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SOFTWARE ELAN 5.7

1.2 Um olhar inicial para o brincar da criança com autismo

A brincadeira é considerada uma atividade social da infância que tem uma importância central no desenvolvimento (Vigotski, 2008; Elkonin, 2009; Leontiev, 1998; Brougère, 1997; Kishimoto, 2001; Benajmin, 2017; Volpato, 2017; Silva, 2002). Nesse sentido, ao compreender

que a brincadeira se desenvolve a partir das relações sociais, interessa questionar como e com o quê brincam crianças com autismo (Transtorno do Espectro Autista – TEA), já que, como supracitado, o mais recente manual de diagnóstico, o DSM-V (APA, 2014), caracteriza essas crianças com dificuldades que perpassam a comunicação e as habilidades sociais, pontuando déficits na interação com pares, restrição na imaginação, dificuldade com expressões emocionais, inflexibilidade de pensamento, além de comportamentos restritos e estereotipados. A pesquisadora observa que, especialmente em contexto clínico e escolar, há uma frequência significativa de afirmações que partem do pressuposto de que a criança com autismo não brinca. Quando se referem, por exemplo, a restrição imaginativa e a inflexibilidade de pensamento descritas no manual de diagnóstico, acabam por se prender apenas a essas dificuldades. Com isso, raramente se voltam os olhares para as possibilidades. É dito que existe nessas crianças um comprometimento – não raramente considerado estático – na imaginação, além de uma ausência na reciprocidade social e emocional, que inviabiliza as brincadeiras, especialmente de faz de conta. Tornam-se igualmente comuns os relatos de que as crianças com autismo até brincam com seus carrinhos ou bonecas, mas não o fazem na forma social. Consta-se, assim, uma contradição já que toda e qualquer brincadeira é, essencialmente, social. Sendo assim, é necessário discutir o que é considerado brincar para que, ora se diga que crianças com autismo não brincam, ora que elas o fazem, mas não de forma funcional e/ou social. Leva-se a crer que designaram – sabe-se lá quem – o que é e o que não é brincadeira para uma criança. Como isto é possível se a brincadeira é uma atividade da infância, única e singular? Ademais, as crenças difundidas a partir do diagnóstico de TEA fazem, muitas vezes, que questionem os modos brincantes dessas crianças. Nesse sentido, a pesquisadora entende que, são a partir de crenças como essas que determinados relatos podem ocorrer entre familiares e até profissionais, tal como comparações em brincadeiras de uma criança com autismo com um par de desenvolvimento típico. Quando a criança sem o diagnóstico enfileira carrinhos,

dizem “olha! O engarrafamento”, mas quando uma criança com autismo faz o mesmo costuma se ouvir “olha! Um comportamento restrito e estereotipado”. Sendo assim, vale indagar como as pessoas se relacionam e significam o mundo dessas crianças com o chamado TEA e o que poderia ocorrer se, ao invés de enfatizar um déficit, fossem feitas mediações como, por exemplo, perguntar “você está brincando de trenzinho, é?”. Questiona-se, então: e se o olhar para essas crianças fosse além do que se pontua nos manuais? É dito que a criança com autismo não brinca porque ela tem dificuldade em características importantes para tal atividade ou quanto mais a criança é isolada do mundo social e cultural – e quanto mais seu meio é permissivo a isso –, menos ela desenvolve o seu brincar?

Um estudo longitudinal sugere que tais déficits relacionados as dificuldades no brincar são, na verdade, consequências do isolamento social e não inerentes às crianças com autismo (Wolfberg, 2015). Pontua-se que, se fascinações incomuns fossem consideradas uma tentativa de interação, poderiam se tornar um caminho para desenvolver as relações dessas crianças com outras pessoas, a partir do seu modo de brincar. Nesse sentido, “uma criança com autismo que opte por se esconder embaixo de um cobertor pode oferecer aos outros uma oportunidade de interpretar esse comportamento como um desejo de brincar de esconde-esconde com outras crianças” (Wolfberg, Bottema-Beutel & DeWitt, 2012, p. 62, tradução da pesquisadora). Assim, com um olhar para suas possibilidades e auxílios adicionais, é possível que estas crianças tenham saltos qualitativos na sua forma de brincar e, consequentemente, no seu desenvolvimento. Da mesma forma, se mostra urgente a importância de espaços coletivos com pares de desenvolvimento típico para que ocorram trocas e interações impulsionadoras.

Deste modo, compreende-se que o brincar pode se tornar esse caminho para desenvolver as possibilidades da criança com autismo, ao mesmo tempo que pode contribuir para sua forma de se relacionar com as pessoas. É importante destacar que, em seus primórdios, nunca se negou o brincar dessas crianças e sim constatava-se uma rigidez dessa atividade na

primeira infância, quando preferiam se isolar e/ou ficar sozinhas com objetos (Kanner, 1943). Torna-se, então, pertinente a discussão acerca do tema, já que se compreende que a brincadeira é uma atividade social e primordial do desenvolvimento da primeira infância. No brincar de faz de conta, a criança desenvolve seu psiquismo e toma consciência do seu mundo cultural (Elkonin, 2009; Leontiev, 1998; Vigotski, 2008; 2010), além de ampliar suas possibilidades de interação com pares e regular seus comportamentos e emoções.

