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A representação de Portugal em Souvenirs de Hélène de Beauvoir

No documento Simone de Beauvoir e Portugal (páginas 60-65)

Capítulo II – Hélène de Beauvoir e Portugal

2. A estadia do casal de Roulet em Portugal

2.9. A representação de Portugal em Souvenirs de Hélène de Beauvoir

Se bem que Hélène não possuísse as capacidades linguísticas nem o estilo literário da irmã, Simone de Beauvoir, conseguiu descrever na perfeição cenas caracteristicamente portuguesas que presenciou e viveu durante os anos que passou entre nós. A capacidade de retenção dessas imagens na sua memória – sem dúvida um dom associado à sua aptidão para a pintura – tornou possível e deveras interessante o registo dessas mesmas recordações. Assim, à semelhança de Simone, também Hélène capturou para sempre a imagem que formou acerca do nosso país num registo biográfico, sincero e simples. Através da sua obra Souvenirs temos acesso às ideias que esta francesa formou acerca do nosso país relativamente aos mais diversos aspectos.

As considerações de Hélène abrangem um vasto domínio de temas. Desde o machismo, passando pela constituição da sociedade portuguesa, pela política e chegando à situação geográfica privilegiada de Portugal. Hélène, muito mais que Simone, dedica uma parte da sua obra escrita e pictórica86 ao nosso país.

A primeira impressão geral de Portugal era de que se tratava de um pequeno país situado no canto da Europa e demasiado longínquo da França. Após constatar a recuperação de Lionel de Roulet, esse pequeno país mais parecia um pequeno paraíso miraculoso. Na verdade, a ideia de que Portugal operou um verdadeiro milagre na saúde de Lionel foi reiterada várias vezes ao longo da obra em questão. Obviamente que existe toda uma série de razões que sustentam a tese de que o nosso país era um local perfeito para a convalescença de doentes e é pela voz do próprio enfermo

86 Encontramos alguns exemplos das pinturas realizadas por Hélène de Beauvoir em e sobre Portugal in

Pedro Calheiros (organização e coordenação), O Belo Ver de Hélène de Beauvoir (Pinturas e desenhos; Portugal, 1940-1945; [Catálogo das Exposições]), Aveiro, Fundação João Jacinto de Magalhães, 1994.

que temos acesso a elas: a posição geográfica de Portugal – junto ao mar, banhado pelo oceano Atlântico e beneficiado pelas boas condições atmosféricas – proporcionou-lhe uma vida bucólica e tranquila, que, associada ao ar fresco e seco do campo, aos banhos de sol e à aprazível e saudável gastronomia portuguesa tinha contribuído para a sua surpreendente recuperação.

De certo que as condições habitacionais da própria casa onde morava – a casa de sua mãe era grande e airosa, estava situada no meio da natureza e possuía uma pequena horta – tinham adjuvado o processo de regeneração. Quanto à horta, esta representava a importância da actividade agrícola no Portugal da época e também o gosto (benéfico) do povo português pelo cultivo dos seus próprios alimentos.

No geral, Hélène descreve o Algarve como uma província de Portugal particularmente bela. Os elementos paisagísticos retidos na sua memória são o mar e o seu oposto, a montanha,os moinhos de vento, as aldeias encantadoras, as alfarrobeiras, as romãzeiras, as figueiras, as praias desertas. Para Hélène, o Algarve era um paraíso e ela própria chegava à conclusão que este tipo de ambiente tinha sido favorável e, em grande parte, o responsável, pela recuperação da saúde de Lionel. Para ela, a estadia do seu companheiro no nosso país tinha sido uma espécie de ressurreição. Tendo visto partir um homem frágil e doente, ela via agora aparecer diante dela um homem regenerado, saudável e com bom aspecto. O facto de o encontrar tão bem de saúde fez com que Hélène visse Portugal com um olhar positivo, porque afinal foi esse o país que o curou.

