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Conferências realizadas

No documento Simone de Beauvoir e Portugal (páginas 129-133)

público português a escutou Não podemos negligenciar a importância desse estatuto enquanto instrumento

4. A segunda visita de Simone de Beauvoir a Portugal:

4.2. Conferências realizadas

No que diz respeito às conferências realizadas por Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre em 1975, aquando da visita do casal ao nosso país, são apresentados na imprensa portuguesa breves resumos do assunto sobre o qual elas versavam. Apesar das conferências e dos encontros de Sartre com a população portuguesa estarem aí mais exaustivamente tratados, podemos também encontrar algumas (breves) referências ao papel que Beauvoir desempenhou durante esta segunda visita ao nosso país.

Assim, em relação a Sartre, sabemos que foram abordados, pelo autor, questões relativas à verdadeira relação entre os militares e o povo, à efectiva liberdade de que a população gozava, à preparação que estava a ser feita para que, quando chegado o momento, o povo pudesse votar em consciência. Para além disso, Sartre focou, com particular interesse, o caso da autogestão e das ocupações de fábricas abandonadas ou falidas efectuadas pelos operários portugueses e pronunciou-se ainda sobre o valor das eleições enquanto expressão da vontade dos cidadãos. Foram ainda referidas muitas outras questões entre as quais, por exemplo, a situação política da França, a defesa de um socialismo libertário e a questão da suspensão da actividade de determinados partidos de esquerda como um atentado à liberdade.

No que diz respeito às conferências realizadas por Beauvoir, é-nos dito que a pedido do corpo docente e discente da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, a escritora, bem como Sartre, foram convidados a participarem numa série de debates e conferências a realizarem-se naquele estabelecimento. Infelizmente, as informações contidas nos artigos da imprensa periódica acerca destes encontros públicos na Faculdade de Letras são escassas e sintéticas.

Na imprensa256, diz-se que, nestes encontros, Sartre falou sobre as suas reuniões com

membros do M.F.A., com ministros e operários e que concluiu que as três forças do panorama português eram os partidos políticos, o povo e o M.F.A.. Curioso relativamente ao papel dos estudantes no processo revolucionário, questionou-os, mas sem obter uma resposta conclusiva. Assim, acabou por alertar a audiência para a necessidade de participação e empenhamento na vida política e social do país.

Na verdade, segundo o debate transposto em Libération, é notória a desilusão de Sartre, Beauvoir e Pierre Victor face ao papel desempenhado pelos estudantes e intelectuais na revolução portuguesa.

256 Comércio do Porto, 3 de Abril de 1945; Diário de Lisboa, 4 de Abril de 1945; Diário de Notícias, 2 e 4 de

Para eles, o intelectual português estava demasiado afastado do povo. Considerava-se parte de uma elite e, no entanto, faltava-lhe iniciativa. É por essa razão que Sartre diz:

«Ils [les étudiants] se trouvaient dans une position que n’ont pas généralement les étudiants: généralement, les étudiants sont en avant; et là, ils étaient derrière [la révolution].»257

De igual modo, nessa discussão, P. Gavi refere:

«On a l’impression que le milieu universitaire n’a pas été touché par ce mouvement.»258

Simone de Beauvoir demonstra estar de acordo com as opiniões acima referidas ao dizer: «Les écrivains menaient, disons, une lutte libérale, bourgeoise. Le coup d’État leur a confisqué en quelque sorte tout le sens de leur effort, et leur a enlevé toute responsabilité». 259

Quanto às conferências de Beauvoir e debates em que participou, o tema abordado foi a condição feminina e a luta pela igualdade de direitos entre os sexos. A autora defendeu a plena integração da mulher na sociedade e tentou sensibilizar a audiência para o facto de, após a revolução política, ser necessário efectuar-se uma mudança de mentalidades, capaz de modificar o papel subalterno da mulher na sociedade portuguesa, conferindo-lhe um lugar igual ao dos homens. Referiu-se ainda à importância da mulher na luta revolucionária dos operários de todo o mundo. O

Diário de Notícias revela que a escritora indicou «descobertas recentes da psicologia e da

antropologia, definiu idênticas possibilidades de realização pessoal, para o homem e para a mulher.»260. O jornalista acrescenta ainda que a escritora ao «percorrer situação actual da mulher

em muitos países que visitou, incluindo os socialistas, pôde concluir da inferioridade da sua posição na orgânica da vida social.»261

Para além desta conferência, realizada no dia 2 de Abril pelas 15 horas no salão nobre da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Beauvoir dirigiu, nesse mesmo estabelecimento, no dia 3 e 4 de Abril, sessões de trabalho subordinadas ao mesmo tema. Podemos encontrar um resumo destas sessões de trabalho nas entrevistas que deu ao jornal Libération.

