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O ceticismo pirrônico de 1760: a questão das antinomias

No documento brunoleonardocunha (páginas 34-38)

Para tentar explicar, de outro modo, o ceticismo kantiano de 1760, uma confissão encontrada em uma carta enviada a Garve, em 1798, é especialmente importante. Nesta carta, tardia em relação ao texto de Sonhos, Kant fala a respeito do despertar acontecido após a reflexão sobre as antinomias12. No decorrer da carta, Kant faz uma observação sobre a origem da Crítica da Razão Pura na qual admite que seu ponto de partida foi os problemas da razão e, mais especificamente, as antinomias. Estas o acordaram do sono dogmático e o levaram à crítica da razão a fim de acabar com o escândalo da filosofia, a saber, a contradição da razão consigo mesma. Kant revela a Garve que

Não foi o exame da natureza de Deus, da imortalidade etc. que foi meu ponto de partida, mas a antinomia da Razão Pura: “O mundo tem um começo. – O mundo não tem um começo etc. [...] O homem é livre – contra: Não há liberdade. Mas tudo, inclusive o homem, está submetido à necessidade natural.” É esta antinomia que me despertou do meu sonho dogmático e me conduziu à Crítica da razão pura a fim de suprimir o escândalo da contradição da razão consigo mesma (CE, 13:552; AA, 12: 258).

A carta para Garve, ainda que remeta-nos às antinomias da Crítica, está de acordo com um conjunto de problemas referentes à metafísica que já estavam presentes na reflexão kantiana em meados dos anos 6013. Este argumento adquire respaldo a partir de outra correspondência, desta vez, escrita para Bernoulli, em 1781, na qual Kant revela que

12 Antinomias significam literalmente conflito de leis. São o embate entre duas proposições de igual força argumentativa. Ex.: a idéia de mundo e se este tem ou não um começo. Suas premissas não permitem uma conclusão efetiva sobre a questão.

13 É importante nos atentarmos para o fato de que “o sistema dos quatro pares de teses contraditórias só foi elaborado depois de 1774-5, após ser encontrado, no Duisburg Nachlass, o fio condutor para a descoberta de todos os conceitos puros do entendimento.” (LINHARES, 2005, p.56). Foi a partir disso que Kant foi capaz de demonstrar por que são essas e não outras as antinomias, o motivo pelo qual existem exatamente essas categorias e não outras.

problemas com a forma estrutural de antinomias14 foram os fatores que motivaram sua ambição de promover a reforma da metafísica em 1765. Ao falar sobre as proposições metafísicas, Kant deixa subentendido a referência ao “conjunto dos itens supra-sensíveis tratados pela metafísica especial” (FORSTER, 2008, p.17), que se apresentam a partir da tensão existente em seu seio, caracterizada pelos pólos negativo e positivo, dotados de igual força argumentativa. A carta de 1781 faz referência a estas questões. Ela indica o primeiro contato postal com Bernoulli, que ocorreu em 1765, e ao mesmo tempo indica o problema das proposições contraditórias junto ao desejo kantiano de colaborar para a reforma da metafísica: [...] nós colaborávamos para a reforma da metafísica. Eu disse naquela época que faltava a esta suposta ciência uma base segura com a qual pudesse distinguir verdade de ilusão, uma vez que proposições metafísicas, diferentes, mas igualmente persuasivas, dirigem-se inevitavelmente para conclusões contraditórias, resultando que uma proposição inevitavelmente lança dúvida sobre a outra (CE, 13: 186; AA, 10: 277).

Existem, portanto, duas confissões sobre o despertar. Segundo Forster (2008), ambas possuem sua medida de verdade. “Elas se referem a dois diferentes, mas igualmente importantes, passos históricos, que Kant assumiu em sua duradoura escapada das garras da metafísica dogmática na direção do refúgio (supostamente) seguro da filosofia crítica” (p.15). Cada um destes passos corresponde a um tipo de reação cética frente a determinados tipos de problemas da metafísica. O despertar pelas antinomias, apresentado na carta para Garve, refere-se ao encontro de Kant em meados de 1760 com o ceticismo pirrônico. De outro modo, o despertar apresentado em Prolegómenos, representado no problema da causalidade, diz respeito ao encontro de Kant com o ceticismo de Hume em 1772.

