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A recepção do romance Les Mandarins:

No documento Simone de Beauvoir e Portugal (páginas 108-110)

Capítulo III – Simone de Beauvoir e Portugal

3. A recepção do romance Les Mandarins:

As animadas discussões sobre o significado de literatura e sobre a forma como se processa a evolução literária estão longe de terminarem. Apesar de muito se haver dito sobre estas questões, o Homem surpreende-nos constantemente com novas perspectivas e novas problemáticas.

Estas discussões literárias ocupam os espíritos intelectuais há já muito tempo e continuarão, certamente, a fazê-lo por muitos mais anos. Apagando-se ou renascendo com ainda mais força, a problemática que gira em torno da literatura – abordando uma imensidade de questões – demonstra que é ainda importante e que merece um estudo mais aprofundado.

Ao pretendermos estudar a forma como foi recebido o romance de Simone de Beauvoir,

Les Mandarins, surge a necessidade de, antes de mais, lançar alguma luz sobre uma das mais

importantes questões do domínio literário: saber como se processa o fenómeno de recepção de uma obra literária. Assim, tendo em vista esta análise, urge chamar a atenção para o facto da literatura ser um domínio muito suis generis que se relaciona não somente com a especificidade da linguagem, mas também, e sobretudo, com a possibilidade de valorizar a componente institucional do fenómeno literário. Na verdade, a condição institucional da literatura divide-se em diferentes áreas: a dimensão sociocultural que possui ao ilustrar, através dos séculos, uma certa consciência colectiva, a dimensão histórica e a dimensão estética, pois, acima de tudo, a literatura é um uso especial da linguagem. Estas dimensões têm, entre elas, uma relação de complementaridade e de interacção mútua, daí a complexidade que lhe é inerente. Na verdade, há uma relação dialéctica entre arte e sociedade e é nesse campo que a estética da recepção nos pode esclarecer.

Nesta ordem de ideias, toda a obra de arte tem um efeito e uma acção. O efeito é determinado pelo público, o destinatário da obra197 e pressupõe um apelo ao texto, mas também

uma receptividade do destinatário. Quanto à recepção, esta depende sobretudo do receptor, ipse est, do destinatário da criação artística. A recepção, assim entendida, implica um diálogo entre o receptor e o texto. No entanto, essa comunicação parte do leitor e não do texto. É o leitor que tem o principal papel, pois a obra, depois de escrita, liberta-se do domínio do autor e ganha vida própria:

«O poeta é um fingidor Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente. E os que lêem o que escreve, Na dor lida sentem bem,

Não as duas que ele teve, Mas só a que eles não têm.»198

O famigerado poema de Pessoa chama a nossa atenção para a problemática relação entre estas três instâncias: autor, obra e leitor e ajuda-nos a compreender que só podemos pretender estudar verdadeiramente a história da recepção das obras, quando reconhecemos e admitimos que o sentido dessa recepção se constitui pelo jogo de um diálogo, de uma dialéctica entre estes três domínios: acção, causa, efeito.

Contudo, este diálogo nem sempre é fácil, pois a literatura, enquanto instituição, pode sugerir uma mentalidade estática, fortemente hierárquica e pouco inclinada à mudança, o que pode dificultar a entrada de uma obra nova no chamado cânone literário. Ao mesmo tempo, é este seu lado institucional que lhe confere o reconhecimento público: factor decisivo para a sua afirmação no plano social. Assim, é o carácter institucional da literatura que assegura a sua estabilidade e a sua notoriedade pública. As revistas literárias, os júris dos concursos literários e mesmo as universidades, que consagram a experiência literária e lhe oferecem a possibilidade de chegar ao público são importantes para a aceitação e para o sucesso de uma obra ou de um autor. Consequentemente, a literatura está associada ao poder, não só porque ela tem o poder de consagrar ou de rejeitar, mas também porque, por vezes, a própria delimitação do campo literário está ligada às razões do poder económico, político ou social. Assim, a sua autonomia depende, frequentemente, de forças exteriores199.

