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A brincadeira como atividade-guia no processo de desenvolvimento infantil

2 TEORIA HISTÓRICO-CULTURAL E SEUS PRESSUPOSTOS

2.7 A brincadeira como atividade-guia no processo de desenvolvimento infantil

O desenvolvimento psicológico, a partir das relações interfuncionais em unidade e sistemas psicológicos complexos, direciona todo o processo de formação da consciência (da Silva & Pasqualini, 2019). Diversos tipos de atividade medeiam a relação pessoa-mundo que engendra todo o processo de consciência (Silva & Pasqualini, 2019, p. 4). O desenvolvimento infantil transforma a estrutura interna da consciência em sua totalidade. Dessa forma, se modificam as relações das diferentes funções e suas atividades e, assim, surgem os novos

sistemas dinâmicos (Vygotski, 2012). Para isso, é preciso compreender a consciência como “um fenômeno historicamente situado e ligado à atividade criadora (...). A consciência, entendida não como uma entidade, mas como uma função semiótica” (Pino, 2018, p. 231). Assim, ao mesmo tempo que ocorre a reelaboração contínua e dinâmica do desenvolvimento psicológico como um todo, a cada etapa desse processo também existe uma atividade que predomina e se destaca (Magalhães, 2019).

Nesse sentido, a brincadeira, e de forma mais específica o faz de conta, é a atividade principal do desenvolvimento na infância (Leontiev, 1998; Vigotski, 2008; Elkonin, 2009). As condições que se dão no brincar engendram a necessidade de imaginar e, assim, torna-se possível tomar consciência do seu mundo cultural. A partir disso, a criança regula e (re)organiza seus comportamentos e emoções do seu dia a dia e dá vazão aos processos criadores, ao mesmo tempo que possibilita o desenvolvimento psíquico. Por isso, o brincar é imprescindível na primeira infância, pois é a atividade-guia de todo o desenvolvimento infantil (Vigotski, 2008; Vigotski, 2018a; Leontiev, 1998; Elkonin, 2009).

É consenso entre autores clássicos (Benjamin, 2009; Brougère, 1997; Elkonin, 2009; Huizinga, 1971; Leontiev, 1998; Vigotski, 2008) que a brincadeira surge a partir da relação com o outro e é fundamental para o desenvolvimento infantil. Dessa forma, é uma prática social, e não natural, intrínseca à criança, como às vezes se pensa (Benjamin, 2009; Brougère, 1997; Elkonin, 2009; Huizinga, 1971; Kishimoto, 2001; Leontiev, 1998; Silva, 2002; Vygotski, 2008; Volapto, 2017). Em seu cotidiano, a criança se depara com inúmeras situações que não são possíveis vivenciar, seja pela sua idade ou pelo momento específico. Ao perceber um desejo inalcançável, sente necessidade de imaginar aquilo que queria viver, transgredindo as barreiras existentes através da imaginação (Elkonin, 2009; Leontiev, 1998; Vigotski, 2008).

A criança brinca de fazer de conta para se desprender da impossibilidade de viver algo que deseja vivenciar. Dessa forma, “o fato de criar uma situação imaginária não é casual na

vida da criança. Ela tem como primeira consequência a sua emancipação das amarras situacionais” (Vigotski, 2008, p. 32). Ela imagina-sente o que antes não poderia vivenciar e ao realizar na brincadeira aquilo que desejou, toma consciência e, assim, se desenvolve.

Vale pontuar que a brincadeira não é uma atividade única ao ser humano e sim dos mamíferos em geral. Isso é importante ressaltar pois, entre os animais, só esse grupo apresenta infância, não desenvolveu o sistema sensório-motor totalmente ao nascer e são essencialmente seres sociais, ou seja, que dependem uns dos outros. Dessa forma, explica-se porque a brincadeira tem um papel fundamental no desenvolvimento desse grupo. É a partir das capacidades que se desenvolvem no brincar, que fazem com que os mamíferos sobrevivam. “A atividade de brincar é especialmente interessante para demonstrar a transição do biológico para o cultural” (Tunes & Tunes, 2001, p. 80). A brincadeira com um simples manuseio de objetos logo dá espaço a formatos culturais com interações sociais que direcionam a um brincar mais elaborado, como o faz de conta (Tunes & Tunes, 2001).

Apesar da brincadeira ser identificada em outros seres vivos, no ser humano tem sua peculiaridade, pois “este aprende, de pronto, que o outro está, de alguma forma, implicado aos objetos” (Tunes & Tunes, 2001, p. 85). Ademais, a imaginação voluntária é um processo especificamente humano. A “abelha envergonha muitos arquitetos com a estrutura de sua colmeia. Porém, o que desde o início distingue o pior arquiteto da melhor abelha é o fato de que o primeiro tem a colmeia em sua mente antes de construí-la” (Marx, 2017, p. 255). A atividade pressupõe a idealização de uma imagem antecipada frente a um objetivo que se pretende ao final (Martins, 2013).

