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O contacto entre as irmãs Beauvoir durante o período de guerra

No documento Simone de Beauvoir e Portugal (páginas 52-55)

Capítulo II – Hélène de Beauvoir e Portugal

2. A estadia do casal de Roulet em Portugal

2.7. O contacto entre as irmãs Beauvoir durante o período de guerra

Hélène teria apreciado muito mais a sua estadia em Portugal se tivesse tido notícias de Simone e da sua família. Mas, estando a França dividida em duas partes e visto que a única forma de correspondência era através de cartas da Cruz Vermelha onde as informações permitidas eram mínimas, durante dois anos, Hélène viu-se afastada involuntariamente da sua família, que esperava ansiosamente novidades suas:

«Quelques lettres d’Hélène commençaient à arriver de Faro, où elle travaillait avec Lionel, qui était complètement rétabli, dans les services français des affaires culturelles, mais ce n’était guère que de courts billets

transmis par la Croix-Rouge, disant qu’elle était heureuse et en bonne santé.»70

Mesmo não possuindo grandes recursos económicos, Hélène não se esquecia da irmã e, de vez em quando, enviava-lhe um pequeno presente. Normalmente era alguma peça de vestuário, uma bijutaria ou uma outra qualquer encomenda. Simone, apesar de não ser muito vaidosa, gostava de se apresentar bem e preocupava-se com a sua imagem:

«J’ai ouvert une enquête sur mon physique d’où il ressort que: Kanapa me trouve "bien" mais pas jolie – Lévy jolie et même "assez belle" − l’homme lunaire fort jolie».71

Hélène sabia que a irmã vivia privada de muitos produtos e por isso não hesitava em proporcionar-lhe, desta forma, alguns pequenos prazeres. No entanto, em tempo de guerra, o correio nem sempre chegava ao seu destino. Em 1942 quando Hélène recebeu a primeira carta da irmã, transbordava de alegria e era com igual contentamento que Simone recebia notícias de Hélène:

«... il y avait une première lettre de Kos., et une longue lettre de Poupette du Portugal. C’était les premières lettres fraîches qu’on recevait depuis longtemps et ça m’a fait plaisir comme une première échappée hors de prison.»72

Simone escrevia-lhe longas cartas na ânsia de retomar o contacto perdido e Hélène, comovida e entusiasmada, conhecia assim, através do relato da irmã, a realidade francesa: a ocupação alemã, a situação do país, da família e dos amigos mais íntimos. A sua irmã mais velha era, mais uma vez, a sua janela para o exterior. Era ela quem lhe chamava a atenção para a realidade circundante e quem guiava o seu olhar pelo mundo. Uma das notícias transmitidas nessas cartas era a morte do patriarca da família. O pai de Hélène e Simone tinha morrido a 1 de Julho de 1941. A morte dele foi sentida com especial tristeza. Tendo sido, toda a sua vida, um verdadeiro nacionalista e defensor dos direitos e das virtudes do seu país, não aguentara a humilhação da Ocupação, nem a dor e a fome quese fizeram sentir em França. Todas as suas crenças tinham-se esvanecido, não lhe restava mais nada a não ser deixar-se desaparecer com elas. É nesse sentido que Hélène diz:

«Tous ces gens, ces bons Français qui n’étaient les siens, qui se tournaient vers Pétain, dans un esprit de collaboration avec Hitler... son patriotisme exacerbé ne l’a pas toléré.»73

70 Deirdre Bair, Simone de Beauvoir, traduit de l’anglais (États-Unis) par Marie-France de Paloméra, Paris,

Librairie Arthème Fayard, 1991, p. 331.

71 Simone de Beauvoir, Journal de guerre septembre 1939 – janvier 1941, Paris, Gallimard, 1990, p.191. 72 Simone de Beauvoir, Lettres à Sartre 1940-1963, Paris, Gallimard, 1990, p.171.

