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O ceticismo moral e o agnosticismo em Sonhos

No documento brunoleonardocunha (páginas 45-47)

Como Vleeschauwer aponta, os escritos voltados ao método de Newton de 1762-1764, junto à emergente influência de Rousseau, perpetuaram um impacto profundo na reflexão kantiana. Desta síntese, surgiu o desprezo pela especulação teórica cujo efeito é insignificante sobre a vida concreta do homem. Kant percebeu que a especulação não era suficientemente capacitada para inferir o real por meios racionais. Reconheceu que a metafísica não tem valor enquanto conhecimento a priori das coisas e deve ser limitada ao que a experiência nos fornece. Desse modo, ela não pode determinar nossa vida futura e nem alterar nossa conduta moral, pois seus postulados fundamentais encerram uma contradição interna, que impossibilita discorrer de forma positiva sobre sua validade. A ontologia e a síntese teórica das idéias de Deus ,da imortalidade e da liberdade são estéreis para o terreno da filosofia prática. Estes argumentos abrem-nos campo para supor que a repugnância pela especulação não é resultado direto de um ceticismo epistemológico radical, como aquele que atribuem à Hume. Fica evidente que o ceticismo de Sonhos de um Visionário é motivado pela exasperação kantiana decorrente da incapacidade e da “vaidade da metafísica para a direção moral da vida” Neste sentido, é “Rousseau, muito mais que Hume, o responsável pelo pretendido ceticismo kantiano” (VLEESCHAUWER, 1962, p.47).

Não existe, portanto, em Sonhos, um ceticismo como aquele que tradicionalmente se tem atribuído à Hume. O ceticismo kantiano, neste texto, não é caracterizado como um aspecto negativo e destrutivo com relação à metafísica. É admissível que ele se dirige implacavelmente às capacidades racionais do homem e, sobretudo, ao conhecimento dos objetos supra-sensíveis. Mas, ao invés da supressão ou destruição destes objetos, o ceticismo leva à sugestão de uma nova forma de tratá-los. Observa-se que Kant adota uma forma de agnosticismo, abrindo, com efeito, espaço para a crença no tocante aos assuntos da metafísica. Na literatura secundária, alguns comentadores têm assumido esta perspectiva. Dentre eles, podemos citar os nomes de Zammito (2002), Ward (1972) , Svare (2006) e Palmquist (1989). Mas, em que consiste este agnosticismo? Segundo Svare (2006), o agnosticismo de Kant consiste no ato de assumir determinadas experiências que não podem ser devidamente explicadas pelos recursos da razão (p.41). Kant admite a necessidade de se abrir para um tipo experiência imediata (baseada na crença) que dispensa as provas racionais, para considerar determinados tipos de fenômenos como efetivamente reais. É um domínio distinto de toda conclusão racional. Desse modo, o agnosticismo de Kant em Sonhos permite assumir a imortalidade da alma, a comunicação entre corpo e alma, a impenetrabilidade da matéria e,

em primeira instância, a própria possibilidade da existência da alma como um ser imaterial. Como exemplo, é possível observar que Kant mostra-se disposto a não negar inteiramente a possibilidade da existência de espíritos e admite inclinar-se a esta crença, mesmo que espíritos não possam ser provados numa investigação racional. Diz Kant: “Eu devo confessar que estou fortemente inclinado a assumir a existência de naturezas imateriais e incluir minha própria alma na classe desses seres” (CE, 1: 314-315; AA, 2: 327). A alma humana e a vida são motivos fortes que induzem a esta conclusão. “Tudo no mundo que parece conter vida, parece ser de natureza imaterial. Toda a vida possui uma capacidade própria de determinar-se pela sua própria força e arbítrio” (CE, 1: 315; AA, 2: 328).

Segundo Svare, este agnosticismo não deve ser concebido como uma novidade. Como ele observa, esta perspectiva encontra-se, em alguma medida, em escritos anteriores a Sonhos. Está claro que o agnosticismo e o empirismo radicalizam-se neste trabalho. Contudo, Svare argumenta que Kant estava comprometido com a idéia da subsistência da alma, sem a necessidade de uma solução filosófica, antes mesmo dos anos 60 (2006, p.41). Ele observa que não há um discurso aberto sobre este assunto nos trabalhos kantianos. A imortalidade da alma é um assunto que não emerge para um discurso explícito e, das poucas vezes que aparece, vem impregnado de agnosticismo. Um exemplo está no tratado de 1755, História Natural Universal, onde Kant enfatiza o mistério que envolve o ser humano e o seu estado após a morte. Para Svare, Kant não vê problemas em assumir a posição agnóstica, mostrando- se satisfeito em não tratar o problema da imortalidade dentro do campo da filosofia.

Esta interpretação não parece adequada na medida em que não considera a disparidade profunda entre as posições de Kant dos períodos em questão. A década de 50 marca o comprometimento de Kant com um projeto de filosofia natural que pretendia empreender uma síntese entre física e metafísica. As aspirações deste sistema ditavam a importância de se prestar um esclarecimento satisfatório a respeito das questões fundamentais da metafísica representadas na existência da alma, de Deus e da liberdade. Porém, em meados dos anos 60, a posição de Kant transformou-se. Todo compromisso teórico acerca dos objetos da metafísica considerados foi despojado. Isto, todavia, não significou o fechamento completo do horizonte destas questões. Neste contexto, Kant passa a entender que o mesmo tipo de ignorância que envolve o entendimento, a saber, aquela proveniente dos limites da razão, no tocante a uma posição epistemologicamente positiva do assunto, “me compele a não ousar negar completamente toda a verdade [...]” (CE, 1: 338; AA, 2: 351).

O agnosticismo de 1766 é uma posição nova, distante da década anterior, que traz consigo um caráter especial. Ele foi um passo fundamental para a consolidação da perspectiva

que se formaria no pensamento crítico. De fato, Kant vislumbra o criticismo, quando assume que os objetos transcendentes da metafísica não podem ter sua existência confirmada e tampouco negada dentro de nossa experiência sensível , não significando que não possam constituir-se como elementos de uma fé moral. Com esta posição, Kant revela sua “simpatia em direção [...] à crença religiosa” (BEISER, 1992, p.46) e, sobretudo, abre o precedente para indicar um novo caminho de acesso para a metafísica. É o prenúncio de “uma hipótese nova e revolucionária para a metafísica: limitando a razão para dar lugar à fé” (ZAMMITO, 2002, p.256).

No documento brunoleonardocunha (páginas 45-47)