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O impacto do problema de Hume no contexto de

No documento brunoleonardocunha (páginas 31-34)

Além de Vleeschauwer (1962), outros estudiosos, dentre os quais podemos citar Forster (2008), Cassirer (2003), Palmquist (1989), Schmucker (1964) e Beck (1969) acreditam que a influência determinante de Hume sobre Kant não aconteceu até 1768, ou só em 1772, depois da obra intitulada Da forma e dos Princípios do Mundo Sensível e Inteligível, também conhecida como Dissertação de 1770. Este trabalho, em muitos aspectos, representou um grande avanço em relação à obra anterior, Sonhos de um Visionário, mas, em um sentido, representou um retrocesso. Ela indica-nos Kant novamente imerso no sono dogmático da metafísica do supra-sensível. Este momento, como Beiser (1992) observa, representa um período de “uma parcial reconciliação”, no qual Kant “volta para a metafísica na crença de que poderia proporcionar-lhe uma fundação firme [...] plano de uma ontologia modesta” (p.26).

O objetivo da Dissertação é apresentar os princípios epistemológicos relativos ao mundo sensível e ao inteligível, separando as leis que regem seu funcionamento. A sensibilidade é a faculdade identificada como receptividade, ou seja, a faculdade capaz de receber impressões de coisas, sendo que estas impressões não correspondem à coisa mesma, mas a um mero efeito subjetivo proporcionado por ela. A receptividade possui um status subjetivo, formal e ideal, representado nas noções de tempo e espaço9, que permite que todo o conhecimento sensível possa ser satisfatoriamente garantido. As formas são princípios próprios e auto-suficientes que são as condições através das quais os objetos podem ser intuídos e qualquer conhecimento sensível pode ser elaborado. Nas palavras de Kant (1992): a “sensibilidade [sensualitas/Sinnlichkeit] é concebida como a receptividade do sujeito, pela qual é possível que o seu estado representativo seja afetado de certo modo pela presença de qualquer objeto”. Desse modo, “o conhecimento do sensível contém uma matéria organizada

9 Kant introduz uma tese revolucionária ao apresentar as formas da sensibilidade como subjetivas e ideais, trazendo uma concepção diferente das tradicionais noções postas por Newton e Leibniz.

ou ordenada pelas formas da sensibilidade que, afinal, são as condições da possibilidade da própria receptividade” 10 (CE, 1: 384; AA, 2:392-393).

O intelecto é a faculdade de conhecer aquilo que não nos modifica sensivelmente. Resta determinar os princípios que regem este modo de conhecer, cujos objetos não são sensíveis, mas intelectuais e, além disso, verificar a relação destes princípios com os objetos recebidos, se é que qualquer relação deste tipo é possível. Para estes objetos, Kant vai supor um uso real do entendimento11, que se apresenta a partir de uma faculdade de representação não-sensível que trabalha com conceitos intelectuais que representam as coisas como elas são em si. Como se observa, Kant admite ser possível ao intelecto o conhecimento do numeno (as coisas em si). A objetividade do conhecimento situa-se no âmbito transcendente dos objetos. Porém, uma solução acerca dos princípios que regem esta forma de conhecimento fica sem um fundamento satisfatório na Dissertação.

O problema da objetividade é um problema especificamente crítico, afirma Vleeschauwer (1962, p.62). Em 1770, Kant ainda não estava devidamente consciente deste problema, mas esta luz não demoraria a se manifestar. A objetividade atribuída à metafísica transcendente não tardaria a encarar novamente a limitação. O ponto principal com que Kant não havia se preocupado na Dissertação encontra-se na questão de como nossos conceitos podem representar um objeto. Há dois casos comuns: no primeiro deles, um objeto afeta o sujeito e, neste processo, cria uma representação sensível que não indica mais do que a maneira como o sujeito foi afetado pelo objeto. No segundo caso, é o entendimento que cria o objeto tal como acontece na geometria e na matemática. Contudo, nenhum destes casos responde ao problema de Kant na Dissertação. Como um conceito puro pode representar um objeto? Através de uma harmonia pré-estabelecida como a de Leibniz, onde cada mônada carrega em si a representação do universo? Ou através de uma visão das coisas em Deus, como em Malebranche? Ora, se o homem possuísse a capacidade de criar conceitos sem a

