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A balança da esperança

No documento brunoleonardocunha (páginas 112-115)

6 ' O papel do sentimento moral em Sonhos

9. A balança da esperança

A conclusão teórica do conjunto das considerações da primeira parte inicia-se com uma analogia entre as balanças da justiça e aquelas que movem as razões de nosso entendimento. As balanças da justiça, que são “uma medida da ação” “de acordo com leis civis” (CE, 1: 336; AA, 2: 349), mostram-se parciais quando uma desmedida é observada entre suas mercadorias e pesos. A parcialidade da balança de nosso entendimento é descoberta pelo mesmo procedimento, a saber, pela desmedida dos pesos. Esta parcialidade, todavia, não pode ser descoberta através da pesagem dos juízos filosóficos em geral. Eles jamais alcançam um resultado unânime, não sendo possível que um braço da balança pese mais que o outro. Isso significa dizer que não existe uma verdade irrefutável dentro do pensamento filosófico. Kant mostra-se consciente disso. Ele diz: “Eu erradiquei toda dedicação cega de dentro da minha alma [...] nada me é venerável, a não ser aquilo que ocupa seu lugar pelo caminho da sinceridade em um ânimo tranqüilo e aberto a todas as razões [...]”

(CE, 1: 336; AA, 2: 349). No que concerne aos juízos da razão teórica, a balança do entendimento geralmente é imparcial. “O juízo daquele que refuta minhas ações é meu juízo, depois de tê-lo pesado contra o prato do amor próprio e em seguida contra minhas supostas razões e encontrado nele uma maior consistência” (CE, 1: 336; AA, 2: 349). Kant reconhece que para colocar os conceitos em seus devidos lugares é necessária uma atividade intersubjetiva calcada na comparação entre juízos distintos. Todavia, devemos reconhecer, segundo ele, que a balança do entendimento não é completamente imparcial. Ela apresenta alguma desmedida no braço “que leva a inscrição: esperança no futuro” (CE, 1: 337; AA, 2: 349). Este braço possui uma vantagem mecânica que, mesmo sem o devido peso, sobrepuja as razões de peso maior que se encontram na balança do outro lado. Desse modo, Kant admite: “Agora eu confesso que todas as histórias sobre a aparição de almas defuntas ou de influxos de espíritos e todas as teorias sobre a suposta natureza de seres espirituais e sua conexão conosco só pesam sensivelmente no prato da esperança, parecendo, ao contrário, consistir de puro vento no prato da especulação” (CE, 1: 337; AA, 2: 350).

Mas, esta desmedida não se constitui necessariamente como um problema. Nas palavras de Kant: “Esta é a única incorreção [Unrichtigkeit] que não posso eliminar e que tampouco quero eliminar jamais”. Se a ciência não é capaz de abarcar certas questões, o caminho correto para tratá-las está em assumi-las como “uma inclinação prévia e resoluta” (CE, 1: 337; AA, 2: 350). O problema do espírito deve ser assumido como uma experiência imediata em detrimento da auto-ilusão e da invencionice das hipóteses teóricas ou das pretensas experiências sensíveis do Além.

Como Kant observa, o prato da esperança nos conduz à inclinação e justifica a credibilidade que existe em relação às histórias de espírito. A esperança faz nascer as primeiras ilusões que enganam os sentidos em sombras noturnas e figuras ambíguas de fantasmas, proporcionando a ocasião para a concepção do espírito como idéia racional e doutrina filosófica. Observa-se que tanto as histórias de espíritos quanto as doutrinas filosóficas caminham na mesma direção. Elas são marcadas pela inclinação comum que pende à verificação de como “o espírito do homem sai deste mundo” (CE, 1: 338; AA, 2: 350). Segundo Kant, isto pode ser observado em diversas culturas. Por isso, “o símbolo dos antigos egípcios para a alma era uma borboleta, e a designação grega significava justamente a mesma coisa. Vê-se facilmente que a esperança, que faz da morte apenas uma transformação, abre espaço para tal idéia com todos os seus sinais” (CE, 1: 338; AA, 2: 351). O que se observa é que a razão impulsiona-se para os assuntos do outro mundo. Provavelmente, este seria seu

