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O problema das leis pneumatológicas

No documento brunoleonardocunha (páginas 85-87)

CAPÍTULO 3: SONHOS E AS INDICAÇÕES DE UMA NOVA FUNDAMENTAÇÃO DA METAFÍSICA E DA RELIGIÃO

1. O problema das leis pneumatológicas

No período pré-crítico, uma questão fundamental ocupou as meditações kantianas estendendo-se progressivamente ao ponto de atingir uma nova dimensão em Sonhos de um Visionário. Kant, em sua reflexão inicial, preocupou-se com os aspectos do mundo espiritual, que se estendiam através das idéias de princípios ativos, substâncias imateriais, leis pneumatológicas81 e almas. A necessidade de empreender uma investigação sobre tais aspectos surgiu como um meio de remediar as conseqüências do mecanicismo. Ao se interpretar a natureza por razões mecânicas, reduzia-se toda ela a uma máquina. Isso significava compreendê-la como uma substância inerte, organizada unicamente por princípios determinísticos. Com esta concepção, limitava-se a liberdade, gerando conseqüências morais e religiosas profundas.

A ética e a religião foram o background para a investigação kantiana sobre este assunto que se iniciou em meio a um debate travado no início do século XVIII entre duas correntes filosóficas, a saber, os pietistas e os racionalistas. Os teólogos pietistas, representados por Budde, Lange e Rüdiger, acusavam o racionalismo, representado na Alemanha pela escola de Wolff, de conceber o mundo a partir de uma perspectiva fatalista e ateísta, devido ao seu método matemático que atribuía causas mecânicas a todas as coisas. Tal método não “dava espaço para a liberdade, a base da moralidade, ou para milagres, a fundação da fé”

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O conceito de leis pneumatológicas é encontrado em diversos sistemas filosóficos da época moderna. Como exemplo, podemos citar o último livro da Metaphisik de Crusius, nomeado Pneumatologie, a doutrina metafísica das leis espirituais, onde é empreendido uma investigação sobre os fundamentos do mundo imaterial. Nessa direção, tal como Crusius, Wolff empreende uma investigação que abrange aspectos supra-sensíveis na obra intitulada Pensamentos Racionais sobre Deus, o Mundo, a Alma humana e Outras Coisas em Geral. É notável que a investigação sobre leis pneumatológicas e princípios imateriais não se volta somente para as substâncias espirituais e princípios ativos que regem as relações das coisas mundanas, da matéria em geral, mas refere-se de forma substancial à alma humana (SCHÖNFELD, 2000, p 240).

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(BEISER, 1992, p.30). A superação deste dilema foi um motivo relevante para o esforço inicial de Kant em tentar fundar a filosofia especulativa ou a metafísica sobre uma base sólida. (BEISER, 1992, p.30). Uma correta fundação da metafísica poderia resgatar a integridade da razão proporcionando uma justificação racional para a liberdade e para a crença religiosa e, com efeito, introduzir um meio termo “entre ceticismo e fideísmo” (BEISER, 1992, p.30).

Este esforço foi observado , em 1746, com a publicação de Reflexões sobre a Verdadeira Estimativa das Forças Vivas. Kant acreditou que a revisão de alguns problemas fundamentais da filosofia natural seria suficiente para a solução do problema mente-corpo, a mola propulsora das duras acusações direcionadas ao racionalismo. Os princípios do mecanicismo geravam um sério problema de interação a este respeito, pois, de uma maneira geral, pareciam “não deixar qualquer lugar para a mente ou o espírito” (BEISER, 1992, p.35), concebidos, então, como uma “máquina dentro da natureza ou um fantasma fora dela” (BEISER, 1992, p.35). A origem do problema encontrava-se no fato de que o racionalismo cartesiano desenvolveu uma concepção geométrica e mecânica dos corpos segundo a qual sua constituição caracterizava-se unicamente pelo conceito de extensão. Kant, de outra maneira, supôs que os corpos são geometricamente mensuráveis, mas sua constituição fundamental apóia-se no conceito de força. Dessa forma, a matéria e os seres em geral não devem ser concebidos como máquinas que se movem, o mero resultado da soma de partículas sólidas, mas como o resultado da interação de forças. A matéria, nesta apropriação dinâmica, é constituída por forças vivas. Os elementos que a constituem não podem ser subsumidos pela causalidade física e mecânica dos objetos. Este conceito permite remediar o dualismo e superar o problema da interação, pois coloca mente e corpo em um mesmo nível. Ambos possuem o mesmo status ontológico, sendo diferentes graus de atividade das forças. Esta conjectura permite reconhecer a alma, em primeiro lugar, como uma instância não determinada pelas leis mecânicas da matéria e, em seguida, como um elemento vinculado ao corpo.

