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A Anti-cabala: o ceticismo contra o acesso desimpedido ao mundo espiritual

No documento brunoleonardocunha (páginas 65-68)

CAPÍTULO 2: SONHOS E O PROBLEMA DA METAFÍSICA NO PERÍODO PRÉ-CRÍTICO

6. A Anti-cabala: o ceticismo contra o acesso desimpedido ao mundo espiritual

As investigações kantianas constataram que não existe um modo de verificar a natureza do espírito, uma vez que esta natureza não converge com a da matéria. Caso isto fosse possível, a questão do espírito poderia ser estabelecida em bases científicas. Para tanto, sua presença deveria ser verificada segundo as condições do espaço. Contudo, como se observou, não existe esta possibilidade para um elemento que escapa de todas as formas de apreensão sensível. Com esta conclusão, Kant entende haver conseguido uma prova de que o mundo dos espíritos não é uma realidade acessível à razão teórica. A decepção kantiana a este respeito manifesta-se no terceiro capítulo de Sonhos, que traz o título de Anti-cabala52. Neste momento, o ceticismo apresenta-se como um recurso contra as diversas tentativas desimpedidas de acesso ao mundo espiritual.

A primeira instância à qual o ceticismo direciona-se é a própria filosofia. Kant atribui esta responsabilidade, especificamente, aos metafísicos, pelo fato de habitarem mundos intelectuais particulares destituídos de qualquer relação com o senso comum53. Kant, de forma sarcástica, proclama-os “construtores de castelos de ar de tantos mundos do pensamento” dirigindo-se, abertamente, a Wolff e sua filosofia construída a partir de “conceitos sub- reptícios” e a Crusius que adota em seu critério de verdade, fórmulas do pensável e do

52 Johnson (2002) fornece-nos uma boa explicação sobre o significado do termo: “A cabala, no significado da tradição, é o esoterismo judeu ou a tradição teológica que exerceu uma poderosa e vigorosa influência sobre o esoterismo do ocidente, incluindo o trabalho de Swedenborg. [...] Por causa de sua ampla influência, Cabala veio a se referir a todas as formas de esoterismo, não apenas ao judeu. Kant poderia estar usando o termo neste sentido ou poderia ter conhecido o suficiente sobre a cabala para detectar suas similaridades com Swedenborg”(p.171). Disso, um fato parece ser evidente. Zammito (2002) salienta que a questão do vidente ou visionário está proximamente relacionada com problemas metafísicos- religiosos (p.196).

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A pergunta que se apresenta no contexto de meados dos anos 60 é: com a recusa da metafísica e a emergente influência de Rousseau e em alguma medida de Hume, teria Kant se tornado um inimigo da academia e, por conseguinte, um antropólogo, ou seja, um filósofo do povo? Para Zammito (2002), Herder presumiu que sim, através de suas leituras de Kant (enfatizando Observações) e de suas conversas pessoais. Contudo, embora este seja um período de um breve interlúdio popular, Kant não se tornou um filósofo popular. A despeito disso, Kant buscou “o universal, o fundamento transcendental necessário da experiência humana, ele permaneceu na estabelecida ordem disciplinar da filosofia” (p.214). Poderemos observar isto no decorrer deste trabalho.

impensável fundadas “a partir do nada” (CE, 1: 329; AA, 2: 342). Uma vez que as hipóteses metafísicas são particulares e subjetivas, Kant não vê problemas em compará-las com sonhos, pois “Se de diversos homens cada qual tem seu próprio mundo, então é de supor que sonham” (CE, 1:329; AA, 2: 342). Mas, há a necessidade de se despertar desta condição. Algo que será possível quando os pensadores “abrirem os olhos em uma direção que não exclui a concordância com o entendimento de outro homem” (CE, 1: 329; AA, 2: 342) e quando, como conseqüência disso, ocorrer a edificação de um mundo em comum, tal como aquele que “os matemáticos já possuem há muito tempo” (CE, 1: 329; AA, 2: 342).