Forster argumenta que o ceticismo apresentado por Kant em meados de 1760 foi pirrônico em dois sentidos. Em primeiro lugar, devido ao seu caráter: a estrutura geral dos problemas da metafísica à qual ele se vincula caracteriza-se pela tensão entre duas afirmações contrárias com igual força argumentativa, o que resulta na suspensão de juízo diante de suas premissas15. Em segundo lugar, a crise foi pirrônica em inspiração. Observa-se que as ações de Kant são inspiradas pela atitude dos antigos, tal como a de “Sócrates na maiêutica científica, zetética [...], a via heurística” da reflexão filosófica (VLEESCHAUWER, 1969, p.44). O Anúncio das Preleções do Inverno de 1765-1766 proporcionam-nos boas indicações

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Forster (2008) argumenta que nessa época Kant não havia formulado as antinomias em um sistema canônico de quatro, como na Crítica, mas a natureza dos problemas não somente inclui essas formulações como também se estendem para além delas (p.20).

15 Este é o método que estabelece a isostheneia ou eqüipolência entre proposições, que resulta em epochê ou suspensão de juízo. É o principal procedimento do ceticismo antigo adotado por Sextus Empiricus, o principal propagador do pirronismo.

a este respeito. Neste pequeno escrito, Kant mostra-se ciente da necessidade de um método para a metafísica que a permita se estabelecer como ciência. Explicitando sua inspiração, ele indica que este método corresponde ao procedimento zetético16, que significa, para os céticos antigos, investigativo.

[...] era para iludi-los com uma filosofia que já foi suposta como completa e pensada por outros para seu próprio benefício. Tal afirmação criaria uma ilusão de ciência. Esta ilusão só é aceita como proposta legal em certos lugares entre certas pessoas. Tudo mais é rejeitado como moeda falsa. O método de instrução peculiar para a filosofia é zetético, como alguns filósofos antigos expressaram. Em outras palavras, o método da filosofia é o método investigativo (CE, 1: 293; AA, 2:307).

Ademais, outras indicações são encontradas a este respeito. Constata-se que o ceticismo antigo foi objeto de inspiração para o pensamento de Kant desde os seus primórdios. É possível observar, nas reflexões iniciais de 1752-1756, evidências relevantes acerca desta suposição. Nas reflexões deste período, Kant observa que a diferença de opiniões é o fator que faz nascer o ceticismo, identificado como um pirronismo razoável, cujos princípios básicos afirmam a necessidade da suspensão de um juízo definitivo sempre que necessário, quando existirem razões distintas para uma afirmação contrária (KUEHN, 2001, p.182). Segundo Kuehn, Kant considera o princípio da não evidência de Pirro útil para nos manter atentos sobre a improcedência de certos tipos de atividades intelectuais. Sobretudo, Kant entende que os requisitos do procedimento pirrônico são fundamentais para a metafísica e para a ética. As notas de Herder nos mostram, de forma explícita, o reconhecimento da importância de Pirro no pensamento de Kant. Eis as palavras de Kant: “Pirro é realmente um homem de grande mérito, pois fundou uma seita com o objetivo de seguir por um caminho diferente, derrubando a tudo. Pirro: os dogmata universais (exceto aqueles da Matemática) são incertos” (AA, 24.1:4).