No cômputo geral, Beauvoir considerava que o povo português continuava ainda muito

machista e que o discurso feminista não tinha tido grande repercussão em Portugal. No geral, a

população portuguesa continuava pouco interessada pelo combate feminista e, infelizmente, as

257 Jean-Paul Sartre, «Les Femmes et les Étudiants» in Libération, 23 avril, 1975. 258 P. Gavi, «Les Femmes et les Étudiants» in Libération, 23 avril, 1975.

259 Simone de Beauvoir, «Les Femmes et les Étudiants» in Libération, 23 avril, 1975. 260 Diário de Notícias, 3 de Abril de 1975, p.3.

raras defensoras desse movimento estavam demasiado afastadas do povo e dos movimentos activos da revolução para poderem contribuir verdadeiramente para uma mudança de mentalidades. Isoladas, o seu papel era diminuto.

Simone de Beauvoir não compreendia que, em Portugal, a luta pela igualdade de direitos fosse considerada uma questão secundária e criticava a atitude da população:

«Il y a même une répugnance, une hostilité considérable de la part des hommes. Le grand argument que donnent beaucoup de femmes qui ne sont pas très loin du communisme, qui ne sont pas des féministes proprement dites, c’est qu’il faut faire la révolution d’abord, c’est prioritaire ; il y a des tâches plus urgentes que de lutter pour l’égalité des hommes et des femmes. La question féminine serait secondaire: alors que les femmes représentent plus de la moitié de l’humanité.»262

Apesar das mudanças operadas na sociedade portuguesa, a escritora não julgava que fosse possível uma reivindicação dos direitos da mulher em Portugal naquela altura. Para ela, após conquistada a liberdade do povo e depois de feita a revolução, as mulheres continuavam escravas do sistema de autoridade patriarcal. Portugal continuaria a ser um país de donas de casa. Segundo ela, as mulheres portuguesas deveriam associar a luta feminista à luta revolucionária, pois só assim a população portuguesa seria verdadeiramente livre.

Na verdade, como dizia Serge July no debate que aparece em Libération, o fascismo e a mentalidade retrógrada tinha deixado marcas profundas na sociedade portuguesa e era difícil para as mulheres libertarem-se da inactividade e da apatia característica da ditadura. Esta dificuldade dos portugueses se libertarem das marcas do fascismo torna-se compreensível quando temos em conta as palavras de July:

«Il y a eu cinquante années de fascisme. C’est la chose la plus difficile à faire comprendre en France. Ceux qui ont moins de 40 ans maintenant sont nés sous le fascisme, ils n’ont jamais rien connu d’autre. Dans les rues, dans l’éducation, dans la manière de parler, ils n’ont connu que cette espèce de code quotidien imprimé par le code du fascisme.»263

Para Beauvoir, a luta feminista era essencial e urgente. Combater o sistema patriarcal dominante na sociedade portuguesa era tão importante quanto a revolução. O papel das feministas era, por isso, vital para o desenvolvimento da mentalidade portuguesa:

«Ces femmes se battent contre le capitalisme, mais elles restent complètement dans le système patriarcal, elles ne pensent absolument pas à le détruire. C’est là-dessus que les féministes proprement féministes essayent de les toucher, mais elles n’y arrivent pas. Je pense qu’elles ont tort; (…). On

262 Simone de Beauvoir, «Lier la lutte des femmes à la lutte révolutionnaire» in Libération, 23 avril, 1975. 263 Serge July, «Les Femmes et les Étudiants» in Libération, 23 avril, 1975.

peut parler proprement de problèmes féministes si on prend réellement part au lutte des femmes.» 264

Apesar de pensar que a população portuguesa estava a adiar importantes debates como a questão da contracepção e do aborto clandestino, a escritora reconheceu algumas conquistas importantes no plano do combate pela liberdade. Assim, elogiou as jovens operárias que se apoderavam de fábricas abandonadas ou falidas e que as colocavam a trabalhar segundo um sistema de autogestão; exprimiu a sua admiração pelas mulheres do Partido Comunista que reivindicavam mais creches e melhores condições de trabalho; agradeceu publicamente a simpatia do povo português, que passou a ter em grande estima por ter sido capaz de reconhecer a independência e a dignidade dos povos das antigas colónias e desejou que essa mesma autonomia e dignidade fossem reconhecidas à mulher.

Em conclusão, apesar do valor e interesse das conferências de Simone de Beauvoir, a sua presença em Portugal foi ofuscada pela presença de Sartre, cuja figura controversa e mediática cativou todas as atenções. No entanto, coube a ambos a tarefa de contribuir para a construção de uma nova imagem de Portugal: um Portugal que caminhava a passos largos para a democracia e para a liberdade.

No documento Simone de Beauvoir e Portugal (páginas 129-133)