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A opinião da imprensa

No documento Simone de Beauvoir e Portugal (páginas 124-129)

público português a escutou Não podemos negligenciar a importância desse estatuto enquanto instrumento

4. A segunda visita de Simone de Beauvoir a Portugal:

4.1. A opinião da imprensa

4.1.1. Em França

Ao longo da História mundial, fomos assistindo a um desenrolar de revoluções que tinham como revindicação a liberdade. Na maior parte delas, o derrame de sangue era inevitável, no entanto, o caso português foi excepcional. Apelidada de «révolution de la paix», «revolution des oeillets» ou ainda de «printemps de Lisbonne», a revolução de 25 de Abril de 1974 constitui um marco na história das lutas do povo por esse direito tão essencial que é a liberdade.

De facto, o desejo de liberdade é um dos factos mais destacados pela imprensa francesa no que respeita os acontecimentos de Abril de 74. Encontramos esta ideia repetida em diferentes publicações. É o caso do jornal Le Monde que retrata assim a dita revolução portuguesa:

«Beaucoup a été fait à Lisbonne au cours de ces trois dernières semaines. Les Portugais ont retrouvé avec allégresse, mais aussi avec une discipline remarquable, le goût oublié de la liberté (…) après une aussi longue nuit d’oppression.»225

Por sua vez, o L’Express utiliza uma comparação reveladora da alegria contagiante que a liberdade causava na população:

«Comme des enfants après leur premier verre de vin, les portugais sont ivres. Ivres de paroles et de gestes fraîchement découverts. Ivres d’une liberté qu’ils apprennent avec la maladresse des aveugles miraculeusement rendus à la lumière»226

Em suma, a liberdade era vista como o direito mais importante adquirido com esta revolução. Para confirmarmos esta conclusão, basta que leiamos o seguinte título:

«Dans Lisbonne en Liesse: un seul mot: liberté, liberté».227

A própria imprensa começava a dar os seus primeiros passos na liberdade de expressão. A diferença estava à vista e os jornalistas estrangeiros não eram indiferentes a esta mudança, tal como nos demonstra o jornal Le Monde:

«La première différence entre avant et aujourd’hui est simple et évidente: les journaux ont surgi entre toutes les mains. Les portugais lisaient

225 Dominique Pouchin, «Dans les délais» in Le Monde, le 14 mai, 1974, p.1. 226 André Pautard, «L’explosion portugaise» in L’Express, 6-12 mai, 1974, p.122. 227 Le Monde, 27 avril, 1974, p.11.

peu. Leurs gazettes sentaient l’ennui et le conformisme. Maintenant, en tous lieux, aux terrasses des cafés, dans la rue, aux arrêts d’autobus, dans les files d’attente, devant les banques, hommes et femmes sont, de matin au soir, plongés dans la lecture d’un quotidien.»228

Como podemos constatar, a liberdade de imprensa andava de mãos dadas com o crescente interesse do povo pelas questões políticas e com o reafirmar do direito (e dever) de participação dos cidadãos na vida social e política do país. Apesar da revolução ter sido da autoria dos militares, uma das questões que mais apaixonava a opinião pública no estrangeiro era o facto desta ter sido uma acção concertada com o povo, que obteve o seu consentimento e participação. Assim, a adesão das populações, a euforia e alegria demonstradas pelos cidadãos em geral e o facto da mudança de regime ter ocorrido num clima de relativa tranquilidade, contribuiu para a boa imagem deste novo Portugal no estrangeiro.

No entanto, alguns questionavam esta união do povo ao M.F.A. e temiam que a imagem pacífica da revolução não fosse mais que uma orquestração como muitas outras efectuadas ainda durante a ditadura. É nesse sentido que se entendem as seguintes palavras:

«Et l’on entend partout, comptine à la fois naïve et menaçante, ce slogan que scandent à l’unisson enfants, civils et militaires: "Le peuple uni ne sera jamais vaincu "»229

Foi no intuito de constatar esta adesão, ou a falta dela, do povo aos ideais preconizados pelos militares, que muitos franceses se começaram a dirigir em direcção a Portugal, uma vez a poeira da revolução assentada. Mas nem todos os franceses se sentiam agradados por este fenómeno. Os que partilhavam um ideal político de direita, por exemplo, temiam a repercussão da revolução portuguesa.

