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CAPÍTULO 4 – A CRISE DO VALOR E DO DIREITO

4.2 O valor em crise e o estado de exceção

A mais importante expressão jurídico-política das crises da socialização pelo valor é o estado de exceção – muito embora nem todo estado de exceção seja causado por uma crise da socialização pelo valor. Franz Schandl, em um ensaio, escreveu em linhas gerais a tendência excepcional das instituições e dos indivíduos em situação de crise prolongada de valorização de capital. Sua tese se coaduna com a nossa linha argumentativa:

A forma civilizada foi o apelo do mercado ao Estado, sempre sob a condição de que o dinheiro público ajudasse as forças de mercado a avançar. Os argumentos a esse respeito (posição da empresa, postos de trabalho) podem ser encontrados, de fato, com mais frequência do que os fundos necessários para tal. A forma barbarizada é o salvamento dos negócios sem condições de sobrevivência por meio do afastamento em relação às práticas empresariais sérias, o que significa: acordos ilegais, apropriação indébita e, até mesmo, crimes elementares. A lei da força dessa barbarização secundária poderia ser esta (e o mesmo vale também para o direito, a política, a democracia, a liberdade etc.): se o valor

perde poder [Gewalt], a violência [Gewalt] ganha valor (SCHANDL,

2009, p. 154).

Em um notório estudo sobre o tema, Giorgio Agamben (2004) explorou as raízes e as diferentes reaparições do estado de exceção como um dispositivo que subjaz ao próprio estado de direito. Este dispositivo é controlado pela dualidade entre o elemento jurídico e normativo, que ele denomina potestas – empregando um termo romano – e outro elemento metajurídico e anômico por excelência, que ele denomina auctoritas. Quando estes elementos são distintos e, ainda que por uma ficção, se põem como externos, o dispositivo do estado de exceção pode ser controlado. Mas quando estes dois elementos

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se unificam em uma mesma figura jurídico-política, temos a edificação de uma máquina letal – cujo exemplo extremo encontramos nos estados fascistas – pois a regra e a exceção são ditadas pela mesma voz, tornando a exceção a regra permanente.

Não se trata de uma descrição homológica ao que sucede com a socialização pelo valor? Sua crise, que coincide com sua realização histórica, não leva a uma suspensão de sua validade normal justamente para que ela perdure? Senão vejamos:

O estado de exceção, hoje, atingiu exatamente seu máximo desdobramento planetário. O aspecto normativo do direito pode ser, assim, impunemente eliminado e contestado por uma violência governamental que, ao ignorar no âmbito externo o direito internacional e produzir no âmbito interno um estado de exceção permanente, pretende, no entanto, ainda aplicar o direito (AGAMBEN, 2004, p. 131).

O filósofo brasileiro Paulo Eduardo Arantes percebeu mais claramente esta homologia em operação na contemporaneidade:

Seria então o caso de dizer que se passa com a lei do valor o mesmo que se passa hoje com a Lei num regime de urgência permanente: assim como o ordenamento jurídico vigora porém suspenso num limbo jurídico de redefinições inconclusivas e ad

hoc, a força de trabalho continua atrelada à produção de valor e

mais-valia ainda que não se possa mais medir a integralidade do resultado produzido em tempo de trabalho socialmente necessário. Numa palavra, a lei do valor continua vigorando embora tenha perdido sua base objetiva, desajuste no qual exprime por outro lado e não menos contraditoriamente algo como o fracasso da tentativa capitalista de eliminar o trabalho vivo do processo de produção. Por este novo trilho da subsunção total de uma força de trabalho qualitativamente insubsumível, “o cara inteiro”, a vida inteira transformada em trabalho, as reviravoltas entre a exceção e a norma não têm fim. Em suma, quando a cisão entre produção material e produção de valor se instaura de vez, sem no entanto abolir o capital – o capital em fuga precisa perder o lastro do trabalho ao mesmo tempo em que rifa a sobrevida dos sujeitos monetários sem-trabalho –, pode-se dizer que a subsunção assumiu a forma mesma da exceção (2008, p. 13).

O mesmo Arantes já havia descrito a situação global do capitalismo contemporâneo como um “estado de sítio” em um ensaio, pois este se definiria por sua constante criação

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destruidora da ordem jurídica, isto é, por uma ordem jurídica que cada vez mais se abre para sua própria violação por parte do aparato de estado. Este novo momento global, ao mesmo tempo legiferante e anômico, encontraria no Brasil vastos precedentes, pois aqui se deu um espaço onde o “estado de exceção permanente” há muito tempo é vigente. Sendo assim, produziu-se nos espaços periféricos coloniais e pós-coloniais uma “espécie de verdade e objeção viva ao oco da normalidade metropolitana” (ARANTES, 2007, p. 163). No Brasil, a democratização também significou um recrudescimento da violência urbana em conjunto com a criminalização da pobreza e de minorias marginalizadas para quem o aparato de estado não reserva o devido processo legal em sua conduta cotidiana144.

Em comentário ao ensaio de Arantes, Laymert Garcia dos Santos sintetiza do seguinte modo seu diagnóstico:

Tudo se passa como se tivéssemos entrado em uma fase em que, por um lado, o capitalismo precisasse reciclar as velhas práticas imperialistas do passado e, por outro lado, não pudesse mais pretender universalizar o estado democrático de direito, em crise tanto na periferia distante quanto nas periferias do centro, porque agora de trata de universalizar a exceção. Assim, o estado de sítio como estado do mundo se configura não só como a exceção permanente a que nós, da periferia, estávamos habituados, mas também, e principalmente, como exceção permanente à regra que até então estávamos acostumados a toma como parâmetro (2007, p. 13)

No plano internacional, Philipe Sands demonstrou, com base em extenso material empírico, a construção/violação de normas e tratados internacionais como a regra excessiva e permanente que parte nos últimos anos das decisões de Washington e de Londres (SANDS, 2005). Tanto no plano da “segurança” quanto no plano geopolítico e econômico, Robert Kurz também já apontou fartamente para a modernidade produtora de mercadorias como fonte inelutável de um estado de emergência que, de exceção,

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tornou-se regra (KURZ, 2003b, p. 320 e ss.), rompendo cada vez mais constantemente com a ordem jurídica surgida em seu próprio bojo.