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Em 1723, Wolff foi expulso da Prússia por Frederico I, devido às acusações dos teólogos pietistas. Como retrata Kuehn (2001), “os entusiastas religiosos, conhecidos como pietistas, [...] argumentavam que a aceitação da teoria leibniziana da harmonia pré-estabelecida implicava em fatalismo e poderia servir como desculpa para desertores do exército. Realmente, ela poderia persuadi-los a desertar” (p.25). Tão logo, Frederico I proibiu o ensinamento da doutrina de Wolff em Halle. Sem querer, no entanto, tornou Wolff uma figura célebre entre aqueles que defendiam o iluminismo. Logo depois, Wolff mudou-se para Marburgo e publicou, em 1724,

Pensamentos Racionais sobre o Propósito das Coisas Naturais [Vernünftige Gedanken von den Absichten der natürlichen Dinge] (p.26).

Ao integrar as duas principais posições racionalistas em uma só perspectiva, Kant apresentou uma instância mediadora entre a Naturphilosophie dos pietistas, defensora da relevância do sobrenatural nas situações mais comuns e cotidianas, e o rigor objetivo do método matemático dos racionalistas. Abriu-se, desse modo, o espaço para se pensar com profundidade filosófica as importantes questões que envolvem a ética e a religião.

Ao apoiar-se na observação de “alguns conceitos das forças nos corpos” (BEISER, 1992, p.31), a metafísica inicial de Kant dita que um mundo espiritual, regido por leis próprias, não só é possível, como também tem uma função fundamental como parte da natureza. Ele possibilita conciliar a natureza com aspectos bem diferentes, tais como a liberdade, a teleologia e a imortalidade. O mundo espiritual é a prova de que o determinismo e suas conseqüências não são os aspectos fundamentais que dirigem o universo. Mas, assumir a possibilidade de um mundo espiritual fomenta, como conseqüência, a necessidade de comprová-lo cientificamente. Manifesta-se, com efeito, a exigência racional de se esclarecer por que e como acontece o “relacionamento das coisas materiais e imateriais” (SCHÖNFELD, 2000, p.242). A resposta, porém, não é imediatamente apreensível, pois, para alcançá-la, é preciso superar diversas barreiras representadas em dificuldades metodológicas, ambigüidades teóricas e paradoxos. Ademais, não há garantias de que estes obstáculos sejam transponíveis. A reflexão inicial de Kant defrontou-se com estes problemas e, com efeito, conduziu-se ao reconhecimento de que não há caminho para a fundação de questões metafísicas, tais como esta, dentro de uma ciência especulativa. Mas, isto significa, então, que o mundo realmente resume-se ao determinismo? Como Kant constatará, dentro dos fenômenos da vida existem experiências que nos remetem a um mundo desvinculado de toda forma de determinismo. É, pois, possível pensar o mundo espiritual e suas leis pneumatológicas através de uma reflexão sobre a vontade humana. A dimensão moral abre-nos um novo e original caminho para pensar as questões da metafísica. A amplitude da reflexão que se apresenta em 1766, no capítulo 2 de Sonhos, nos revelará uma nova direção se configurando no pensamento kantiano.

No documento brunoleonardocunha (páginas 85-87)