destino, se ela fosse mais iluminada e extensa.93 Contudo, Kant está ciente de que nossa razão é limitada. Não é possível a ela alcançar a compreensão sobre as misteriosas questões que envolvem nosso espírito. Sobre este aspecto, ela não está capacitada a saber, “nem sequer como ele está presente neste mundo” (CE, 1: 338; AA, 2: 351). Sendo assim, Kant se conforma “em ser igualmente ignorante em vista do estado futuro” (CE, 1: 338; AA, 2: 351) de nossa alma. Esta mesma ignorância, contudo, não permite um completo ceticismo. Se cada uma destas histórias podem ser postas em dúvida individualmente, é preciso reconhecer que todas juntas constituem um peso a se considerar. Por isso, nas palavras de Kant: “Essa mesma ignorância também me compele a não ousar negar inteiramente toda a verdade nas histórias de espíritos” (CE, 1: 338; AA, 2: 351). O peso especial da balança da esperança é um motivo mais do que suficiente para justificar a seriedade e a indecisão diante das muitas histórias estranhas dessa espécie.

Se a veracidade destas histórias não pode ser comprovada, pelo menos elas nos indicam o limite de nossa faculdade cognitiva. A conclusão teórica de Kant, em seu desfecho, sublinha a necessidade de traçarmos os limites de nosso conhecimento. Nosso entendimento está capacitado a investigar, de maneira profunda, talvez, de forma inesgotável, os objetos da natureza. Contudo, sobre “a doutrina acerca de seres espirituais a situação é bem outra. Ela pode ser completa, mas em sentido negativo, na medida em que fixa com segurança os limites de nossa compreensão [...]”, pois, sobre ela, “não se encontra para tanto nenhum dado no conjunto de nossas sensações”. Por isso, “a natureza espiritual, que não se conhece, mas apenas conjectura, nunca poderá ser pensada positivamente” (CE, 1: 339; AA, 2: 351-352). Portanto, a pneumatologia, ou a doutrina dos princípios espirituais, tal como almejada pela filosofia, “pode ser chamada uma doutrina de sua necessária ignorância [...]” (CE, 1: 339; AA, 2: 352).

Kant acredita que suas considerações encerram um vasto capítulo da metafísica. Se a argumentação foi bem aproveitada pelo leitor, pode-se dizer que completa toda compreensão filosófica sobre seres espirituais. Mas, qual é a dimensão total da conclusão teórica? Estabelecer os limites da razão? É possível concordar, mas deve-se reconhecer que existe outra dimensão subjacente. É notável que Kant não sublinha somente a necessidade de uma

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Kant apresenta uma hipótese mais completa sobre este assunto na Dialética da Razão Pura, o quarto capítulo da primeira Crítica. Kant percebe que existe uma tendência de nossa razão rumo à totalidade. Assim, a razão formula os conceitos sobre o incondicionado, a saber, as idéias de Deus, alma e mundo. No entanto, sérios problemas manifestam-se quando se atribui a estes conceitos o status constitutivo de conhecimento. Tais conceitos não são elementos constitutivos. Mas, se não valem para a consciência enquanto dados epistemológicos, são fundamentais para seu funcionamento enquanto conceitos regulativos, pois a razão tende ao conceito daquilo que é perfeito para tomá-lo como base.

investigação dentro dos limites da natureza. Como Zammito, de modo pertinente, sugere, à medida que Kant limpa sua alma de preconceitos e envereda pelo caminho da sinceridade em um ânimo tranqüilo e aberto a todas as razões, ele nos dá um testemunho “mais religioso em sua valência do que científico” (ZAMMITO, 2002, p.207). O método das balanças da razão, segundo Palmquist (1989), indica-nos uma virada crítica representada na subordinação do âmbito especulativo ao da fé prática (p.79). Kant deixa subentendido que nossa ignorância especulativa não invalida a idéia de que as concepções que nascem da esperança são válidas. Em outras palavras: Kant acredita que nossa experiência imediata pode proporcionar uma forte certeza existencial94 , determinante no tocante ao nosso agir, que não pode ser provada racionalmente.

10.

Os traços da nova concepção de metafísica: Os limites do

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