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A questão do feminismo

No documento Simone de Beauvoir e Portugal (páginas 30-36)

Como tivemos a possibilidade de constatar nos pontos anteriores, o nome de Simone de Beauvoir, assim como o de Sartre, está inevitavelmente associado a uma política de esquerda e apesar da imagem da escritora que o grande público guardou corresponder à de uma intelectual que foi, desde sempre, muito activa politicamente, a verdade é que a sua maturação política e humanista começou a ser atingida – tratou-se de um processo gradual – sobretudo durante a Segunda Guerra Mundial32.

No entanto, se a consciência social de Beauvoir se revelou principalmente durante a sua idade adulta, a recusa dos estereótipos relativos à condição feminina construídos e perpetuados pela sociedade foi, pelo contrário, afirmada desde cedo. Recordemos que, durante a sua infância e adolescência, Beauvoir era considerada um ser de excepção, o que lhe permitiu, desde logo, afastar-se dos cânones femininos da época. Com o dealbar da idade adulta, a questão parecia respondida à partida: Simone de Beauvoir não era uma mulher como as outras. Não negando a sua feminilidade, recusava seguir subservientemente as imposições da sociedade. Ela que sempre se havia sentido igual ou até superior aos demais não iria deixar de alcançar o que desejava – o seu projecto de escrita, por exemplo – só por ser mulher. Esta foi uma das razões que a levaram a negar alguns dos constrangimentos relativos à feminidade (o casamento e a maternidade, por exemplo) e a dedicar-se perseverantemente ao trabalho e ao estudo. A sua filosofia de liberdade e ética levaram-na a debruçar-se sobre a condição feminina e a contribuir para a sua desmistificação.

Assim, quando, em 1949, Simone de Beauvoir publicou Le Deuxième Sexe, nada voltaria a ser como antes para a identidade feminina. A escritora restabelecia a identidade e o papel da mulher na sociedade: a mulher não precisava de um homem para ter valor, ela tinha valor por si própria e traçava, no plano histórico, o enquadramento que conduziu à posição obnóxia da mulher na sociedade ocidental.

Se é verdade que Beauvoir lutou pela liberdade do ser humano em geral, também é exacto dizer que uma das causas pelas quais ela ficou mundialmente conhecida foi precisamente o feminismo. Foi a sua condição de mulher que a levou a reflectir sobre as diferenças entre os sexos e tal como diz Fabrice Rozié, Le Deuxième Sexe foi sobretudo uma prova identitária cujos motivos se prendiam com questões pessoais da escritora:

«Le Deuxième Sexe fut pour Beauvoir une épreuve identitaire, avant de le devenir pour ses lectrices. Il peut donc être lu comme un roman de

formation: l’héroïne doit brûler celle qu’elle fut et ce qu’elle a aimé. À travers ce masochisme libérateur, Beauvoir rejoint l’entreprise de Leiris: elle enquête sur elle-même, elle sonde l’imaginaire de son siècle, elle redistribue la donne sociale des identités.»33

E foi esta reflexão que esteve na origem da obra Le Deuxième Sexe, que causou uma enorme polémica em todo o mundo, chegando a ser interditada em muitos países. Aliás, desde a aparição dos primeiros excertos no número de Maio de 1948 da revista Les Temps modernes, que Beauvoir se havia tornado o alvo de uma série de ataques de um sexismo sem precedentes. As conclusões a que chegou após esse trabalho de reflexão, para além de a revoltarem profundamente, fizeram com que concentrasse a sua atenção e os seus esforços na luta pelos direitos da mulher. Daí que Hourdin diga:

«Ce livre est magnifique, brutal, impudique, irritant, nécessaire. Il ne cache rien. Il fouille tout. Il dit tout, avec une violence et une colère froides. Il révèle ce que nous savions déjà. Il répète inlassablement ce qu’il était peut-être inutile de dire. Il arrache l’admiration et provoque l’agacement.»34

Com esta obra, Simone de Beauvoir pretendia traçar e compreender a história da opressão da mulher e, para isso, elaborou um profundo e rigoroso estudo, recorrendo aos mitos, à História, à Teoria Política, à Biologia, à Sociologia e à Psicologia. No fundo, ela pretendia reescrever a história das mulheres, colocando em questão os estereótipos e os dogmas que, desde o início dos tempos, castravam as mulheres, impedindo-as de usufruir dos mesmos direitos que os homens. Beauvoir ambicionava nada mais do que arrasar com os tabus e com os preconceitos referentes ao papel e à posição da mulher.

