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A avaliação por contradição e a sua pseudoconcreticidade

CAPÍTULO I – AVALIAÇÃO: VELHAS E NOVAS CONTRADIÇÕES

1.3 A avaliação por contradição e a sua pseudoconcreticidade

A avaliação não é campo neutro, mas marcada por relações de forças, disputas e poder. É categoria contraditória que pode servir a diferentes funções e interesses, podendo tanto classificar, selecionar, punir, perpetuar diferença e premiar, quanto promover justiça, garantir a aprendizagem efetiva de todos, orientar e melhorar o processo ou objeto avaliado, entre outras atribuições que se complementam ou se confrontam de acordo com a visão que se tem acerca da educação. Como trabalhamos no início deste capítulo, a avaliação não se limita à dimensão técnica (fórmulas, fiabilidade do instrumento etc.) e, embora esta seja parte importante, há fatores ideológicos, políticos, culturais e sociais em jogo, visões distintas em disputa que orientam a função e o significado da avaliação.

Nas palavras de Dias Sobrinho (1996, p.18), é necessário entender que o “[...] objeto, os objetivos e os processos de avaliação são socialmente construídos”, assim

mesmo as informações tidas como objetivas “passam por um processo de escolha, seleção, organização, portanto, de interpretação”.

Segundo Sordi e Ludke (2009, p.315), a forma:

[...] de entender a avaliação e se acostumar com sua feição classificatória e de vê-la como um ato de comunicação com ares de neutralidade, no qual alguém assume a prerrogativa de dizer o quanto vale o trabalho do outro, sem que a este outro seja dada a oportunidade de se manifestar sobre o processo vivido e suas eventuais idiossincrasias, acaba por esvair desta prática o seu sentido formativo. Isso interfere no imaginário social que associa a avaliação a práticas repetidas de exames externos que geram medidas, que viram notas que se transformam em signos que se distribuem em mapas que permitem comparar, selecionar e, eventualmente, excluir pessoas/instituições.

Na análise da avaliação externa, Assunção (2013, p.26) afirma “[...] que há distorções não só no conceito de avaliação construído a partir dos anos 1990, bem como no pragmatismo de sua virtuosidade”, quando se delega a ela “[...] poderes de mando junto à opinião pública, e demais setores da sociedade, redunda em produzir a sua própria mitificação”. Para essa autora:

A política de avaliação do Brasil se apresenta sob a forma mitificada. Se, se apresentasse claramente como forma de culminância para atender os interesses de mercado (da classe dominante), não teria nenhuma representação na sociedade ou encontraria muita resistência por parte daquele que não detêm o poder. O Ideb é uma forma necessária de manifestação não só da política de avaliação, mas do Estado Regulador/Avaliador: não só o Ideb (aparência) depende desse modelo de política de avaliação (essência), mas o seu contrário também. Ou seja, o ato de mitificar é socialmente necessário para a própria reprodução do mudo de produção capitalista (ASSUNÇÃO, 2013, p.31).

Nesses termos, a avaliação mitificada como elemento necessário à lógica capitalista faz dela um artifício importante nas políticas de cunho neoliberal (como analisaremos no próximo capítulo) das últimas décadas. É preciso olhar e compreender a avaliação fenomênica e a sua essência que, ao mesmo tempo, se manifesta naquele fenômeno e nele se esconde. Esse mundo da pseudoconcreticidade, no qual tais características se relacionam, é um mundo do claro-escuro, e o seu elemento próprio é o duplo sentido (KOSIK, 2010, p.15).

É tangencial, ao longo do trabalho, o entendimento de que a avaliação deve assumir um caráter emancipatório, sendo que as orientações presentes tendem a colocá-

la a serviço dos interesses econômicos do mercado. Contraditoriamente, é necessário analisar a sua pseudoconcreticidade que, para Kosik (2010, p.15), “[...] envolve o complexo dos fenômenos que povoam o ambiente cotidiano e a atmosfera da vida humana, que, com a sua regularidade, imediatas e evidentes, penetram na consciência dos indivíduos”. Nesse sentido, deve-se entender o que tem norteado a avaliação em larga escala e como essa vertente se apoia em discursos e práticas para se legitimar em nossas consciências.