A dura realidade deitava por terra as suas ilusões e, com o tempo, o seu espírito e o seu corpo conheciam a mesma derrota. Mas esta derrota não seria apenas moral. A fome era uma realidade bem familiar dos franceses durante a Segunda Guerra Mundial. Se tivermos em conta que a família de Beauvoir não possuía uma situação financeira privilegiada, que o patriarca da família já não tinha mais nenhuma fonte de rendimento, e que na França, durante a Ocupação, só quem tivesse dinheiro suficiente para se abastecer no mercado negro é que tinha uma boa alimentação, chega-se à conclusão que a fome, de certo, se fez sentir também na casa da austera família Beauvoir. Simone terá, segundo a irmã, ajudado os pais sempre que possível, mas não era o suficiente para o seu pai, un gros mangeur74 que não estava habituado a privar-se de nada. Hélène

diz mesmo:

«Ils vécurent misérablement et mon père en était mort.»75

Contudo, a matriarca da família, retratada nos escritos mais íntimos de Simone de Beauvoir como rígida, forte e robusta, não se deixou abater pela guerra. Sendo uma mulher de recursos, conseguiu manter a mesma atitude firme de outrora e resistir às privações da França ocupada. No entanto, esta mulher descrita como uma fortaleza, sentiu a força do tempo manifestar-se por dentro: uma doença corroía-lhe os ossos, descalcificando-os e causando-lhe uma enorme agonia nos seus últimos anos de vida. As crises de artrite eram dolorosas e cruéis para uma mulher que já tinha sofrido tanto durante toda a sua vida. Mas não eram só os pais de Hélène que sofriam com a guerra. A própria irmã, Simone de Beauvoir, sentia a falta de produtos desde os alimentos ao vestuário, passando pelos produtos de higiene. É esta a realidade que nos descreve Deirdre Bair:

«Pour Simone de Beauvoir comme pour tout le monde, la nourriture devint vite une obsession. Elle prit l’habitude de détourner les yeux lorsqu’elle longeait les devantures vides des boutiques. Comme beaucoup d’autres Parisiens aussi, elle recourait au marché noir dès qu’elle avait deux sous devant elle.»76

Simone tentava poupar a irmã, evitando deixar transparecer nas suas cartas os efeitos da guerra no seu quotidiano. Contudo, através das suas palavras, Hélène apercebia-se das dificuldades por que passava Simone. Não era comum ela dar tanta importância ao assunto da alimentação nas suas cartas, por isso, concluía Hélène, isso deveria querer dizer que a alimentação era um dos problemas que a afectava.

Em Portugal, todos os franceses estavam cientes dos problemas de abastecimento em França, mas era difícil, para aqueles que estavam longe, avaliar a importância das restrições.

74 Id., ibid., p.154. 75 Id., ibid., p.154. 76 Deirdre Bair, p.277.

Por outro lado, era comum Simone mencionar, nas suas cartas, as longas caminhadas que fazia, quer a pé, quer de bicicleta, o que deixava antever que havia problemas nos transportes públicos. Na verdade, em Paris, apenas o metro e os comboios funcionavam regularmente e, por isso mesmo, as bicicletas tornaram-se num dos símbolos da França ocupada:

«...il y a très peu de circulation: ni taxi, ni autobus, mais les métros marchent. Il y a surabondance de bicyclettes dans les rues: vous rirez quand vous verrez; c’est un charme vous savez de se balader dans Paris à bicyclette.»77

Nas suas cartas, Simone de Beauvoir falava também da sua vida de ensino, da relação que mantinha com os alunos e revelava os seus ideais educativos. Para ela, era essencial formar as novas gerações humilhadas e derrotadas; era vital ensinar-lhes a não baixar os braços e a ter fé na vitória da democracia. É evidente, que ao ler estas palavras, o coração da irmã de Simone de Beauvoir se enchia de orgulho. Orgulho esse que a levava a defender a irmã e o seu companheiro Sartre, quando estes foram acusados de nada terem feito pela França durante a Ocupação.

Mas a verdade é que a grande angústia de Simone durante a guerra era que algo nefasto acontecesse a Sartre ou a Bost que combatiam contra o avanço das tropas alemãs. Face a essa constante preocupação, a falta de alimentos ou de certos produtos era insignificante. De qualquer forma, o estado de privação de Simone iria em breve sofrer uma alteração, pois no horizonte adivinhava-se o fim da Ocupação e uma viagem a um oásis de luxo (Portugal) no meio do vazio deixado na Europa pela guerra.

No documento Simone de Beauvoir e Portugal (páginas 52-55)