Como todas as mulheres que ousaram colocar em questão os valores tradicionais vigentes e reivindicar os direitos da mulher, Beauvoir confrontou-se com a reprovação de um grande número de intelectuais e com a hostilidade e as acusações de alguns dos seus colegas – Camus, por exemplo, criticou-a por ridicularizar o macho francês. No entanto, o livro foi um enorme sucesso, tendo sido vendidos 22.000 exemplares do primeiro volume da obra em apenas uma semana. O sucesso estendeu-se a todo o mundo, sendo que, no primeiro ano de vendas, só em língua inglesa, foram comprados mais de dois milhões de exemplares e que, no Japão, o livro ficou na lista dos mais vendidos durante todo o ano. Em pouco tempo, Simone de Beauvoir tornou-se uma das escritoras mais lidas no mundo inteiro e uma das feministas – se bem que ela ainda não tivesse definido a sua posição face a esse assunto – mais reconhecidas internacionalmente. Na verdade, na época, Simone pensava ainda na hipótese da luta das mulheres não precisar de ser um combate específico. Segundo a sua opinião, o aparecimento do socialismo colocaria automaticamente um

33 Fabrice Rozié, “Devenir Beauvoir”, in Le Français dans le monde, n.º304, mai-juin, 1999, p.53. 34 Georges Hourdin, p.116.

ponto final no sexismo e instauraria a igualdade. Entre 1949 e 1969, ela mudaria de opinião, ao constatar que em lado nenhum as mulheres tinham obtido os mesmos direitos e a mesma liberdade que os homens.

Para além da obra de Simone de Beauvoir, é necessário ter em conta alguns outros romances e ensaios de mulheres de cariz feminista muitos dos quais foram apoiados e prefaciados pela escritora: L’enterrée vive: Essai sur les mutilations sexuelles féminines de Renée Saurel,Les femmes s’entêtent e À cause d’Elles de Yvette Roudy são disso exemplos.

Todavia, a mudança de mentalidades tardava a instalar-se. Com a queda de Hitler e Mussolini, em 1945, constituiu-se a Federação Democrática Internacional das Mulheres. Um ano mais tarde, a ONU constituiu a Comissão da Condição Jurídica e Social da Mulher e anexou os seus documentos à Declaração dos Direitos do Homem, como sinal de que eram precisas proclamações especiais. Apesar dos princípios existirem, a prática estava longe do desejado.

Em Portugal, a mulher continuava a ocupar o mesmo lugar de sempre: uma senhora decente e honesta não frequentava cafés, muito menos usava calças compridas (à excepção da prática de alguns desportos), não fumava (pelo menos não em público), era olhada com uma certa desconfiança se se aventurava nos ramos do saber ditos masculinos, não devia sair à rua sem o seu chapéu ou sem ter os cabelos devidamente alinhados e não frequentava certos lugares. Foi este o panorama sociológico que Hélène e Simone de Beauvoir encontraram aquando das suas estadias em Portugal e que retrataram nos seus escritos. Nessa altura, a sociedade portuguesa estava ainda longe de aceitar que as mulheres fossem iguais aos homens: podia aceitá-lo na teoria, mas não na prática. Daí que para as duas irmãs, Portugal fosse um país de donas de casa.

