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A bela e colorida capital marítima

No documento Simone de Beauvoir e Portugal (páginas 146-150)

público português a escutou Não podemos negligenciar a importância desse estatuto enquanto instrumento

5. A visão de Portugal na obra de Simone de Beauvoir

5.1. Les Mandarins

5.1.3. A bela e colorida capital marítima

Em Lisboa, as surpresas continuaram. A primeira impressão que nos é transmitida pelo narrador é a beleza e a luminosidade da cidade; a segunda, é a das lojas cheias de belos e luxuosos artigos. Recordemo-nos que, em 1944, Paris estava ainda sujeito ao racionamento e que, portanto, era compreensível a admiração e o deslumbramento das personagens.

Henri e Nadine, especialmente esta última, ficaram igualmente espantados de ver novamente tantos carros a circular. Durante a Ocupação, o combustível e as viaturas existentes tinham sido requisitadas pelo exército alemão e, mesmo após a Libertação, ainda era raro ver muitas viaturas a circular. Os meios de transporte mais utilizados eram o metro e a bicicleta. A condução foi, na verdade, descrita como um dos maiores prazeres que Henri e, sobretudo, Nadine puderam usufruir em Portugal. Parece-nos plausível que Beauvoir se tenha inspirado na sua própria vivência para descrever a intensa experiência que foi conduzir um automóvel após tantos anos a andar a pé ou de bicicleta. De facto, a viagem é descrita de uma forma empolgante através do recurso a frases curtas e a descrições breves que, tão bem, transmitem a sensação de velocidade:

«Nadine serrait son bras en criant de terreur tandis qu’ils dévalaient à une allure qui paraissait vertigineuse les rues abruptes où ferraillaient les tramways: ils avaient perdu l’habitude de rouler en auto. Henri riait lui aussi en serrant le bras de Nadine; il tournait la tête à droite, à gauche, avec une joie incrédule: le passé était au rendez-vous. Une ville du Sud, une ville brûlante et fraîche avec à l’horizon la promesse de la mer et un vent salé battant ses promontoires: il la reconnaissait. Et portant elle l’étonnait plus qu’autrefois Marseille, Athènes, Naples, Barcelone, parce qu’aujourd’hui toute nouveauté touchait au prodige; elle était belle cette capitale au cœur sage, aux collines désordonnées, avec ses maisons glacées de couleurs tendres et ses grands bateaux blancs.»289

Note-se a intensidade dos sentimentos que dominavam as personagens. Dir-se-ia que estavam em êxtase. Na verdade, trata-se da alegria de poder voltar a usufruir dos pequenos prazeres da vida. A experiência é caracterizada como sendo vertiginosa, não só pela velocidade a que ia o táxi, mas também pelo facto das ruas serem muito estreitas e as descidas acentuadas. Os taxistas portugueses, habituados a circular nestas estradas, não se coibiam de acelerar mas, para os turistas,

esta podia parecer uma condução perigosa. Note-se também as palavras relacionadas com a alegria, o espanto e a felicidade – «criant de terreur», «riait», «joie incrédule» – que reiteram a intensidade da emoção. Na verdade, era chegado o momento pelo qual Henri tanto ansiava. Era a altura de se deixar levar pelos sentidos e de abandonar o passado. O vento que vinha do mar290 trazia consigo uma promessa: esta viagem seria sinónima de esperança e de expectativas altamente positivas. Na verdade, este ar refrescante era um sinónimo de confiança no futuro: Henri esperava ver realizados os seus sonhos e projectos.

Este clima de esperança e euforia é reiterado também pelo uso do verbo «étonner» que repete a ideia de que a península Ibérica e as suas riquezas surpreendiam estes turistas franceses.

Assim, à chegada de Lisboa, tudo aparecia banhado por uma luz de novidade, não só no que diz respeito à cidade em si, mas também porque o próprio Henri se sentia um homem novo: ele sabia que esta viagem era um ponto de viragem na sua vida.

Repare-se que a forma como a cidade é descrita está em sintonia com os sentimentos do protagonista. Com efeito, a cidade adquire uma conotação positiva associada ao seu carácter colorido e luminoso291 – não esqueçamos que Lisboa era, para Henri, uma espécie de solução temporária para os seus problemas pessoais – e mutável: o constante movimento das viaturas e dos barcos estavam de acordo com a necessidade de mudança ressentida por Perron.