Na verdade, são-nos fornecidas belas e variadas descrições de Portugal, não só a nível paisagístico, mas também no que diz respeito à arquitectura e à decoração interior das casas. Nestas descrições existem elementos que se repetem; por exemplo, a noção de espaço parece assumir uma grande importância para Hélène: ela elogia várias vezes as casas portuguesas onde as divisões eram grandes e “airosas”, bem como os espaços abertos, como as planícies, o campo, as praias desertas, o oceano em toda a sua amplitude, entre outros. Nesse sentido, quando Hélène refere que, ainda em Faro, alugou duas divisões a uma velha senhora – uma mais espaçosa, onde ela trabalhava e outra mais pequena, que ela transformou em casa de banho – as anotações que fornece sobre a casa são precisas, muito visuais e laudativas. Assim sendo, refere que as paredes eram brancas, pintadas com cal à maneira portuguesa, o que conferia à casa um ar calmo e harmonioso que ela comparava ao ar repousante dos mosteiros e que os dois espaços alugados convergiam numa espécie de pátio repleto de flores. Era neste pátio que Hélène lavava a roupa e a estendia.

Esta é uma imagem tipicamente portuguesa: a roupa branca e cuidadosamente limpa que é posta a secar ao sol e que o vento, vindo do mar, faz esvoaçar e espalhar a sua luminosidade pela verdura dos campos circundantes. É uma imagem talvez um pouco em desuso, mas que persiste na memória colectiva do povo português e que é frequentemente transmitida por escritores estrangeiros.

Assim, à semelhança de Hélène, também Simone de Beauvoir refere esta imagem pitoresca na sua obra Les Mandarins:

«En vérité, c’est même avec un élancement de plaisir qu’il revoyait le linge bariolé séchant aux fenêtres ensoleillées, au-dessus d’un trou d’ombre.»87

Alguns anos mais tarde, Antoine Volodine retrataria a mesma cena em Lisbonne dernière

marge:

«... comme sur les guides touristiques, aux fenêtres, le linge séchait...»88

Para além disso, Hélène refere repetidamente as cores fortes e vistosas das habitações, da natureza e do vestuário. Um outro autor que refere esta particularidade é Giraudoux:

«Tout ce qui doit être blanc est blanc pur, ce qui doit être rose est rose-rose. Tout ce qui des maisons est bleu semble à jour sur l’horizon, et ces fenêtres dans cette façade azur sont des premières fenêtres que je vois dans le ciel. Voilà le seul pays de l’Europe où la couleur ne se soit pas ternie depuis un an dans les mains humaines.»89

Por vezes, a cor aparece associada a um elemento da natureza que lhe dá valor: a luz. É o que acontece com a descrição de Lisboa e do rio Tejo fornecida por Joseph Kessel:

«Le soleil couchant accusait les couleurs et les ombres sur les deux rives, sur l’eau du large fleuve, sur la ville au relief inégal à cause des collines qui le portaient.»90

Da mesma forma, Julien Green refere que:

«Lorsqu’on arrive au Portugal en avion et de même lorsqu’on le quitte, c’est dans la douceur de sa lumière qui semble s’infiltrer dans toutes les couleurs du sol.»91

Para concluir, pode-se dizer que a natureza assume um papel central nas descrições do país e das ilhas, Madeira e Açores, o que faz com que o território português seja frequentemente comparado a um autêntico paraíso. Também é essa a opinião de Chardonne que descreve da seguinte forma o território madeirense:

«Madère est une île assez semblable à un Éden. Il n’y fait jamais froid, ni trop chaud, et l’océan qui la baigne n’est jamais furieux. (...) J’ai

87 Simone de Beauvoir, Les Mandarins, Paris, Gallimard, 1954, p.143.

88 Antoine Volodine, Lisbonne dernière marge, Paris, Les Éditions de Minuit, 1990, p.19. 89 Jean Giraudoux, Portugal (suivi de Combat avec l’image), Paris, Grasset, 1958, p.21. 90 Joseph Kessel, Les Amants du Tage, Paris, Plon, 1968, p.12.

pensé alors que j’irai le voir; avant de mourir je connaîtrai un paradis, ne fût-ce que dix jours.»92

Apesar de se referir à Madeira, esta citação pode-se aplicar ao Portugal continental. Aliás, Green transmite essa mesma ideia de perfeição terrestre na descrição que faz de Sintra:

«Des ruisseaux coulent un peu partout sous des ombrages ou sur de la mousse étoilée. On songe au paradis terrestre tel que l’a représenté Bosch. Je ne connais pas sur terre de lieu plus envoûtant ni plus proche d’une idée de bonheur parfait. Chaque pas est un ravissement de plus parce que à chaque pas ce merveilleux décor se modifie et semble vouloir se surpasser lui-même. Ce pouvoir de séduction est extrême, le lieu enchanté.»93

De facto, a sublimidade dos elementos da natureza em Portugal contribuem, em grande parte, para a visão do país como um paraíso perdido.