Hélène, a irmã mais nova e menos mediática, que passou uma longa temporada no nosso país, disse a este respeito que Portugal era um país dominado pelos homens e deu um exemplo:

«...j’ai loué un logement chez une vieille dame, pas si vieille que cela d’ailleurs mais, dans ces pays dominés par les hommes, les femmes sont rapidement considérées comme hors d’âge.»35

Como podemos constatar, o facto de Portugal ser dominado pela visão masculina, condicionava a própria imagem das mulheres: bastava que uma mulher tivesse um pouco mais de idade para ser excluída da sociedade dita activa e jovem; bastava que uma mulher fosse um pouco mais ousada para ser afastada e considerada à parte da moral e dos bons costumes. E nem mesmo as agitações femininas que decorriam em outros países aceleravam o processo de desconstrução do machismo português: em 1963, Betty Friedman publica A Mística da Mulher36 que põe em causa o

“american way of life” de mulheres casadas exemplares e Katte Millet publica A Política

35 Hélène de Beauvoir, Souvenirs (recueillis par Marcelle Routier), Paris, Librairie Séguier, 1987, p.149. 36 Betty Friedman, The Feminin Mystique, New York, W.W. Northon & Company, 1963.

sexual37. Estes são apenas alguns exemplos da mudança de mentalidades que começava finalmente

a atingir dimensões importantes. As mulheres tomavam consciência de quem eram e dos seus direitos e passava a existir a noção de “mulher emancipada e livre”, aquela que começara a libertar-se dos espartilhos e que cortara o cabelo à garçonne nos loucos anos vinte.

Quanto a Portugal, a agitação das mentalidades deu-se sobretudo após a revolução do 25 de Abril e, antes dessa data, aquando dos relatos de Maio de 68 em França. As causas feministas viram a luz e a ousadia nas Três Marias – Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa – que escreveram o manifesto Novas Cartas Portuguesas38, causador de um longo e penoso

processo judicial, apoiado por mulheres feministas em todo o mundo39. Ainda assim, as feministas

foram acusadas de queimarem “soutiens”, de serem reaccionárias, mal amadas, malucas e amorais. Raramente se discutiam legitimidades, no fundo, eram apenas sonhos e as desigualdades continuavam latentes. Ainda hoje a luta feminista encontra, em Portugal, algum atrito: basta, para isso, pensar no caso das empresas que evitam empregar mulheres ou que não lhes renovam o contracto quando elas engravidam, o facto de o desemprego ser maior no sexo feminino, de as mulheres terem menos acesso ao poder, de a violência doméstica ser quase exclusivamente sofrida pelas mulheres, etc. Hoje em dia, a igualdade é legal e, de certo modo, pedagógica. Mas passá-la para a vida real exige uma fiscalização da lei e uma alteração de mentalidades que se sabe ser um processo lento e demorado.

Há mais de cinquenta anos atrás, como agora, as ideias de Simone de Beauvoir faziam todo o sentido e eram veiculadas permanentemente. A França, por seu lado, continuava a fornecer o exemplo em matéria de emancipação. De facto, o direito de voto, a justa proporção de participação política e cívica foram conceitos nascidos nos clubes de mulheres, embebidos no espírito da Revolução Francesa.

Há quem chame ao século XIX o século do feminismo, mas é na madrugada de 1900 que se fundam as organizações de mulheres na Alemanha, na França, nos Estados Unidos da América, na Inglaterra e no Japão.

Em 1909, nasce a Liga Republicana de Mulheres Portuguesas, a nossa primeira organização feminista, presidida por Ana de Castro Osório, que pedia o direito ao voto, ao divórcio, à instrução e ao trabalho, bem como a criação de escolas maternais. Surgem as primeiras revistas femininas e, em 1914, o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, fundado pela médica Adelaide Cabete. A primeira mulher que votou no nosso país, Carolina Ângelo, fê-lo, não

37 Kate Millet, Sexual Politics, New York, Doubleday, 1970.

38 Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa, Novas Cartas Portuguesas, Prefácio de

Maria de Lourdes Pintassilgo, Lisboa, Estúdios Cor, 1972.

39 Sobre este assunto consultar Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa, Novas Cartas Portuguesas, O Livro das Três Marias 25 Anos Depois, Lisboa, D. Quixote, 1998.

por direito, mas por ser viúva – numa interpretação da lei que concedia o voto aos chefes de família.

