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A indicação de uma fundamentação positiva para a metafísica

No documento brunoleonardocunha (páginas 93-96)

CAPÍTULO 3: SONHOS E AS INDICAÇÕES DE UMA NOVA FUNDAMENTAÇÃO DA METAFÍSICA E DA RELIGIÃO

4. A indicação de uma fundamentação positiva para a metafísica

Ao término desta apresentação do mundo espiritual como dimensão moral, Kant traz de volta a discussão sobre a suposta possibilidade de influxos espirituais dentro dos fenômenos do mundo sensível e retoma o tom cético do debate. Diz ele: “Retornamos com nossa consideração ao caminho anterior” (CE, 1: 324; AA, 2: 337). Mesmo sendo conduzido pelo ceticismo, Kant não deseja suprimir imediatamente a discussão. Ele supõe: Quem sabe a comunicação espiritual não desperte representações analógicas em nossos sentidos, que não representam os espíritos em si, mas seus símbolos?88. Este tipo de comunicação só poderia acontecer com “pessoas cujos órgãos possuem um grau excepcional de sensibilidade [...]” (CE, 1: 327; AA, 2: 340). Nesse caso, porém, as manifestações espirituais estariam conjugadas com as ilusões da imaginação, misturando deslumbramento com verdade. Por

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Para tornar compreensível esta afirmação, Kant faz uma comparação entre os conceitos racionais superiores de nossa mente e os supostos conceitos espirituais produzidos por influxos. Ele diz: “Podemos tornar compreensível a possibilidade disso considerando como nossos conceitos racionais superiores, que se aproximam bastante dos espirituais, normalmente adquirem como que uma roupagem corporal para se apresentar com clareza. Por isso as propriedades morais da divindade são representadas sob as representações da ira, do ciúme, da misericórdia, da vingança etc.: [...] o geômetra representa o tempo através de uma linha, apesar de espaço e tempo corresponderem apenas em relações [...]. Por isso, não é improvável que sensações poderiam passar para a consciência, se elas excitam fantasias com elas aparentadas. Desse modo, idéias comunicadas por um influxo espiritual se travestiriam nos sinais daquela linguagem que o homem usa habitualmente [...]”(CE, 1: 326-327; AA, 2: 339).

isso, essas experiências seriam triviais, sem utilidade, pois a sensação espiritual estaria entretecida na “fantasmagoria da imaginação [Hirngespinst der Einbildung]” (CE, 1: 327; AA, 2: 340). Não seria possível uma distinção entre realidade e loucura. Kant utiliza-se desse argumento para basear sua conclusão de que o estado corpóreo do homem não é compatível com qualquer tipo de manifestação do mundo dos espíritos. Se existe uma comunidade espiritual da qual somos membros, não é possível estarmos consciente de suas representações em nosso mundo.

No capítulo que se segue, Kant promove a recusa de toda a especulação sobre o mundo espiritual que havia empreendido no Capítulo 2. Ele diz: são “perfeitamente dispensáveis as pressuposições profundas do capítulo anterior” (CE, 1: 335; AA, 2: 347). Mas, essa recusa é sincera? É importante sublinhar novamente a íntima confidência que Kant nos apresenta. Ele admite que o seu destino e o da metafísica estão entrelaçados. Eis suas palavras: “A metafísica, pela qual é meu destino estar apaixonado [...]” (CE, 1: 354; AA, 2: 367). Assim, o amor não nos conduz a transgressões? Devemos admitir que não existe uma negação sincera aqui. Com a insistência de um apaixonado, Kant vai vislumbrar o além mesmo quando afirma não poder fazê-lo (ZAMMITO, 2002, p.198). Desse modo, reconhece a impossibilidade da metafísica em suas bases tradicionais, mas sugere um novo modo de pensá-la.