Num primeiro momento, Hélène dá especial destaque às amendoeiras. Para ela, como para muitos turistas ou visitantes que se instalavam no nosso país, as amendoeiras em flor eram uma visão celestial:

«Jamais je ne crois avoir vu plus beau que ces amandiers en fleurs.»94

Posteriormente, refere o romantismo e o bucolismo das camélias em flor. Na verdade, no que diz respeito à vegetação, a visão das camélias em flor é descrita como uma das mais belas e

mais mágicas95 jamais vistas. Todavia, Hélène refere que esta floresta de camélias nunca mais

poderia ser contemplada porque foi queimada.

Mais tarde, é o mar e o sol que conquistam a sua atenção. Podemos constatá-lo na sua descrição do período que passou em Nossa Senhora da Rocha, perto de Leiria: uma tia de Lionel havia alugado, nesse lugar, uma casa de férias – aliás, uma circunstância muito comum no nosso país – e como Hélène tinha sido convidada pela câmara de Leiria para aí pintar durante um mês, pôde assim conciliar o prazer das férias e o da paisagem com o da pintura, tornando esta visita duplamente apreciada.

Quando desembarcou, saltando do autocarro ferrugento (ferraillant) – lembremo-nos que na altura os meios de transportes não estavam nas suas melhores condições e que tanto Hélène como Simone já tinham referido esta característica menos positiva acerca de Portugal – em Nossa Senhora da Rocha com as suas telas e a sua mala, já Lionel a esperava. Colocaram tudo sobre as costas de um burro e percorreram o caminho pedregoso, sentindo os odores do verão.

92 Jacques Chardonne, Vivre à Madère, Paris, Grasset, Collection Les Cahiers Rouges, 1953, p.12. 93 Julien Green, p.202.

94 Hélène de Beauvoir, p.165. 95 Id., ibid.

Pode-se dizer que, para esta francesa em Portugal, Nossa Senhora da Rocha era um paraíso na terra. Aliás, ela caracteriza essa paisagem portuguesa como um dos locais mais lindos do mundo. Hélène compara-a mesmo com a Bretanha ou a Côte d’Azur, dizendo mesmo que a Nossa Senhora da Rocha era uma mistura das melhores qualidades destas duas regiões.

De facto, há características partilhadas que tornam a comparação de Hélène compreensível. Algumas dessas características são referidas por ela própria na sua obra Souvenirs96: as oliveiras à beira mar, a cor verde-esmeralda do oceano, as praias de areia suave e fina, o sol luminoso, entre outras características, levam-na a comparar este local a um éden.

Um outro factor que contribuía para o encanto da paisagem da Nossa Senhora da Rocha, era o isolamento, que lhe conferia um ar de paraíso privado:

«Les oliviers au bord de l’ócean, une mer verd émeraude, une petite église blanche et notre maison, plus rien, des plages désertes.»97

O casal de Roulet adorava banhar-se nas águas claras do oceano Atlântico e deitar-se na areia macia a secar ao sol. Esta é uma imagem reutilizada por Simone de Beauvoir no seu romance,

Les Mandarins:

«Il mêla ses doigts à ceux de Nadine et se colla au sable chaud; entre la mer nonchalante que le soleil décolorait et le bleu impérieux du ciel, il y avait du bonheur en suspens...»98

No que diz respeito às cidades, as que Hélène descreve com mais pormenor são Faro e Lisboa. Em relação a Faro, a autora caracteriza o povo como sendo agradável e simpático, mas muito pobre. A miséria, o analfabetismo e a simpatia são algumas das isotopias99 que caracterizam

o povo português nas representações de Portugal no estrangeiro.