É a partir de todas essas reflexões e questionamentos que este trabalho teve como objetivo analisar os processos criadores de crianças com autismo e a importância de espaços brincantes, na Educação Infantil de uma escola pública de Brasília, através de observação triádica criança com autismo-objeto/brinquedo-outro. Interessou compreender a imaginação-emoção na brincadeira de faz de conta dessas crianças, identificar como ocorrem e o que impulsiona seus processos criadores, além de entender o papel do coletivo na vivência da criança com autismo em espaço escolar, especialmente em atividades criadoras, observando contextos escolares distintos: a) classe especial para crianças com autismo sem pares de desenvolvimento típico, e b) classe em que a criança com autismo estuda com outras crianças de desenvolvimento típico.

Para discutir e refletir acerca do tema introduzido, utilizou-se como referencial a Teoria Histórico-Cultural, que tem Lev Semionovich Vigotski7 (1986-1934) como um dos seus mais importantes teóricos, com colaborações imprescindíveis de Alexander Luria (1902-1977) e Alexei Leontiev (1903-1979) – que juntos formavam a troika (Luria, 1998) –, bem como alunos de Vigotski, como Daniil Elkonin (1904-1984), que dedicou seus estudos especialmente à psicologia da brincadeira. Embora a Teoria Histórico-Cultural tenha recebido esse nome

7 Tendo em vista as diferentes formas de escrita do nome de Lev Semyonovich Vygotskij (1896-1934), tais como Vygotsky, Vigotsky, Vygotski, Vigotskii, Vigotski, neste trabalho será usado sempre Vigotski quando a pesquisadora se referir ao autor. Apesar disso, em citações de referências se preserva o nome como consta na obra consultada.

posteriormente, foi desde os estudos desses autores, que nasce e se consolida o que hoje se entende como tal (Prestes, 2012). Apesar dos pressupostos da Teoria serem revolucionários até hoje, os trabalhos de Vigotski só ganharam notoriedade anos depois de sua morte8. Com isso, muitos estudos estão em processo de divulgação (Prestes, 2012b) e, consequentemente, ainda é possível considerá-la uma teoria em descoberta. Impressiona a pertinência de suas afirmações – feitas no início do século XX – e quão necessárias e esclarecedoras ainda são para os dias atuais.

Nesse sentido, vale enfatizar que, apesar de o autismo não ter sido estudado por Vigotski, tendo em vista sua morte prematura em 1934 e Kanner ter discorrido sobre os casos somente nove anos depois, os pressupostos da Teoria Histórico-Cultural dão ferramentas imprescindíveis aos estudos acerca do autismo. Especialmente no que diz respeito às inúmeras possibilidades que se encontram a partir do meio social e cultural, sem fixar apenas no déficit (Martins & Monteiro, 2019), em tempos que o diagnóstico com olhar apenas para o biológico ganha força decisória na sociedade e ainda marginaliza a diversidade humana existente. Sendo assim, as ideias defendidas pelo autor e seus colaboradores estão, em tese, difundidas, mas não na prática. E mesmo assim, quando o estão, nem sempre se encontram de forma completa e/ou sem alterações. Uma parcela considerável de seus textos teve, por exemplo, sua base no Materialismo Histórico-Dialético destituída. Ao retirar a base na qual se fundamenta a Teoria, o caminho para sua compreensão se perde, resultando em ideias distorcidas e/ou mal interpretadas (Prestes, 2012a). Ressalta-se que muitos textos também ficaram pelo caminho ou não foram traduzidos e divulgados, tendo em vista “sua morte prematura e pela censura e proibição impostas a sua obra ao longo de 20 anos” (Tunes & Prestes, 2018, p. 15). Desta forma, escritos que tiveram cortes foram revistados e traduzidos novamente – (como Vigotski,

8 Os escritos de Vigotski foram classificados como proibidos na União Soviética de Stalin e ficaram um longo tempo sem publicação. Nesse sentido, sabe-se que ainda há pouco acesso à amplitude de sua obra, além de muitas discussões acerca de erros de tradução, modificações assumidas e/ou textos incompletos (Tunes & Prestes, 2018).

2008) –, além de textos inéditos recentemente divulgados – (Vigotski, 2018), com previsão de outros a serem relidos futuramente (Prestes, 2012b).

Com isso, compreende-se que a Teoria Histórico-Cultural muito ainda tem a contribuir. Ademais, é primordial considerar todo o movimento histórico e avanços vividos para que mudanças, ainda necessárias, sejam feitas na sociedade. Dessa forma, demonstra-se a necessidade de se revisitarem objetos de estudos em tempos distintos. Nesse mesmo sentido, tendo em vista que a pesquisa visou observar crianças de uma escola pública da Secretaria Estadual de Educação do Distrito Federal – SEEDF, que tem como pressupostos, além da Pedagogia Histórico-Critica, a Teoria Histórico-Cultural (Distrito Federal, 2018), entende-se ainda mais indispensável a utilização dessa base teórica. Outrossim, e não menos importante, a pesquisadora está de acordo com as afirmações propostas por tal fundamentação, sendo o referencial teórico uma escolha consciente, intencional e política.

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