideradas apenas em termos de troca e circulação de mercadorias – o marxismo tradicional pode apresentar apenas uma crítica histórica do capitalismo liberal. Apenas para o capitalismo liberal as categorias marxianas

aparecem como categorias da totalidade social que desvendam

um apontar dinâmico para a possível negação histórica do mercado e da propriedade privada (BRICK & POSTONE, 1994, pp. 257-258).

Ora, neste quadro teórico de referências, na medida em que se trata de um planejamento estatal capaz de relativizar as vicissitudes da propriedade privada e da atividade dos mercados privadamente controlados, perde-se o caráter histórico da crítica e as categorias marxianas poderiam ser pretensamente “superadas” no planejamento estatal. Este modo de colocar o problema instaura uma clivagem insuperável entre o econômico e o político, obliterando o fato de que as categorias elementares da crítica marxiana não são apenas econômicas neste sentido68, mas se referem sempre à formação da totalidade social. A tese do “primado da política” assim como a de qualquer “primado da economia” só pode tomar a distribuição como pedra de toque. Com isso o resultado não pode deixar de ser uma concepção estática, incapaz de captar a dinâmica histórica das sociedades produtoras de mercadorias, como o mostraram claramente Postone e Brick:

A teoria do primado da política que sucedeu a primazia do econômico deriva da visão básica segundo a qual o desenvolvimento do capitalismo que deu azo à possibilidade do socialismo, é de um modo de distribuição a outro mediado historicamente pelo desenvolvimento da produção industrial em larga escala. A distribuição “automática” expressa pela sua interpretação da Lei do Valor pavimenta o caminho para uma na qual o capital e o trabalho, bens e serviços sejam politicamente organizados e administrados pelo estado. Em ambas as fases o momento da distribuição é considerado de um modo unilateral e de um modo exagerado como o determinante da totalidade social. O problema é que, como Pollock se deu conta, o modo planejado de distribuição em si provou não ser o garantidor de uma “boa

75

sociedade”; poderia ter levado e levou a uma grande opressão e tirania. Uma vez que para Pollock, todavia, a dialética do desenvolvimento econômico tenha levado percorrido seu curso, o único possível locus de mudança deveria ser no interior da esfera política. A ausência de uma dinâmica imanente requeria uma apresentação nos termos de modelos alternativos estáticos (BRICK & POSTONE, 1994, p. 258)

Como bem resumiu Harry Dahms (2011, p. 29) a admissão da tese pollockiana redunda não em uma nova crítica da economia política, mas em um afastamento dos problemas desta: não se observa mais as contradições internas do desenvolvimento da produção capitalista. Ao invés disso, a atenção vai toda para a relação entre economia e estado, ambos vistos de um modo externo um em relação ao outro. Como vimos na análise de Postone, isso resulta em uma crítica da sociedade capitalista que perde muito a dinâmica de seu objeto.