A pseudoconcreticidade, segundo Kosik (2010), envolve o mundo dos

fenômenos externos, o do tráfico e da manipulação, o das representações comuns e o dos objetos fixados. Ainda, o mundo do tráfico e da manipulação envolve a práxis fetichizada dos homens, ou seja, “[...] aquilo que em determinados momentos históricos se apresenta como ‘impersonalidade’ ou ‘objetividade’ da práxis, e é apresentado por uma falsa consciência como a mais própria praticidade da práxis, é ao contrário apenas a práxis como manipulação” (Ibidem, p.225), o que esta associa ao mundo dos

fenômenos externos, que permanecem na aparência e se desenvolvem na superfície dos processos realmente essenciais. Nesse sentido, a pseudoconcreticidade funda-se no

mundo das representações comuns, que são projeções dos fenômenos externos na consciência dos homens, produto da práxis fetichizada. Por fim, o mundo como objetos

fixados dá a impressão de as “coisas” serem condições naturais, não sendo imediatamente reconhecíveis como resultados da atividade social dos homens. Essa naturalização tenta ofuscar a essência do fenômeno.

No âmbito da categoria “avaliação em larga escala”, a pseudoconcreticidade reveste-se da noção de cientificidade. Como sintetizamos ao longo deste capítulo, o campo da técnica é posto em destaque e assume a aparência de neutralidade, objetividade, transparência e apolicitidade – tal forma ideológica da avaliação interpela os indivíduos e busca legitimar a sua visão de mundo. Nas palavras de Luckesi (1995), o que está em jogo são os fortes interesses de classe “mascarados” e que escondem os propósitos que orientam a avaliação, a qual reproduz a exclusão e promove a conservação do status quo.

Esse processo é encoberto pelo princípio meritocrático que, na lógica liberal, justifica as diferenças presentes nos resultados da avaliação classificatória em função dos esforços individuais e/ou na aparência do “dom”. Segundo Bourdieu (1998, p.220), é uma “[...] responsabilização individual que leva a ‘repreender a vítima’”; por

conseguinte, a aparente igualdade entre os sujeitos, garantida em lei, avaliza resultados distintos que são atribuídos aos próprios indivíduos – enquanto escamoteia a sua essência excludente e reprodutora, dá legitimidade às diferenças sociais; assim, “parece” haver apenas um paradigma possível, o da avaliação quantitativa para a classificação. Enfrentar esse mundo “dado” de objetos fixados no campo da avaliação é muito complexo, haja vista que ela se estrutura e, ao mesmo tempo, fundamenta uma organização social capitalista competitiva. Essas representações comuns limitam as possibilidades de outras formas de avaliar.

A avaliação passa a ser artificializada, deixa de ser parte do processo educativo e assume um fim em si mesmo; nesse nexo não se estuda para a aprendizagem, mas sim para a prova, e no mesmo viés, ao nível da avaliação em larga escala, a escola passa a se preparar para os testes estandardizados.

Destarte, ao não trazer para o debate as diferenças sociais, as desigualdades, os processos históricos de discriminação de grupos e regiões do país, os testes estandardizados naturalizam a diferença entre escolas públicas em que cada uma acaba por ser responsável pelo seu sucesso ou fracasso; além disso, eles inflamam no interior de tais instituições lógicas do mercado. Contudo, dialeticamente, há fendas e possibilidades no processo de avaliação em curso, como analisamos especialmente no diálogo com a realidade pesquisada. Como defendemos no presente trabalho, a avaliação externa emancipatória é fundamental e deve ser base para uma tomada de decisão sobre as políticas públicas necessárias na construção e consolidação de uma educação comprometida com a formação de relações democráticas e com a justiça social no Brasil.

CAPÍTULO II – ESTADO, POLÍTICAS DE AVALIAÇÃO E O TRABALHO