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O mundo dos espíritos como sintoma da loucura

No documento brunoleonardocunha (páginas 68-70)

CAPÍTULO 2: SONHOS E O PROBLEMA DA METAFÍSICA NO PERÍODO PRÉ-CRÍTICO

7. O mundo dos espíritos como sintoma da loucura

No artigo Ensaio sobre as Doenças da Cabeça55, Kant sublinha algumas formas de distúrbios mentais. Sua tipologia segue sua concepção das faculdades mentais, assim, ele nos apresenta doenças relacionadas ao entendimento, à sensibilidade e à razão. Kant coloca que:

As doenças da cabeça são de tantos diferentes tipos quanto as faculdades da mente capazes de serem atacadas. Eu acredito poder enquadrá-las de acordo com as três seguintes divisões: primeiro, a perversão dos conceitos da experiência em alienação [Verrückung]; segundo, a aplicação desordenada da força do juízo na experiência em parestesia [Wahnsinn]; terceiro, a perversão da razão com respeito aos juízos mais gerais em parafrenia [Wahnwitz] (AA, 2: 264)

Kant acredita existir basicamente três tipos de doenças mentais nomeadas alienação [Verrückung], parestesia, [Wahnsinn] e parafrenia [Wahnwitz]. Os visionários, uma vez incapazes de diferenciar a fantasia do real, sofrem de uma total desilusão dos sentidos, a qual Kant nomeia parestesia. Esta afecção caracteriza-se pelo desequilíbrio de certos órgãos do cérebro, que modifica a direção das linhas diretrizes referentes à fantasia para fora do cérebro causando a impressão de que o focus imaginarius está “localizado fora do sujeito pensante” (CE, 1: 334; AA, 2: 346). Isto proporciona uma vivacidade tão grande em relação à desilusão que o doente não vai “duvidar da veracidade” (CE, 1: 334; AA, 2: 346) de suas ilusões. Segundo Kant, o “transtorno do tecido nervoso pode ser causa de se transpor o focus imaginarius para o lugar de onde viria a impressão sensível de um objeto corporal efetivamente dado. Não é de admirar que o fantasista acredite ver e ouvir bem distintamente muitas coisas que ninguém senão ele percebe” (CE, 1: 334; AA, 2: 347).

Como é possível constatar, as visões místicas são um sintoma de doença mental. Satiricamente, Kant afirma, valendo-se das palavras do perspicaz Hudibras, que elas são resultado de um vento hipocondríaco, que “quando se agita nas entranhas”: ou “vai para baixo! e transforma-se em um p...” ou “vai para cima” e “é uma aparição ou uma inspiração sagrada [eine Erscheinung oder eine heilige Eingebung]” (CE, 1: 336; AA, 2: 348). Kant acredita poder justificar devidamente a semelhança dos sintomas desta doença com as manifestações espirituais. Uma vez reconhecido, na referência da perspectiva cartesiana, que

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O ensaio originalmente intitulado Versuch über die Krankheiten des Kopfes foi um artigo publicado em um jornal de Königsberg em 1764. Nele, Kant ofereceu uma taxonomia das doenças mentais (ZAMMITO, 2002, p.192). Assim, fez uma diferenciação entre os diversos tipos de tolos [Narr]. Para começar, ele fala de casos mais simples nos quais pessoas de bom coração são enganadas e feitas tolas por hipócritas e, então, progride até os casos nos quais os distúrbios deixam de suscitar o desprezo para suscitar a pena, necessitando da intervenção das autoridades. A estes doentes, Kant chama de fantasistas, pelo fato de não discernirem bem o que são fantasias ou realidade. Kant entende, na trilha de Rousseau, que muitos destes males são provocados pela sociedade e lança, através do bom humor e do sarcasmo, sua crítica em relação à especulação metafísica, denunciando-a como algum tipo de insanidade ( SCHÖNFELD, 2000, p.233).

as impressões sensoriais são imagens copiadas dentro do cérebro, é possível supor que a ilusão dos sentidos se manifeste em um sentido específico sem afetar os outros ao mesmo tempo. As ilusões confirmadas pela visão podem não ser apreendidas pelo tato ou qualquer outro sentido, gerando, como conseqüência, a impressão de que os objetos sejam, por isso, penetráveis. “As histórias comuns sobre espíritos acabam a tal modo em determinações desse tipo” (CE, 1: 334; AA, 2: 347). Kant aproveita a ocasião para dirigir a possibilidade deste problema aos metafísicos, já que a determinação do conceito de espírito “a partir do uso lingüístico comum” ou dos conceitos sub-reptícios, tal como foi apresentado filosoficamente, também parece manifestar-se “bastante conforme a essa ilusão e não nega sua origem”, visto que sua principal característica também é “a propriedade de uma presença penetrável no espaço” (CE, 1: 334; AA, 2: 347).

Kant aproveita o ataque aos metafísicos para supor um possível papel do entendimento na formação destas doenças, através do fornecimento da matéria prima para as ilusões dos sentidos, a saber, os “conceitos educativos de figuras espirituais”, algo que “um cérebro vazio de todos esses preconceitos não inventaria facilmente [...], mesmo que sofresse de um transtorno” (CE, 1:335; AA, 2: 347). Mas, a despeito desta suposição, o que parece importante é que mesmo que o entendimento possa fornecer, de alguma forma, a matéria para as desilusões, ele não pode suprimi-la. A ilusão dos sentidos não pode ser suprimida por nenhum raciocínio ou juízo, uma vez que este tipo de afecção precede a todo tipo de juízo. Neste caso, “o infeliz não pode eliminar suas quimeras por nenhum tipo de raciocínio, porque a sensação dos próprios sentidos, verdadeira ou aparente, precede a todo juízo do entendimento e tem uma evidência imediata que suplanta de longe toda persuasão” (CE, 1: 335: AA, 2: 347).

Esta exposição sobre afecções mentais foi apresentada por Kant para demonstrar a improcedência de toda forma de investigação que vise alcançar alguma verdade sobre o mundo dos espíritos. Através dos argumentos apresentados, ele demonstrou que tanto os “projetos idealistas” da filosofia, calcados em “conceitos estonteantes de uma razão ora meio inventiva ora meio dedutiva” (CE, 1: 335; AA, 2: 347), quanto a atividade dos visionários expõem-se à suspeita. Isto é motivo suficiente para que a filosofia não mais se envolva com estas questões. Kant alerta para o grande perigo que há em tentar interpretar seriamente as quimeras dos fantasistas, uma vez que uma filosofia sem fundamento encaixa-se perfeitamente a todo tipo de tolice. Através do método cético, Kant reconhece, portanto, que existe a confluência entre os sonhos de um visionário e os sonhos da metafísica. Esta inconveniente proximidade aponta para a necessidade de um novo modo de se entender a

filosofia. Expurgada de todo entusiasmo, a filosofia deve ser entendida como um modo racional de proceder diante dos fundamentos da experiência.

No documento brunoleonardocunha (páginas 68-70)