Não só filósofos, no entanto, caracterizam-se por sonharem com um mundo exclusivo “que nenhum outro homem saudável vê” (CE, 1: 330; AA, 2: 342). Próximo aos sonhos da razão que tem caracterizado o pensamento filosófico, encontram-se os sonhos da sensação. Todo aquele que se aprofunda em fantasias enquanto está desperto pode ser chamado de sonhador acordado e considerado, de certo modo, um sonhador dos sentidos. No entanto, em uma situação comum, o sonhador é capaz de empreender a diferenciação clara entre aquilo que vem do interior, no caso, as fantasias, e as sensações exteriores. Assim, as fantasias podem ocupar a mente daquele que sonha, sem iludi-lo, porque “a sensação efetiva de seu corpo constitui-se um contraste ou um destaque com relação àquelas quimeras” (CE, 1:330; AA, 2: 343). De outro modo, os sonhadores da sensação, tal como os visionários, diferem-se em grau e espécie destes primeiros mencionados, pois se caracterizam por colocarem as imagens da imaginação como objetos efetivamente reais. Suas ilusões aparecem como coisas reais até mesmo em relação ao seu próprio corpo e aos sentidos. Esta situação gera uma inevitável pergunta sobre como imagens criadas na alma, que somente deviam ser representadas como coisas internas, podem figurar entre os objetos concretos da experiência.

Na busca de uma resposta, Kant busca entender as manifestações anormais experimentadas pelos visionários, empreendendo uma análise sobre a forma como as pessoas comuns são capazes de perceber objetos exteriores. A este respeito, segundo Kant, nossos sentidos têm a capacidade de apreender o objeto e, junto a ele, a sensação do lugar onde está situado. Esta apreensão de lugar54 é “uma condição necessária da sensação” (CE, 1: 331; AA, 2: 344) para representar as coisas que estão fora de si. Assim, Kant entende que a representação do objeto é apreendida pela alma ou, em outras palavras, pela consciência, no

54 É possível observar em Sonhos que Kant começa a esboçar, em algumas partes, uma concepção sobre o espaço mais próxima da filosofia crítica. Nesta passagem, Kant entende que existe uma condição necessária de nossa sensação para representar as coisas exteriores e a identifica com o espaço: “Mas constatamos no uso dos sentidos externos que, além da clareza com que são representados os objetos, se apreende junto com a sensação também seu lugar, talvez nem sempre com igual correção, mas ainda assim como uma condição necessária da sensação, sem a qual não seria possível representar as coisas como fora de nós” (CE, 1: 331; AA, 2: 344).

lugar onde as linhas da impressão deixadas pelo objeto coincidem. Este ponto de coincidência é o foco onde as sensações são impressas, nomeado focus imaginarius. Em analogia com a teoria ótica de Newton, este foco pode ser concebido tal como o ponto ótico no qual as linhas diretrizes convergem e formam uma representação, neste caso, uma imagem. Dessa maneira, o lugar de um objeto visível pode ser determinado mesmo com um olho ou por um espelho. As impressões de som seguem basicamente o mesmo padrão e são apreendidas a partir de um focus imaginarius constituído em relação ao ouvido e as linhas diretrizes causadas pelo som. Os outros sentidos também procedem da mesma maneira, marcando sua diferença somente no fato de que o objeto da sensação encontra-se em contato direto com os órgãos dos sentidos.

Assim, se o focus imaginarius que forma nossas representações está relacionado com as linhas diretrizes formadas na consciência por objetos exteriores, como explicar visões que se apresentam sem a mediação de objetos, tal como o fenômeno que se manifesta aos visionários? Para tentar responder a esta pergunta, Kant traz de volta a perspectiva cartesiana das percepções já tratada. Descartes supôs e grande parte da filosofia posterior a ele concordou que todas as representações de nossa consciência são acompanhadas por um movimento do sistema nervoso. As imagens da imaginação também “são acompanhadas simultaneamente de concussões ou vibrações [Erschutterung oder Bebung] do tecido nervoso ou espírito nervoso do cérebro” (CE, 1: 333; AA, 2: 345). Estes movimentos são semelhantes, tal como cópias, àqueles movimentos responsáveis por causar as impressões sensíveis. A diferença entre as imagens da fantasia e as reais reside no fato de que, em relação às primeiras, as linhas diretrizes do movimento encontram-se dentro do cérebro, enquanto no que se refere à segunda, fora dele. Dentro deste modo de compreensão, é preciso distinguir bem, enquanto estamos despertos, as imaginações das imagens da realidade, isto é, o efeito dos movimentos internos dos externos. Existe uma doença, no entanto, um distúrbio mental chamado parestesia [Wahnsinn], no qual o homem não consegue fazer esta dissociação e, com efeito, “coloca fora de si simples objetos de sua imaginação e os considera como coisas efetivamente presentes diante dele” (CE, 1: 333; AA, 2: 346). Kant se remete a um artigo escrito em 1764 para elucidar melhor este caso.

No documento brunoleonardocunha (páginas 65-68)