Sendo assim, “realiza, ao mesmo tempo, seu objetivo, que ele sabe que determina, como lei, o tipo e o modo de sua atividade e ao qual ele tem de subordinar sua vontade” (Marx, 2014, p. 256). Deste modo, a atividade social humana “se radica à gênese da imaginação (Martins, 2013, p. 228). Com isso, identifica-se que tanto o brincar, para a criança, como o trabalho, para

o adulto, tem como base a imaginação, mas como dito anteriormente, o sistema psicológico em cada período do desenvolvimento é qualitativamente específico. Enquanto no trabalho se imagina com um objetivo final, a brincadeira se desenvolve como um fim em si mesma, embora ambas sejam impulsionadas por um desejo.

Observa-se, assim, que no brincar de faz de conta, “ocorre uma determinada retenção da reação emocional em que o sentimento se constitui e se mantém por meio da imaginação que o alimenta” (Silva & Magiolino, 2018, p. 47). Nesse sentido, o brincar de faz de conta é uma atividade humana criadora, na qual imaginação-emoção e realidade interagem na produção de novas possibilidades de interpretação e de ação pelas crianças. Como consequência, efetiva novas formas de construir relações sociais (Vigotski, 2010). Tal concepção contraria o fato de a brincadeira ser uma atividade restrita à assimilação de códigos sociais, cuja função principal seria facilitar o processo de socialização da criança. Assim, se por um lado a criança de fato reproduz o mundo nas situações criadas nas brincadeiras, por outra essa reprodução não se faz passivamente, mas mediante um processo ativo de reelaboração do mundo, que abre lugar para a invenção, interpretação, entendimento e prática sobre a sua própria cultura. Além disso, mesmo que a criança reproduza ações que foram observadas individualmente, todas carregam também questões culturais e históricas da sociedade como um todo (Borba, 2006).

E mesmo que o brincar seja essencialmente social, não é uma simples imitação ou algo mecânico, como às vezes se pretende entender esse processo (Rodríguez, 2009; Vygotski, 2012). O fato é que a imitação é uma das vias fundamentais para o desenvolvimento cultural da criança, mas “pressupõe uma determinada compreensão do significado da ação do outro. (...) A criança que não sabe compreender não saberá imitar” (Vygotski, 2012, p. 137, tradução da pesquisadora). Nesse sentido, a criança não apenas imita experiências vividas ao, aparentemente, reproduzi-las na brincadeira. Ela vivencia – de forma única. Dessa maneira,

compreende-se aqui que não só a imaginação criadora deve ser entendida como original, mas também a imaginação reprodutora. Ao (re)produzir as ações anteriormente observadas a partir da relações que experimentou com os outros, a criança a (re)produz de modo particular. Sendo assim, o seu brincar é essencialmente autoral tanto quando (re)cria, como quando (re)produz, porque, na verdade, as ações são sempre interpretações singulares, a partir de vivências.

Sendo assim, reitera-se a importância do enlace emocional na imaginação. A esfera afetiva do brincar “organiza-se justamente a situação de desenvolvimento em que surgem as tendências irrealizáveis” (Vigotski, 2008, p. 25). Ou seja, a criança brinca porque “a imaginação é o novo que está ausente” (Vigotski, 2008, p. 25). Entende-se que a criança externaliza na brincadeira e no objeto seus desejos e, por conseguinte, seus afetos. Mais do que isso, é nela que ela tem possibilidade de criar novas relações no campo do sentir. A criança pode, por exemplo, chorar como uma paciente que vai ao hospital no faz de conta, mas sentir alegria como uma das participantes da brincadeira.

Dessa forma, “a brincadeira dá a criança uma nova forma de desejo, ou seja, ensina-a a desejar, relacionando o desejo como o “eu” fictício, ou seja, como papel na brincadeira” (Vigotski, 2008, p. 33). E por mais que se crie e imagine em uma brincadeira, só se pode inventar algo que observou/experimentou na realidade – seja a partir de si mesmo ou do outro. As fantasias são combinações de elementos reais, tais como uma sereia que nada mais é do que a combinação de um peixe com uma mulher (Vigotski, 2003).

Do mesmo modo, duas irmãs podem brincar de serem duas irmãs (Vigotski, 2008). A criança experimenta na brincadeira o que vive e sente na vida real, mesmo que fantasie algumas partes e outras não. Assim, passa – ou passará – a entender todas essas vivências ao longo do seu desenvolvimento. Reafirma-se que, independentemente do que é fantasia ou não, a emoção associada é sempre real. Logo, “se choro por um herói imaginário de um romance (...), as causas das minhas emoções não existem na realidade, mas meu temor, minha pena, minha

compaixão continuam sendo (...), vivências completamente reais” (Vigotski, 2003, p. 153). Nesse sentido, quando uma criança brinca com bonecas, por exemplo, não aprende só a cuidar de uma criança viva, mas como a se sentir mãe. A fantasia se torna real “por um lado, pelo material que a forma; por outro pelas emoções ligadas ela” (Vigotski, 2003, p. 153).

Assim sendo, não há possibilidade de existir relação entre sujeito e objeto, sem existir, nessa relação, componentes afetivos (Martins, 2013). No exemplo da boneca, a criança cria uma relação afetiva com o objeto e vivencia aquela experiência se sentindo como ser mãe. Observa- se, então, o objeto – revestido como brinquedo – um elo essencial das relações humanas, assim como em momentos brincantes, pois, além da relação diádica criança-outro, os objetos/ brinquedos são importantes artefatos culturais que medeiam as relações entre pessoas. São eles que diversas vezes conectam as crianças aos adultos ou a outra criança (Rodríguez, 2009).

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