Dentro do período pré-crítico, Sonhos de um Visionário representou o ceticismo pirrônico de Kant em sentido amplo. Neste texto, é possível perceber o método zetético em ação, atuando como uma via heurística de investigação, “que começa em toda ordem do conhecimento pelo recurso da experiência” (VLEESCHAUWER ,1962, p.44). Nesta prerrogativa, as questões do supra-sensível são preteridas a favor de outras referências, são elas as indicações concretas estabelecidas pela experiência e pelo senso comum. Os ideais da utilidade, felicidade e vida cotidiana são resgatados e colocados, tal como no pirronismo, como conceitos normativos (FORSTER, 2008, p.19). Com isso, há o reconhecimento do saber

16 O adjetivo zetético é distintivamente usado pelos pirrônicos para caracterizar seus procedimentos e a si mesmos. A escola cética é também chamada zetética devido ao característico procedimento de investigação.

empírico, matemático, lógico e, sobretudo, moral em detrimento das disciplinas que tratam das questões do supra-sensível17. Por esta via de investigação, Kant alcança o discernimento de que o conhecimento do supra-sensível, que a metafísica tem almejado, é estéril. Com efeito, deve-se reconhecer que a metafísica necessita de uma reforma radical.

O método cético, logo, evidencia a necessidade de uma reforma que se dirige à metafísica. Esta reforma, todavia, não se refere somente à fundação das proposições fundamentais do conhecimento, mas, refere-se, sobretudo, ao estabelecimento das bases da filosofia prática. Como Kuehn (2001) observa, “Kant identifica o fim do cético como um fim moral” (p.182). Uma das passagens das notas de Herder mostra que existe uma vinculação entre o ceticismo e a moral no pensamento inicial de Kant. Kant destaca esta vinculação em determinada passagem das notas. Ele diz (em relação a Pirro): “seus sucessores foram ainda mais longe. Sócrates parece ter sido um tanto pirrônico. A certeza [princípio] que faz a felicidade deve ser assumida. Ele foi um filósofo prático” (AA, 24.1:4). Como Guyer (2008) salienta, o ceticismo pirrônico move-se por uma dialética natural que se lança contra a validade das estritas leis do dever. Em suas palavras, “a dialética natural é o que induz uma das duas formas de ceticismo com o qual Kant está obcecado, o ceticismo pirrônico" (GUYER, 2008, p.52-53). Ao direcionar-se às “insolúveis disputas da metafísica” (GUYER, 2008, p.52), o ceticismo está necessariamente vinculado à possibilidade da liberdade e a outras questões que são cernes dos problemas éticos de um modo geral. De fato, uma análise cuidadosa do contexto em questão torna possível constatar, realmente, que existe uma preocupação, por parte de Kant, de estabelecer novos rumos para o pensamento ético.

O ceticismo, portanto, tem um papel central na filosofia de Kant. A reforma da metafísica engendrada pela filosofia crítica foi iniciada, sobretudo, pela motivação de fazer uma metafísica resistente ao ceticismo (GUYER, 2008, p.30). Segundo Guyer, os dois papéis principais da Crítica da Razão Pura foram, em primeiro lugar, como tarefa da analítica, superar o ceticismo de Hume em relação aos primeiros princípios do conhecimento e, em segundo lugar, superar o ceticismo pirrônico que se apresenta frente à possibilidade da moral. Na filosofia crítica, a dialética natural foi superada e a moral teve sua possibilidade legitimada através da fundamentação da metafísica dos costumes. Tendo isto em mente, é possível entender o profundo significado do ceticismo na filosofia de Kant. O ceticismo foi incisivo não só para a fundação epistemológica, mas, sobretudo, para o estabelecimento das

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Sonhos determina uma forma estrita de pirronismo. Kant interpreta o pirronismo de uma maneira entusiástica, não como um ataque direto sobre as ciências empírica, lógica, matemática e moral, mas , em vez disto, como um ataque específico aos juízos da metafísica do supra-sensível e aos assuntos que lhe concernem (FORSTER, 2008, p.19).

bases da moral e da religião. Se estas considerações estão corretas, o que significou o ceticismo de Sonhos de um visionário? É provável que o ceticismo não esteja preocupado especificamente com o problema de nossas inferências racionais. É provável que o ceticismo da obra seja fortemente influenciado por razões morais

No documento brunoleonardocunha (páginas 34-38)