No entanto, desde logo, nos apercebemos de algumas críticas subtis à mentalidade portuguesa, feitas através da forma como aqueles dois franceses viam a realidade. Assim, a descrição dos hábitos da população contém, indirectamente, algumas anotações menos positivas. Tal é o caso do facto de não se verem mulheres nos cafés, o que denotava uma mentalidade machista e retrógrada. Na verdade, devido à já referida entrada de um grande número de exilados em Portugal, o nosso país havia já tomado contacto com os modernos costumes estrangeiros e este contacto tinha mesmo originado algumas fricções com as instâncias governamentais, que se viram obrigadas a regulamentar a forma de vestir e de actuar em certos lugares – sobretudo na praia e em locais públicos –, de forma a evitar que os estrangeiros corrompessem os bons costumes lusitanos. Assim, ao chegar a Lisboa, este casal de turistas deparou-se com o facto de quase não haver presenças femininas cafés, pois estas estavam demasiado ocupadas a fazer as compras como toda a boa dona de casa:

«Le taxi s’arrêta sur une grande place entourée de cinémas et de cafés; aux terrasses étaient assis des hommes en complets sombres: pas de

290 Repare-se, de novo, na associação entre o mar e o vento (ou o ar).

291 O adjectivo utilizado para caracterizar as cores claras usadas nas casas lisboetas, transmite também, um

sentido valorativo à cidade: era uma cidade terna, calma, de ar pacífico; talvez devido ao facto de as cores claras serem dominantes; talvez por se sentir no ar um clima de paz que demorava ainda a se instalar em França, devido à questão da Colaboração e da consequente Depuração.

femmes; les femmes se bousculaient dans la rue commerçante qui descendait vers l’estuaire; tout de suite Henri et Nadine tombèrent en arrêt:

«Tu te rends compte!»

Du cuir, du vrai cuir épais et souple dont on devinait l’odeur; des valises en peau de porc, des gants de pécari, des blagues à tabac fauves, et surtout ces souliers, aux épaisses semelles de crêpe, des souliers dans lesquels on marcherait sans faire du bruit et sans se mouiller les pieds. De la vraie soie, de la vraie laine, des complets de flanelle, des chemises de popeline. Henri réalisa soudain qu’il était plutôt minable avec son complet de fibranne et ses souliers craquelés qui rebiquaient du bout; et parmi ces femmes qui portaient des fourrures, des bas de soie, de fins escarpins, Nadine avait l’air d’une clocharde.»292

Como referiu, também, Hélène de Beauvoir, Portugal era um país de costumes antiquados, onde a mulher tinha um papel subalterno em relação ao seu superior, o homem. Segundo ela, no que diz respeito às mulheres, Portugal era um país de donas de casa.

É notória a associação da cor negra à sociedade portuguesa. De facto, Simone de Beauvoir chamará a atenção dos leitores para este facto, mais do que uma vez; talvez por entender que no fato escuro usado pelos portugueses se transmitia a cor da alma portuguesa: a negrura representaria, assim, as agruras pelas quais passava a maioria da população, a falta de liberdade vigente no país, a decepção e o sentimento de derrota dos portugueses que não conseguiam mudar o estado das coisas.

O espanto do casal francês face ao luxo existente em Portugal está patente no inventário dos produtos portugueses que escasseavam em França e que causavam a inveja e o desejo de Henri e Nadine. Esta descrição é feita de uma forma ávida, enumerando os diferentes produtos e chamando a atenção para o facto de estes serem verdadeiros e não falsificações, como era corrente encontrar em França, em especial no mercado negro. A repetição do adjectivo verdadeiro vai nesse sentido: «du vrai cuir», « De la vraie soie», «de la vraie laine», «du vrai savon».

A surpresa e a inveja transformaram-se rapidamente em escândalo e revolta a partir do momento em que Henri e Nadine se aperceberam da injustiça daquela situação: enquanto que nas pastelarias portuguesas se podia saborear as mais requintadas iguarias, em França, por vezes, não havia o que comer. O que Nadine iria em breve descobrir é que, mesmo no interior do país, as diferenças eram muitas: enquanto que alguns comiam até demais, muitos outros tinham uma alimentação deficiente, chegando, em muitos casos, a passar fome.