96 Id., ibid. 97 Id., ibid., p.154

98 Simone de Beauvoir, Les Mandarins, p.154.

99 Não nos podemos esquecer que muitos dos escritores franceses que visitaram Portugal durante a década de

40, fizeram-no a convite de António Ferro que pretendia difundir a ideologia política do Estado Novo, bem como a arte e cultura portuguesas no intuito de melhorar a imagem de Portugal no estrangeiro. Para estes, o povo português era carinhoso e afável para com os estrangeiros. Ferro pretendia cativar os turistas e fomentar o investimento estrangeiro. O regime de Salazar, pela mão dele, procurou difundir a imagem sistemática de um povo exemplar e de uma nação que soube conciliar o capital, o trabalho e a autoridade, contribuindo, assim, para o desenvolvimento equilibrado da sociedade portuguesa. Repare-se ainda que uma grande parte desses escritores franceses que se deslocaram a Portugal perfilhavam uma opção política de direita o que os tornava especialmente permeáveis à ilusão de felicidade criada pelo regime salazarista. Daí que, na maior parte das descrições de Portugal presentes nesses escritos elaborados entre 1930 e 1940, normalmente no seguimento de uma visita a Portugal, encontremos traços do arquétipo de felicidade, tranquilidade e bucolismo difundido pelo próprio aparelho ideológico salazarista e a presença de certas isotopias relativamente ao povo português.

Como já referimos, posteriormente, esta imagem idílica de Portugal seria alimentada pela propaganda do governo de Vichy que via no regime português um modelo a seguir. Por outro lado, Salazar aproveitaria a chegada a Portugal de milhares de refugiados em fuga dos horrores da Segunda Guerra Mundial, para

Na verdade, podemos dizer que, de uma forma geral, era comum escritores estrangeiros referirem o carácter afável e acolhedor do povo português. O exemplo de Valéry Larbaud é característico dessa atitude:

«La gaieté portugaise est une légende; mais la politesse portugaise, la douceur des mœurs portugaises, sont une réalité. Le Portugal est un pays où on est heureux, où je crois que nous pourrions vivre agréablement. (...) En Europe, les petits États ont toujours été et seront toujours ceux où l’on vit le mieux.»100

No que diz respeito à descrição da cidade propriamente dita, a autora não nos adianta mais do que algumas informações relativas à natureza circundante que já foram referidas.

Em relação a Lisboa, tal como muitos outros autores, como Saint-Exupéry, Simone de Beauvoir, Jean Giraudoux101 e Valéry Larbaud102, entre muitos outros, também Hélène, quando vê pela primeira vez Lisboa, descreve-a como sendo uma cidade dominada pela claridade reflectida pelo sol nas fachadas brancas dos seus edifícios, bela e sorridente:

«Lisbonne était une ville blanche, belle et agréable.»103

Saint-Exupéry, apesar de reiterar algumas das características de Lisboa acima mencionadas, acrescenta o epíteto de triste à cidade, pois conhecia a realidade portuguesa e via para além da ilusão que Portugal oferecia ao mundo:

«Quand en décembre de 1940 j’ai traversé le Portugal pour me rendre aux États-Unis, Lisbonne m’est apparue comme une sorte de paradis clair et triste, On y parlait alors beaucoup d’une invasion imminente, et le Portugal se cramponnait à l’illusion de son bonheur.»104

Quanto a Hélène de Beauvoir, o que mais a marcou durante a sua estadia na capital do país foi o ambiente circundante do Instituto Francês em Portugal, que, de certa forma, já tivemos a oportunidade de esclarecer: as intrigas, a burocracia dos serviços governamentais, a ilusão da tranquilidade, o medo de represálias por parte das autoridades devido à expressão de ideias contrárias às do regime político, etc.

De facto, nem tudo o que diz respeito a Portugal é alvo de elogios: a política autoritária do governo em vigor e o machismo enraizado na sociedade são algumas das críticas apontadas por Hélène e reiteradas por muitas outras personalidades francesas.

No documento Simone de Beauvoir e Portugal (páginas 60-65)