Eram especialmente os intelectuais e políticos de esquerda que pretendiam verificar se a imagem de sucesso da revolução transmitida no estrangeiro era verídica ou não. Assim, a agência noticiosa Reuters revelava, na altura, que o turismo francês não tinha diminuído:

«Por sua vez, os Franceses, que tradicionalmente desprezavam as atracções turísticas de outros países, estão este ano vivamente interessados em visitar Portugal, exactamente, por causa da transformação política que se opera. Os agentes de viagens de Paris dizem que numerosas organizações de esquerda, que detestavam o anterior regime português, pretendem agora organizar excursões para observar «in loco» o que se passa em Portugal. O director do Centro de Turismo Português em Paris admite que muitos franceses actualmente interessados em visitar Portugal o fazem por motivos políticos.»230

228 Marcel Niedergang, «Lisbonne: bientôt la «paix des braves»?» in Le Monde, le 16 mai, 1974, p.12. 229 André Pautard, «L’explosion portugaise» in L’Express, 6-12 mai, 1974, p.122.

Do mesmo modo, Sartre definiu nestes termos as razões que estiveram na origem da sua viagem a Portugal:

«Les événements qui s’y [au Portugal] sont passés depuis le 25 avril et qui ont changé la société portugaise m’ont poussé à faire ce voyage. Je voulais savoir ce qui s’était passé au juste.»231

Assim, foi neste contexto, que Sartre e Beauvoir visitaram o nosso país em 1975, um ano após a famigerada revolução dos cravos.

4.1.2. Em Portugal

Os dois filósofos e escritores franceses chegaram a Portugal separados – Sartre de avião e Beauvoir de comboio (para aproveitar a paisagem) – mas eram vistos como um casal. Assim, Simone de Beauvoir é sempre referida como a «esposa»232 ou a «mulher»233 de Jean-Paul Sartre e a sua presença não é notada por alguns periódicos que dedicam toda a sua atenção ao filósofo.

Assim, enquanto que este é «uma das figuras mais brilhantes da cultura europeia e universal, quer no campo da filosofia, quer no campo político»234, Simone de Beauvoir é «a

escritora francesa»235 que escreveu Os Mandarins. Sartre é também caracterizado como sendo «filósofo (jornalista, dramaturgo e militante político)»236, «reconhecido universalmente como um

dos maiores teóricos políticos»237 e um «velho filósofo (…) responsável pela formação ideológica

de muitos intelectuais portugueses»238. Para além disso, é um «ilustre conferencista»239, «filósofo,

escritor, homem de teatro, jornalista, homem político, marxista»240; «Sartre é também um homem

político, um marxista, defensor de um ideal democrático e de uma “dialéctica revolucionária”»241.

Por seu lado, Beauvoir é descrita, de uma forma menos entusiasta, como sendo «autora de diversos romances e estudos»242, «autora do “Mandarim”»243, e como uma escritora francesa que «escreveu

acerca dos intelectuais portugueses»244 no seu romance Les Mandarins.

231 Jean-Paul Sartre, «Révolution et Militaires» in Libération, 22 avril, 1975.

232 O Primeiro de Janeiro, 24 de Março de 1975, p.5; Diário de Notícias, 2 de Abril de 1975, p.8. 233 O Primeiro de Janeiro, 24 de Março, 1975, p.5; Diário de Notícias, 3 de Abril de 1975, p.3. 234 O Primeiro de Janeiro, 24 de Março de 1975, p.5.

235 Id., ibid.

236 O Primeiro de Janeiro, 29 de Março de 1975, p.5. 237 Id., ibid.

238 Diário de Lisboa, 4 de Abril de 1975, p.4. 239 Comércio do Porto, 5 de Abril de 1975, p.6. 240 Diário de Notícias, 27 de Março de 1975, p.9. 241 Diário de Notícias, 25 de Março de 1975, p.3. 242 O Primeiro de Janeiro, 24 de Março de 1975, p.5.

Como podemos verificar pela caracterização que é feita destes dois autores na imprensa periódica portuguesa, há um desnível entre o destaque e a importância dada a um e a outro. Infelizmente, como muitas vezes aconteceu na vida de Beauvoir, ela é vista como a grande mulher por detrás do grande homem que é Sartre. No entanto, é compreensível que assim seja, tendo em conta que o grande incentivador desta visita foi Sartre. De igual forma, foi ele que, ao longo dos tempos, foi ficando conhecido pelo seu engagement intelectual e político, daí que lhe seja dada, neste período efervescente a nível político, mais atenção do que a Beauvoir.