No entanto, o processo sofreu um sério revês pois, a 28 de Maio de 1926, um golpe militar instaurava o regime fascista e a ditadura, anti-feminista e anti-liberdade, que amordaçava todas as vozes e limitava os espaços. Para a mulher sobrava o lar. Em 1937, Salazar criou a Obra das Mães pela Educação Nacional e as mulheres que trabalhavam fora de casa, escassas, ganhavam apenas dois terços do salário dos homens. Nas escolas, ensinava-se às mulheres o seu papel através da chamada “formação feminina”: à mulher competia, sobretudo, os cuidados domésticos, manter o asseio, a ordem e a alegria do lar, cuidar dos filhos e tornar a casa agradável e acolhedora, prestar ao marido a deferência e submissão que lhe devia como chefe de família. Assim, eram preparadas as mulheres nas escolas dos anos quarenta.

Quando a guerra veio modificar a ideia que as pessoas tinham do mundo e da realidade, as mulheres estiveram nas filas de racionamento, nas enfermarias, mas também nos lugares dos homens nas fábricas. Contingências que a paz voltou a pôr no seu antigo lugar: as mulheres eram

obrigadas a regressar ao lar.

Hélène de Beauvoir, assim como a sua irmã, Simone, do tempo que passou em Portugal, guardou em suas memórias, como já referimos, a ideia de um país de donas de casa ou do tempo dos senhores medievais40 onde o estado servil em que se encontrava a mulher tinha como aliado as

próprias mulheres que não lutavam nem reivindicavam os seus direitos. Assim, para Hélène. «Le Temps du seigneur n’était plus aboli. Un merveilleux pays médiéval!»41

Uma tradição portuguesa à qual Simone atribuiu muita importância, por achar que revelava uma profunda tradição machista, era o facto de não se passar à mesa enquanto não chegasse o «Mestre», o dono da casa. O homem e os seus convidados ocupavam lugar de destaque e, também por isso, eram os primeiros a ser servidos. Na verdade, a sociedade portuguesa era, a seu ver, demasiado patriarcal. E mesmo passados trinta anos desde a primeira visita de Simone de Beauvoir42 ao nosso país, o sentimento de desilusão face à situação da condição feminina em

Portugal, continuava a prevalecer. Na conferência pronunciada a 6 de Maio de 1975 subordinada ao tema «Solidaire d’Israël: un soutien critique», Simone diz:

«Cela m’amuse beaucoup, ce que vous me dites là parce qu’il y a trois semaines j’étais au Portugal et j’ai eu à peu près la même conversation; j’ai dit que c’était honteux la manière dont les femmes étaient traitées au

40 Hélène de Beauvoir, p.165. 41 Id., ibid., p.165

Portugal et on m’a répondu “Mais Madame vous ne vous rendez pas compte de la situation, il y a des problèmes beaucoup plus importants”. En Israël ce qui compte c’est la sécurité, au Portugal c’est la Révolution qui est en train de se faire... De toute façon, les femmes doivent passer après. C’est une inégalité très flagrante.»43

De facto, esta afirmação deixa transparecer a sua desilusão face à atitude indolente das mulheres em Portugal.

Não pretendendo efectuar um estudo exaustivo do feminismo em Portugal ou no mundo, esperamos que este nosso deambular pela História da luta pela igualdade entre os sexos tenha contribuído para uma visão mais alargada dos condicionalismos que definiram a forma como as irmãs Beauvoir se relacionaram com o nosso país.

Como veremos nos capítulos seguintes, a educação, a personalidade e a bagagem cultural de cada uma das irmãs interferiu, como é óbvio44, na imagem de Portugal que cada uma construiu

para si e para os outros.

43 Simone de Beauvoir, «Solidaire d’ Israël: un soutien critique», in Les Cahiers Berbard Lazare, n.º51, juin,

1975.

44 Em Literatura, todas as representações sofrem a interferência do seu criador: os vários condicionalismos

sociais, culturais e históricos que desenharam a sua personalidade constituem um ponto de referência que ele usa como norteador do olhar que pousa sobre a realidade. Sobre este assunto consultar: Daniel-Henri Pageaux, Imagens de Portugal na cultura francesa, Lisboa, Ed. Biblioteca Breve, 1984; Daniel-Henri Pageaux, La Littérature générale et comparée, Paris, Armand Colin, 1994; Gerhard R. Kaiser, Introdução à

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