É este desequilíbrio que está patente no episódio da pastelaria:

«A part un vieillard et un petit garçon, il n’y avait que des femmes autour des guéridons, des femmes aux cheveux huileux, accablés de fourrures, de bijoux et de cellulite qui s’acquittaient religieusement de leur gavage quotidien. Deux petites filles aux nattes noires, qui portaient en

bandoulière un ruban bleu et un tas de médailles à leur cou, dégustaient d’un air réservé un épais chocolat surchargé de crème fouettée. (…)

Nadine fit oui de la tête ; quand la serveuse eut posé la tasse devant elle, elle la porta à ses lèvres, et le sang se retira de son visage. «Je ne peux pas», dit-elle; elle ajouta sur un ton d’excuse: «Mon estomac n’a plus l’habitude.» Mais son malaise n’était pas venu de son estomac ; elle avait pensé à quelque chose ou à quelqu’un. Il ne lui posa pas de question.»293

Repare-se na caracterização negativa e nas observações acerbas que surgem através destas linhas: no interior da pastelaria estavam apenas senhoras de bem que se dedicavam gulosamente ao seu prazer quotidiano de «gavage». Neste sentido, note-se o sentido pejorativo do adjectivo «accablées», que dá a sensação de que estas mulheres têm em demasia aquilo que a grande parte da população tem em falta. Para além disso, o advérbio «religieusement» alude ao facto de aquele festim de comida ter lugar quotidianamente, mas é também uma alusão à forte religiosidade da sociedade portuguesa da época, de maneira a estabelecer o contraponto entre essa religiosidade e o pecado da gula que era cometido por aquelas senhoras tão frequentemente. De igual forma funciona o substantivo «gavage», cujo sentido pejorativo se associa à hipérbole, de forma a caricaturar a situação e torná-la ainda mais forte e ridícula. Podemos pressupor que Simone de Beauvoir se deve ter sentido revoltada com tanta injustiça, o que a terá levado, mais tarde, a descrever de uma forma tão severa esta situação.

Não podemos negligenciar o facto de vermos aparecer neste episódio uma das mais importantes características da sociedade portuguesa e latina em geral: a religiosidade. Esta aparece não só através da descrição destas senhoras, mas também através das raparigas de tranças; provavelmente, raparigas abastadas que frequentavam algum colégio da área e que usavam medalhas religiosas, o que ainda hoje é frequente ver-se numa grande parte da população portuguesa: crucifixos, medalhas de santos, lembranças oferecidas por familiares em ocasiões festivas, etc. O ar reservado destas raparigas era algo que as mulheres portuguesas tentavam incutir na sua forma de estar em sociedade. De facto, no Portugal da época, a mulher queria-se calada, obediente e reservada. Por isso, esta observação não é inocente. Estas raparigas estavam a aprender a como se comportar em sociedade. Podemos estabelecer o contraponto entre a atitude daquelas raparigas e o ar entusiasmado de Nadine ao ver aquelas delícias.

Rapidamente, a revolta deu lugar ao «malaise». Nadine dava a desculpa de que o seu estômago não estava habituado àquelas doçarias, mas a verdade é que ela se sentia mal por estar a saborear aquele bolo enquanto que, na França, alguns dos seus concidadãos haviam morrido à fome e outros passavam necessidades. Ela sentia vergonha de se tornar igual a uma daquelas personagens que estavam na pastelaria, indiferentes ao que se passava no mundo real e, ao mesmo tempo,

recordava-se da inópia existente na sua pátria. Henri compreendeu os sentimentos de Nadine e, por isso, não lhe perguntou nada.

No quarto de hotel, o casal encontrou um ar de elegância e os bens necessários para que estivesse confortável. Este conforto reencontrado provocou a alegria de Nadine. No dia seguinte, de manhã, o seu bom humor era evidente e tinha uma explicação: o luxo ofuscava-a; os tecidos eram de cores vivas e de qualidade muito superior àquela que Nadine estava habituada e o ambiente era do seu agrado.

Assim, num primeiro momento, apesar do casal ter noção de que Portugal era um país pobre, formou a ideia de que este era um bom local para se viver, pois aí nada faltava. No entanto, Henri parecia estar ciente da pobreza que normalmente se esconde por detrás desta ilusão de progresso e felicidade das pequenas nações. Aliás, a mudança de opinião – Portugal passou a ser visto como uma nação corrompida e empobrecida e já não como um paraíso terrestre – está já augurada pelo vocabulário acima analisado.

No documento Simone de Beauvoir e Portugal (páginas 146-150)