No que diz respeito ao conhecimento que os jornalistas revelavam possuir acerca das obras de cada um destes autores, no que diz respeito a Sartre, eram referidas: «A Náusea»245, «Les Mains

sales»246 (ou «As mãos sujas»247) e «La Putain Respectueuse»248; era ainda referido o seu papel

como redactor do jornal «Libération»249; alguns jornais indicavam erradamente «La cause du

Peuple»250 e «J’Accuse”»251 como obras da sua autoria. De facto, por vezes, a imprensa confundia

obras dos autores com outras em que apenas colaboraram e, de igual forma, confundiam obras literárias com artigos ou publicações de outra natureza.

Quanto às obras de Beauvoir, encontrámos referências frequentes ao seu romance Les

Mandarins252 e a «outros romances e estudos onde estão latentes os mecanismos da luta de classes

e o relevo dado aos movimentos progressistas.»253

Apesar de não serem indicadas pelos jornalistas, as traduções Memórias de uma menina

bem-comportada de Beauvoir e A Idade da razão de Sartre, entre outras, estas apareciam

publicitadas em algumas publicações: uma forma engenhosa que a Editora Bertrand encontrou de forma a aproveitar a estadia dos autores entre nós para aumentar as vendas das suas obras.

Para além de referirem o conteúdo das conferências, quer de Sartre, quer de Beauvoir, os artigos consagrados a estes dois intelectuais, resumiam de uma forma simples e acessível, o pensamento de cada um deles. Assim, Sartre era sobretudo definido através da sua ligação a uma política de esquerda e a uma filosofia existencialista, enquanto que Simone de Beauvoir era caracterizada como sendo sobretudo sensível aos direitos da mulher, opositora ao capitalismo e partilhando os ideais de esquerda de Sartre. Beauvoir era vista ainda como uma escritora capaz de defender os direitos de todos os cidadãos sem olhar a distinções de raça, cor ou sexo. No entanto,

243 Diário de Notícias, 29 de Março de 1975, p.3. 244 O Primeiro de Janeiro, 24 de Março de 1975, 5. 245 O Primeiro de Janeiro, 24 de Março de 1975, p.5. 246 Diário de Notícias, 25 de Março de 1975, p.3. 247 O Primeiro de Janeiro, 29 de Março de 1975, p.5. 248 Diário de Notícias, 25 de Março de 1975, p.3. 249 O Primeiro de Janeiro, 24 de Março de 1975, p.5. 250 Id. ibid., 24 de Março de 1975, p.5.

251 Id., ibid.

252 Diário de Notícias, 29 de Março de 1975, p.3; O Primeiro de Janeiro, 24 de Março de 1975, p.5. 253 O Primeiro de Janeiro, 24 de Março de 1975, p.5.

nota-se uma diferença de tratamento entre Sartre e Beauvoir em prejuízo desta última, o que era característico da mentalidade machista da sociedade portuguesa que, aliás, não passou despercebida à escritora254.

Através das publicações periódicas consultadas, constatámos que os dois autores, em especial Sartre, vieram ao nosso país no intuito de se inteirarem da nova realidade portuguesa, para posteriormente, a transmitir aos seus compatriotas. De facto, é várias vezes referida a atitude característica de Sartre – ouvir muito e falar pouco e não dar a sua opinião sem estar completamente esclarecido quanto aos factos sobre os quais se pedia o seu juízo – que desiludiu mesmo alguns dos seus ouvintes que pretendiam que o escritor desse o seu parecer acerca da Revolução dos Cravos.

Infelizmente, para grande parte da numerosa audiência que costumava assistir às conferências destes intelectuais, nem Sartre, nem Beauvoir transmitiram, de forma clara, as suas opiniões acerca das transformações operadas em Portugal, enquanto cá estiveram255. No entanto,

Sartre acabaria por contribuir para a construção de uma nova imagem de Portugal no estrangeiro ao publicar no jornal Libération e em Les Temps Modernes uma série de artigos sobre o nosso país.

Assim, podemos concluir que o papel de Simone de Beauvoir relativamente à construção de uma nova imagem de Portugal foi menos activo que o do seu companheiro, pelo menos, segundo a visão que nos dá a imprensa periódica portuguesa.

254 Tal como referimos anteriormente (no capítulo referente ao feminismo), aquando da conferência

«Solidaire d’ Israël: un soutien critique», realizada a 6 de Maio de 1975, Beauvoir mencionou que o machismo estava ainda muito presente na sociedade portuguesa.

No documento Simone de Beauvoir e Portugal (páginas 124-129)