O campo literário está também condicionado pelo critério do sucesso temporal, medido por índices de sucesso comercial ou de notoriedade social. Poder-se-iam nomear esses critérios de princípios de hierarquização (do mais poderoso ao menos forte) externa, enquanto que o princípio que diz respeito à opinião favorável dos artistas que são reconhecidos pelos seus pares, seria um princípio de hierarquização interna.

Na tradição literária ocidental, as academias e a mentalidade académica – sob a forma de associações de escritores, prémios literários, revistas literárias, programas escolares, organizações culturais, entre outros – constituíram um factor decisivo na institucionalização da literatura e conferem-lhe uma certa estabilidade. A academia é um espaço privilegiado no que diz respeito ao saber. Hoje em dia, os académicos acolhem, normalmente, os escritores e também os críticos e ensaístas que têm já um certo prestígio e que são reconhecidos publicamente. Então, podemos dizer que o facto de serem aceites nas academias funciona sobretudo como uma consagração200. Por

198 Fernando Pessoa, «Autopsicografia» in Poesias, Lisboa, Ática, 1970, p.237.

199 Vide Pierre Bourdieu, Les Règles de l’art. Genèse et structure du champ littéraire, Paris, Seuil, Coll.

«Libre Examen», 1992.

200 Simone de Beauvoir, por exemplo, veio a Portugal na condição de membro do Comité Nacional de

vezes, os académicos ou as instituições literárias decidem reforçar o seu prestígio institucional através da atribuição de prémios literários201; neste caso, é a sua função de validação institucional

que está a ser posta em prática.

Desta forma, designa-se e avalia-se, simultaneamente, a importância cultural e social de uma obra ou de um escritor e, indirectamente, da própria literatura. Assim, os prémios literários são, pela sua projecção pública, pelo preço económico que lhes está muitas vezes anexado, pela própria abundância deste tipo de distinções, instrumentos de afirmação institucional da própria literatura.

Ao lado das academias e dos prémios literários, há também o papel da crítica. Quer se trate da crítica como acompanhamento regular da publicação das obras literárias ou da crítica dos jornais ou das revistas especializadas na matéria. As apreciações críticas são importantes, pois influenciam o público, condicionando a leitura que ele fará das obras. Elas julgam as obras e/ou os escritores projectando uma imagem positiva ou negativa. No fundo, a questão é de saber quais as obras que merecem ser lidas. Com o aumento de obras à disposição do público é necessário seleccionar as que são verdadeiramente essenciais a uma formação literária básica.

Mas, também o ensino funciona como um sistema de validação institucional das obras e dos autores. A partir do momento em que um autor vê uma das suas obras inscrita nos programas escolares é porque foi integrada no cânone literário. Assim, os programas escolares são documentos de força normativa; eles são testemunhos reveladores de uma consciência cultural e nacional que se quer afirmar como legítima.

A verdade é que a literatura tem uma forte dimensão sociocultural, pois ela é um instrumento de intervenção social, mas também, muitas vezes, um “reflexo” ou ainda um “efeito” da sociedade onde nasce. Esta ligação sociedade-literatura foi defendida e contestada ao longo dos tempos: desde Platão a Sartre que escutamos vozes defensoras da literatura à imagem da realidade e outras que se levantavam em defesa da arte pela arte202. Como podemos constatar, a questão

social da arte foi objecto de discussão ao longo do tempo. Nas palavras de Pessoa encontramos a justificação para este facto: é que a arte é realizada, simultaneamente, por um ser social e individual, daí, essa duplicidade do carácter da literatura. É o que Fernando Pessoa refere nesta sua reflexão:

«Acima de tudo, a arte é um fenómeno social. Ora no homem há duas qualidades directamente sociais, isto é, dizendo directamente respeito à sua vida social: o espírito gregário, que o faz sentir-se igual aos outros

No documento Simone de Beauvoir e Portugal (páginas 108-110)