A procedência desta hipótese confirma-se no mundo espiritual. A partir de sua apresentação, reconhecemos muito do que estaria no sistema elaborado da metafísica da moral. Isso sugere, como defende Schmucker (1964), que o segundo capítulo de Sonhos não apresenta idéias que foram trazidas somente com a mera função especulativa, para “serem repudiadas depois como uma piada teórica. Isto não é sátira. São insights duramente conquistados sobre a essência da experiência ética humana” (p.156). Kant apresenta-nos uma elaboração do esquema de filosofia moral que já havia sido cogitado em Bemerkungen. Ele nos dá uma antecipação de seu pensamento sobre “os primeiros princípios metafísicos da filosofia moral” (p.156). A carta escrita para Lambert, em dezembro de 1765, fornece-nos boas indicações de que Kant trabalhava com esse tema nesta época. Diz Kant a Lambert:

Meu problema é este. Eu noto em meu trabalho que, embora eu tenha muitos exemplos de juízos errôneos para ilustrar minhas teses sobre os erros de procedimento, faltam-me exemplos para mostrar em concreto como o próprio procedimento deve ser. Portanto, a fim de evitar a acusação de que eu estou meramente esboçando um novo esquema filosófico, eu devo primeiro publicar alguns ensaios menores com o conteúdo que eu tenho trabalhado. Os primeiros serão A Fundamentação Metafísica da Filosofia Natural e A Fundamentação

Henrich (1963) e Schmucker (1964) acreditam que Kant, em 1765, já havia escrito as duas primeiras partes daquilo que viria a ser a Fundamentação da Metafísica dos Costumes em 1785. Mas, se isso é verdade, por que existe tão pouco sobre ética nos escritos deste período? Não fica claro o motivo da omissão de Kant sobre o tema moral, uma vez que havia feito progressos nesse assunto. Zammito (2002), usando uma terminologia da maturidade crítica, levanta a questão: “como poderia Kant ter se restringido ao uso privado” (p.180) da razão, quando deveria tornar pública suas reflexões nesse sentido?89 É plausível, como a perspectiva tradicional sugere, que não fosse possível fundar a filosofia prática antes da teórica. Um detalhe na carta para Lambert chama-nos a atenção para este fato. Nota-se que a citação de Kant sobre a obra concernente aos fundamentos da filosofia natural antecede a obra sobre filosofia prática. Se este é um argumento pouco convincente, Velkley (1989, p.5) encontra, nas Reflexões de 1769, uma revelação mais explícita. Diz Kant: “A ciência prática determina o valor da teórica... mas em execução a ciência teórica deve vir primeiro” (AA, 19:110). Ademais, o sistema crítico é a prova maior disso. Para o pensamento crítico, “O status epistemológico de nossa experiência de liberdade demanda uma resolução teórica antes que a realidade da liberdade possa ser articulada” (ZAMMITO, 2002, p.180). Como observamos no prefácio da segunda Crítica, o conceito de liberdade é uma colocação da razão teórica, que adquire realidade objetiva através da razão prática90.

A escassez de publicações sobre o tema da ética neste período não elimina a plausibilidade da hipótese que apresentamos. Podemos supor que o mundo espiritual de Sonhos representa a gênese da metafísica da moral devido a dois aspectos fundamentais: em primeira instância, porque apresenta a elaboração da noção de vontade pura ou autônoma, segundo a qual as preocupações essenciais da ética “estão escoradas e expressas pelo argumento metafísico” (VETÖ, 2005, p. 204). Em segunda instância, porque apresenta a idéia de comunidade moral organizada e determinada por leis inteligíveis e auto-suficientes. Algo muito próximo do que seria posteriormente chamado de reino dos fins na filosofia crítica. Apresentaremos algumas evidências sobre essa aproximação.

89 Kant fala sobre o uso prático e privado da razão em seu ensaio Respondendo a pergunta: O que é iluminismo?

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Na segunda Crítica, Kant esclarece esta questão. Ele diz: “[...] surge um conceito da categoria da causalidade, justificado pela Critica da Razão Pura, se bem que não suscetível de qualquer representação empírica, qual seja, o conceito de liberdade; e se podemos agora encontrar fundamentos para provar que esta qualidade corresponde, na realidade, à vontade humana [...]” (CE, 4:148; AA, 5:15).

No documento brunoleonardocunha (páginas 93-96)