10 Segundo Vleeschauwer (1962), a obra póstuma intitulada Novos Ensaios de Leibniz que apareceu em 1767 foi de fundamental importância para o novo interesse kantiano pela metafísica tradicional. Nos Novos Ensaios, Leibniz professou que a percepção é a manifestação sensível das coisas. O entendimento, por sua vez, conhece as coisas como elas são. A metafísica, neste sentido, tem um grande papel, na medida em que não consiste em uma ciência analítica preocupada em estabelecer os limites da razão, mas em uma ciência das coisas como são em si. Na Dissertação, Kant se comprometeu com a tentativa de estabelecer um método positivo para metafísica, diferente de Sonhos e ao contrário de Newton. Novamente, com Leibniz, o princípio do método consiste em descobrir os princípios do intelecto responsáveis por liberar o entendimento do condicionamento sensível (p.59). Aqui ocorre uma limitação completamente invertida. Se em Sonhos a sensibilidade era beneficiada pela limitação, na Dissertação é o entendimento puro que tem este benefício (p.61).

11 Em primeira instância, Kant admite um uso lógico do entendimento, que gera os fenômenos sensíveis. Este procedimento universaliza seu objeto pela submissão do percebido material à lei que o rege. Seu resultado é o conceito empírico constituído pelas percepções materiais, mediante seu ordenamento pelas leis originárias da intuição (o espaço e o tempo), transformados em conceito graças ao uso analítico e lógico do entendimento.

mediação de objetos, seu intelecto compartilharia as características do intelecto divino. Isto seria dizer que o homem tem acesso a uma intuição criadora, presente na origem das próprias coisas. Contudo, Kant alcança o discernimento que estes devaneios da metafísica não são suficientes para solucionar a questão. O intelecto humano é uma faculdade limitada e finita, logo, não é possível dar status objetivo à matéria transcendente da metafísica.

A carta a Marcus Herz, de 1772, proporciona-nos algumas evidências sobre esta mudança. Kant está preocupado com os limites de nosso poder conhecer. Assim, percebe que no processo epistemológico não é possível criar objetos com a ajuda de conceitos. A Dissertação foi omissa a esta questão ao defender que o conceito puro não é produzido por um objeto. Neste caso, não há como determinar qualquer origem e uma pergunta torna-se inevitável: um objeto pode ser representado sem afetar o sujeito sensivelmente? Na carta, em primeiro lugar, Kant está preocupado com a relação entre conceito e objeto dentro de uma faculdade intelectual. Como conceitos puros e objetos supra-sensíveis podem se relacionar? Em segundo lugar, Kant está preocupado com a viabilidade de tal forma de conhecimento. É possível conhecer um objeto supra-sensível que não pertence ao âmbito da experiência? Pode-se observar que um problema de relação causal entre representação e objeto está em questão aqui. Forster (2008) sugere que foi Hume e seu tratamento acerca da necessidade do princípio causal que trouxe uma nova luz ao pensamento kantiano no tocante a estas questões (p.24-25). “[...] os princípios gerais que estavam atrás das perspectivas humeanas sugerem para Kant um caminho mais refinado para reformular suas duas preocupações [...], sugerindo que tem algo de errado” (p.25). Como objetos supra-sensíveis e conceitos podem se relacionar? Hume havia mostrado que a necessidade que verificamos na idéia de causa deve ser rastreável, como todas as outras idéias, a partir de uma impressão anteriormente dada. Assim, é a busca por esta impressão que nos mostra que esta necessidade nao é nada mais do que uma operação de transição da imaginação e do costume de um objeto para outro. Isto significa que toda idéia requer uma impressão anterior como origem. Desse modo, é inviavel qualquer relação causal pensada entre conceito e objeto em uma operação totalmente intelectual. Logo, pode-se responder à segunda preocupação. É possível esta relação dada fora do âmbito empírico? A possibilidade do conhecimento de coisas supra-sensíveis não é possível, pois, “sem impressão, sem idéia”(FORSTER, 2008, p.25). Hume mostrou que conceitos não derivados de antecedentes sensíveis não se efetivam, pois eles não podem sequer existir.

De uma maneira geral, pode-se entender que as preocupações descritas acima constituem a problemática fundamental apresentada na primeira Crítica, especificamente, na

dedução trascendental. A crítica de Hume, portanto, representou um momento importante, alcançando grande função dentro do pensamento kantiano, uma vez que permitiu a construção do caminho para uma ciência epistemológica bem fundamentada e, sobretudo, resistente ao ceticismo. Mas, se supormos que Forster está correto e Hume, realmente, representa o passo inicial para a colocação do problema crítico da razão pura em 1772, o que significa o ceticismo kantiano de meados de 1760? Não é possível ser indiferente em relação à existência deste momento.

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